Recentemente, um artigo tinha como título “A violação é a primeira experiência sexual de milhões de mulheres, indica um novo estudo”. Antes de se ler o texto, este título dita o tom e influencia a forma como as pessoas vão encarar e interpretar o conteúdo. A realidade é que estas mulheres, vítimas/sobreviventes de violência sexual, não tiveram uma experiência sexual que correu mal; estas mulheres foram violadas. Ponto.
Todavia, o problema desta narrativa vem desde o próprio estudo que alimenta o artigo “Association Between Forced Sexual Initiation and Health Outcomes Among US Women”. Vamos esclarecer: uma iniciação forçada ou qualquer ato que seja forçado não é sexo, nem é uma experiência sexual, é abuso, é violência sexual. Sexo é uma experiência saudável, positiva, prazerosa e consentida. Se é forçado, falamos de abuso e de crime.
Compreendo que haja quem confunda estes dois universos - o do sexo e o da violência sexual. Aliás, a própria definição desta forma de violência usa “sexual” para a descrever. Mas talvez isso também deva ser alvo de uma reflexão. Se pensarmos num ato de violação, vamos mesmo acreditar que a pessoa vitimada teve relações sexuais? Não. Estamos a falar de sexo? Também não.
Quando temos dados que indicam que 1 em cada 3 mulheres e 1 em cada 6 homens é vítima de alguma forma de violência sexual, é importante esclarecer de que se trata de crime. Não foram experiências sexuais “desagradáveis” ou que “correram mal”. Esta narrativa contribui para que as vítimas tenham dificuldades em se identificar e reconhecer como tal, e em procurar o apoio que merecem. Não é por acaso que apenas 16% dos homens que foram abusados reconhece ter sido abusado, e também não é por acaso que a maioria destes homens demora entre 20 a 30 anos até procurar apoio. Estes crimes podem ser eventos traumáticos para quem é vitimado e podem ter consequências devastadoras nas suas vidas. Vivemos num contexto social recetivo à ideia errada de que violência sexual é sexo e isso pode tornar-se num obstáculo ao pedido de apoio e no reconhecimento dos próprios direitos das vítimas. É fundamental que, cada vez mais, o conhecimento público, a consciência social e política reconheçam e aceitem que violência sexual não é uma experiência sexual.
Pensar e comunicar violência sexual
Numa outra ocasião li uma notícia que referia que um padre tinha sido suspenso das funções por “ter engravidado uma catequista, com quem iniciou uma relação quando esta era menor”. Mais à frente, era referido que o “sacerdote teve um filho com uma catequista, com quem se envolveu quando esta era menor de idade. O primeiro beijo entre ambos terá acontecido quando a jovem tinha 14 anos”. Neste caso, tal como outros, há uma romantização do crime. Esta não é uma história de amor para se contar aos filhos e netos. Este é um caso de violência sexual que afeta muitas raparigas e também rapazes. Neste caso em particular, convém ainda reforçar que o sacerdote não teve um filho com a catequista. A verdade é que o sacerdote abusou de uma menor, e como consequência engravidou essa mesma menor. Do mesmo modo que não podemos aceitar que se diga "o primeiro beijo entre ambos terá acontecido quando a jovem tinha 14 anos". Não existiu um beijo entre ambos. O que aconteceu é que um homem adulto, um sacerdote, abusou do poder e da responsabilidade que tinha e abusou sexualmente de uma jovem.
Quando o cantor Matias Damásio partilhou que foi abusado por uma mulher quando era criança li comentários nas redes sociais que diziam “uma violação das boas”, “quem me dera a mim”, “isto é só para fazer inveja”, “só eu é que não tive esta sorte”. Porque, além da romantização destes crimes, nos casos dos rapazes que são abusados por mulheres a narrativa é de que teve sorte. Nem sequer é percecionado como abuso. Esta é outra ideia errada, de que os homens têm sorte se forem abusados por mulheres. Mas e se forem abusados por homens, como acontece na maioria dos casos? São vistos como homossexuais de uma forma pejorativa como se se tratasse de um problema. A verdade é que há muito por fazer de modo a erradicar o imenso ruído à volta destes casos. Mas sabemos que o resultado e o impacto que estas narrativas têm nas vítimas é o da contribuição e o da manutenção do longo silêncio a que são remetidas.
Enquanto sobrevivente de violência sexual, que passou mais de 20 anos em silêncio, técnico de apoio à vítima e dirigente da Quebrar o Silêncio - a primeira associação que presta apoio especializado para homens vítimas de violência sexual - gostaria que estes casos fossem reconhecidos como eventos traumáticos, independentemente do sexo do abusador ou da vítima. Gostava também que houvesse mais empatia pelas vítimas que têm a coragem de partilhar as suas histórias e de fazer a denúncia, e que a forma como comunicamos estes casos fosse enquadrada e apresentada como aquilo que são: crime.
Na associação Quebrar o Silêncio prestamos apoio especializado para homens vítimas de violência sexual. Se foi vítima de abuso sexual, na infância ou em idade adulta, contacte-nos através do email apoio@quebrarosilencio.pt ou da Linha de Apoio 910 846 589. Os nossos serviços de apoio são confidenciais e gratuitos.
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