O primeiro beijo desta viagem é uma pequena escultura com 11 000 anos. Foi criada antes da escrita da Suméria, antes dos faraós do Egipto, antes da Bíblia, numa época em que começávamos a dar os primeiros passos na agricultura — precisamente na zona onde dávamos esses passos.
Foi encontrada perto de Belém, numa gruta de Ain Sakhri, e está hoje no Museu Britânico.
Na perspectiva da foto vemos um abraço, mas se virarmos a escultura temos surpresas…
Aparece-nos, à vez, um pénis, uma vagina, um par de mamas e ainda (como se não bastasse) dois testículos. É só ir virando este brinquedo antigo… Tem 11 000 anos, mas parece saído da imaginação febril de um adolescente (o que talvez até seja verdade).
A estátua é um comovente abraço — e uma antiquíssima representação do acto sexual e dos órgãos sexuais.
Sabe-se pouco sobre quem criou a escultura ou para que serviria. Foi encontrada entre objectos domésticos: era qualquer coisa que estava na casa de alguém. Talvez fosse um objecto religioso, para um ritual de fertilidade. Talvez não passasse de uma brincadeira para divertir os vizinhos e amigos.
Imagino o que pensarão, daqui a 11 000 anos, arqueólogos que encontrem uma qualquer parede de uma cidade antiga com uma obscenidade lá rabiscada em graffiti. Ficarão tão fascinados como nós?
Lá fascinado fiquei… Encontrei a estátua pela primeira vez no livro A History of the World in 100 Objects, de Neil MacGregor. (Fica a ideia de leitura.) Convido ainda a ouvir o episódio de rádio da BBC sobre a estátua, num programa que deu origem ao livro referido.
E agora, os 7 beijos em 7 línguas…
Natufiano. Começamos no momento em que a estátua foi criada, perto de Belém. Que língua falariam os criadores da estátua? A sua cultura é hoje chamada «cultura natufiana». Foi das primeiras culturas a desenvolver a agricultura, ainda de forma incipiente. Não fazemos ideia que língua falariam. Especula-se que poderiam falar uma língua que veio a dar origem às línguas semíticas e indo-europeias, ou talvez apenas às línguas semíticas, mas pouco sabemos de concreto. No entanto, não é difícil imaginar que teriam palavras para beijo, amor, sexo — e um palavrão para cada um dos órgãos representados na estátua.
Egípcio. Atravessamos o Sinai e chegamos ao Egipto. Na língua dos hieróglifos, a mesma palavra servia para «beijar» e «cheirar». Era algo como /san/. Poderá ser coincidência, mas uma das razões normalmente apontadas para a existência do beijo entre os humanos é a necessidade de cheirar os possíveis parceiros… Por isso, aliás, nos preocupamos tanto com o hálito. O certo é que é um hábito que não partilhamos com outros animais — e parece nem ser universal entre os seres humanos. Ainda hoje, há culturas de caçadores-recolectores em que as pessoas não se beijam na boca.
Árabe. Ainda no Egipto, mas no presente, encontramos a palavra árabe «bawsa» para beijo. Em muitas línguas, o beijo começa por /b/. Poderá ter havido empréstimos, origem comum — ou estarmos perante um efeito de onomatopeia. Afinal, o /b/ pronuncia-se com os dois lábios. Já que falamos do árabe, podemos fazer a pergunta: será que a língua que se ouve nas ruas do Egipto é a mesma língua que se ouve nas ruas de Marrocos (por exemplo)? Aqui fica um artigo sobre o tema.
Maltês. Nesta viagem, saímos do Egipto e vamos até Malta. No maltês, beijo diz-se «bewsa», que mostra a origem semítica da língua. A palavra tem também a forma colectiva «bews» (beijos em geral) e «bewsiet» (um plural particular, chamado paucal, que representa quantidades até 10, ou seja, «uns quantos beijos»). Pois é: há línguas em que os nomes têm mais do que duas formas quanto ao número…
Italiano. O maltês é uma curiosa língua híbrida, com uma origem e gramática semíticas, mas muito vocabulário italiano. Pois bem, aportemos à Itália: por lá, um beijo é «bacio», que se lê /ˈbatʃo/. O plural é «baci».
Francês. Em francês, o verbo «baiser», que significava «beijar», passou a ser uma forma muito crua (digamos assim) de designar o acto sexual. Tal como na estátua lá em cima, há pouca distância entre um beijo e o sexo. E também tal como na estátua, o abraço anda a rondar. Em francês, «embrasser» tomou o honroso lugar da palavra caída em perdição («baiser») e significa hoje «beijar na boca». Diga-se que, no Canadá, o «baiser» manteve-se com o sentido um pouco mais inocente.
Português. Saltando para o português, criámos, a partir do beijo, o «beijinho». Como acontece muitas vezes, o diminutivo muda o significado, mas não designa algo pequeno. É apenas um outro tipo de beijo, mais inocente. Já agora, um aviso: o beijinho português, se passarmos a fronteira para Norte, é o «bico» galego. Sim, «muitos beijinhos», em galego, diz-se, no dia-a-dia, «moitos bicos». Se voltarmos para sul e começarmos a falar de bicos, rapidamente percebemos que uma palavra inocente ganha contornos bem mais adultos num instante…
Entre beijos franceses e bicos galego-portugueses, estas palavras parecem andar sempre a resvalar (para a cama).
Marco Neves | Professor e tradutor. Escreve sobre línguas e outras viagens na página Certas Palavras. O seu livro mais recente é História do Português desde o Big Bang.
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