1. Entre «praias» e «playas»
Desta vez, só para não me acusarem de andar a bater sempre na mesma tecla, não peço ao leitor que passe a fronteira lá no Norte. Avancemos, sem medo, para Sul, até ao Algarve. Tem muita gente por estes dias? Imagino que sim.
Ora, ali em Vila Real de Santo António temos praias, não é verdade? Passemos o rio a nado ou de barco — ou só pela imaginação. Do outro lado, o que temos? Temos «playas», claro está, ditas com um belo sotaque andaluz.
São as chamadas cócegas das línguas latinas: muito fica igual, mas o que muda é interessantíssimo. E, neste caso, digo que o interessante não é o «y» — usarmos nós um «i» e os nossos amigos andaluzes um «y» é apenas uma convenção ortográfica. Afinal, em português de há uns séculos também o usávamos na palavra «praya», como podemos ver (por exemplo) nas edições originais d’Os Lusíadas.
O interessante das diferenças entre «praia» e «playa» é aquele «r» em vez do «l». Em muitas palavras, os galegos e os portugueses foram transformando o «l» latino num «r» ao longo dos séculos. Já os nossos vizinhos castelhanos mantiveram o «l». Isto acontece na «praia», sim, mas também acontece na «praça» — e no «prazer» e em muitas outras palavras (e não só com o «pl»): «branco», «brasão»…— e tantas, tantas outras.
Curiosamente, o som «pl» por vezes transformou-se em «pr» e noutras em «ch» (na «chuva», por exemplo). Outras vezes, por via de a palavra ter sido importada muito depois, manteve-se «pl» («pluviosidade», por exemplo).
Por outro lado, muitos brasileiros notam que alguns conterrâneos pronunciam um «r» onde na escrita está um «l» — fenómeno que é considerado um erro. Falo, por exemplo, da transformação de «blusa» em «brusa». É um erro de acordo com a norma da língua — mas não deixa de parecer a continuação para lá do Atlântico desse fenómeno que, há muitos séculos, foi uma das maneiras como a nossa língua marcou as distâncias em relação à vizinha castelhana. Não há nada que obrigue a que um fenómeno de mudança linguística pare a certa altura — os desígnios da língua são insondáveis. A norma, claro, tenta domar a língua e acalmar a sua fúria de mudar. Consegue, umas quantas vezes. Outras vezes, nem por isso.
Mas avancemos! Estamos de férias, apetece viajar…
2. Uma terra entre «playas» e «platjes»
Ora, se seguirmos pela costa espanhola fora, vamos passando por uma série interminável de praias. O Mar Mediterrâneo estende-se a brilhar pelo nosso horizonte.
A viagem demora, mas como o nosso combustível é a imaginação, podemos acelerar sem medo. A certa altura, deixamos a Andaluzia e chegamos a Múrcia — e, pouco depois, vemos a placa que nos anuncia a chegada à Comunidade Valenciana. Pois bem, quando viajamos entre Múrcia e Alicante, a certa altura o nome das praias — pelo menos nalgumas placas — passa a ter «platja» no nome. Já o plural é «platjes».
O novo nome da praia aparece às vezes nas placas, noutras mantém-se a castelhana «playa» — a fronteira entre o castelhano e o catalão é bem diferente da fronteira entre o português e o castelhano. Os dois estados afadigaram-se a marcar de forma indelével a mudança linguística na paisagem. Dum lado, é tudo «praias». Do outro, é tudo «playas». Pois aqui, no sul da região de Valência, a fronteira entre o castelhano e o catalão não é nada clara. Temos uma situação complicada. A língua em que o nome da praia aparece depende de quem montou a placa…
Já na boca das pessoas, o valenciano (o nome que o catalão tem por estas paragens) é pouco usado tão a sul. Teremos de subir para norte e sair das cidades para ser fácil ouvir os valencianos a falar outra coisa que não castelhano.
Olhemos para o plural de praias em catalão: «platjes». Como se lê isto? Se perguntarmos a um barcelonês, aquele último «e» é lido como um «â». Mas a pronúncia varia conforme a região onde se fala a língua… Os valencianos tendem a pronunciar aquele «e» como «e».
Este «e» transformado em «a» é estranho? Ora, se repararmos, alguns portugueses também lêem vários «e» como se fossem «a». Pensemos em «coelho», por exemplo. Em muitas bocas portuguesas, aquele «e» é lido como «â». Também «meia» soa «mâia» nessas boas…
3. Entre «platjes», «plajas» e «spiagge»
Lancemos a nossa imaginação ao mar e rumemos à Sardenha. Surpresa: se o catalão aparece de mansinho, sem se notar, quando viajamos por Espanha, se nos fizermos ao mar e aportarmos numa terra italiana, ainda encontraremos falantes dessa língua. Sim: há uma terra italiana onde se fala o catalão. Hoje em dia, o seu uso é cada vez mais raro — mas não desapareceu. A terra chama-se, em catalão, «Alguer», em sardo «Alighera» e, em italiano, «Alghero».
Porquê esta anomalia na geografia das línguas? Isso implicaria falar um pouco da História do Mediterrâneo — digamos apenas que a História da Coroa de Aragão (a colecção de reinos e principados que, durante séculos, teve Barcelona como cidade mais importante) não é hoje tão conhecida como outras histórias… Mas avancemos, que isto hoje é viagem de praia.
Ora, a Sardenha oferece muito mais a quem por lá viaje com os ouvidos abertos às línguas na paisagem. É por lá que se fala o sardo, uma das línguas latinas de que nos esquecemos muitas vezes. O italiano está a substituí-lo entre as novas gerações, num fenómeno que encontramos na maioria dos territórios onde se falam línguas minoritárias. Fala-se menos, mas ainda lá está, bem presente nas conversas de café e também nas placas da rua — e não se pense que não há literatura em sardo ou que a língua não é reconhecida oficialmente.
O sardo é uma língua curiosa: é a língua que liga pelo mar as línguas ibéricas ao italiano (por terra essa ligação faz-se pelo francês e pelo occitano). Reparemos no nome da praia: «plaja». E no plural? «Plajas», o que parece naturalíssimo, mas já parecerá um pouco mais curioso se soubermos que, em italiano, o plural não se faz com «s».
Por outro lado, os artigos definidos desta língua são «su», «sa», «sos», «sas». Assim, «a praia» é «sa plaja». Onde é que isto é uma ligação com as línguas ibéricas? Bem, no dialecto do catalão falado nas Ilhas Baleares, os artigos também são assim, salgados… «A praia», em catalão balear, é «sa platja» — diga-se que, na escola, as crianças baleares aprendem a forma normativa, ou seja, «la platja».
Bem, e como soa a língua sarda? Aos ouvidos portugueses, o ritmo e a entoação soam a italiano — é o mesmo fenómeno que nos dificulta a percepção das várias línguas de Espanha. Mas se ouvirmos com atenção encontramos a famosa «limba sarda», importante para os linguistas por ter conservado traços do latim que se perderam nas outras línguas latinas.
O estranho «s» da praia italiana
E em italiano, afinal, como é o nome da praia? A praia ganha ali um «s» inicial estranho… A palavra, no singular, é «spiaggia» (e no plural é «spiagge» — lá está, o plural agora já não é com o nosso conhecido «s»).
Ora, mas donde vem o tal «s» de «spiaggia»? Se fosse só «piaggia», percebíamos melhor a ligação à «plaja» sarda, à «platja» catalã, à «playa» castelhana, à «praia» galega e portuguesa… Dizem-nos alguns dicionários que aquele «s» é um prefixo de intensificação. Mas porquê? Não sei — mas concordo que uma praia intensa é uma boa descrição de algumas praias italianas…
Mas este é um prefixo peculiar. É um prefixo de intensificação, mas também pode ser usado para inverter o significado da palavra, como em «sfatto», que significa «desfeito».
Um prefixo que serve para intensificar ou para inverter o sentido dependendo da palavra?… Muito confuso? Ora, temos o mesmo prefixo! No nosso caso, é «des». Pode intensificar em «desinquietar» ou inverter em «desfazer»…
Tudo depende da palavra — e, para dizer a verdade, também do registo. No registo popular, é um prefixo muito usado para intensificar a palavra, como em «deslargar» — um uso que pode ser um pouco arriscado na escrita... No entanto, longe de ser um erro (é apenas um uso característico de certos registos e não de outros), este «des» intensificador consegue ser bastante subtil. Por exemplo: se o usarmos com a palavra «trocar», o sentido torna-se muito concreto: trocar uma nota por moedas mais pequenas… Quem diria que um prefixo tão informal pode dar um sentido tão rigoroso a uma palavra?
Tudo isto pode ser interessante, mas agora o que apetece é um mergulho, não é? Peço ao leitor um pouco mais de paciência. Temos ainda uma paragem. A partir da Sardenha, podíamos ir a muitos sítios — saltar para a bota de Itália, passear pelo Adriático, pensar nas praias gregas… Mas rumemos antes a um pequeníssimo país perdido no meio do Mediterrâneo.
4. «Xatt il-baħar»: palavras árabes em praias europeias
Convido então o leitor a rumar à última paragem da nossa viagem pelas praias do Mediterrâneo… Malta!
Em Malta, ali a sul, a praia chama-se assim: «xatt il-baħar».
Donde vem esta expressão tão diferente das outras praias do Mediterrâneo? Bem, se lhe disser que, em árabe, «costa» é «šaṭṭ» e «mar» é «baḥr», talvez o significado se torne mais claro.
Ah! Aquele «il-» ali no meio tem muito que ver com o famoso «al» do árabe — que também existe no início de tantas palavras portuguesas, a começar pelo Algarve…
O maltês é uma língua especial: não só a sua ortografia tem uns quantos símbolos que não encontramos em mais lado nenhum deste continente (como o «ħ» lá pelo meio da praia), como é a única língua semítica da Europa, ou seja, uma língua irmã do árabe e do hebraico. Na verdade, tem uma ligação estreitíssima ao árabe tunisino — o vocabulário é que foi beber muito ao italiano.
Se o leitor se encontrar nessa ilha (onde também nos podemos entender em inglês), procure ver placas nesta língua.
Para ficar a conhecer o aspecto daquela que é uma das línguas oficiais da União Europeia, deixo aqui o segundo artigo do Tratado da União Europeia em maltês:
«L-Unjoni hija bbażata fuq il-valuri tar-rispett għad-dinjità tal-bniedem, il-libertà, id-demokrazija, l-ugwaljanza, l-istat tad-dritt u r-rispett għad-drittijiet tal-bniedem, inklużi d-drittijiet ta' persuni li jagħmlu parti minn minoranzi. Dawn il-valuri huma komuni għall-Istati Membri f'soċjetà fejn jipprevalu l-pluraliżmu, in-non-diskriminazzjoni, it-tolleranza, il-ġustizzja, is-solidarjetà u l-ugwaljanza bejn in-nisa u l-irġiel.»
Faz-lhe impressão esta misturada? Ora, não é a primeira nem a última língua a ser criada através da mistura sem vergonha de outras línguas. Até o inglês é assim: uma base anglo-saxónica com uma catrefa de palavras de origem latina. O maltês tem uma base semítica e muitas palavras de origem latina.
Agora, a navegação podia continuar. Mas o que apetece agora é mergulhar no mar, não é? Mergulhemos, pois…
Boa praia!
Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu livro mais recente é História do Português desde o Big Bang.
Comentários