Nero, Mago e Vicente. Os bichos que são homens e que nos contam histórias de todos nós
"Nada mais lhe restava sobre a terra senão morrer calmo e digno, como outros haviam feito a seu lado".
Não sei se, quando o escreveu, Miguel Torga — o homem com pseudónimo de planta brava da montanha — pensou que a sua morte podia ser como a de um bicho. É que a frase aqui citada não é mais do que o destino de Nero, o cão que dá nome ao primeiro conto de Bichos. E o escritor dessa obra, esse Adolfo Correia da Rocha que só conhecemos pelo outro nome, morreu há precisamente 25 anos, a 17 de janeiro de 1995.
Permita-me por isso, caro leitor, usar algumas das personagens destes contos (e as suas características de bichos-humanos) para olhar para a atualidade. Afinal, não somos assim tão diferentes do que ali está escrito.
Primeiro vem Nero, o cão com nome de imperador romano. Sem lhe querer estragar a trama — se é que ainda não leu —, digo apenas que o pobre animal só queria morrer feliz, sabendo que foi amado. Não queremos nós também? Temos amores, temos amizades, temos traições. Temos reviravoltas, por vezes. E até são essas que nos podem salvar a vida.
Não acredita? Leia esta história que hoje lhe quisemos contar, sobre ex-amigos que quiseram matar e ex-inimigos que salvaram. É a história de como o Governo da Colômbia evitou que o ex-líder das FARC, e seu antigo rival, fosse assassinado. Não consigo saber o que pensou Rodrigo Londono, conhecido pelo nome de guerra Timochenko, mas certamente que, um dia, vai recordar-se deste episódio caricato como um daqueles que marcam a sua passagem por este mundo.
Depois, voltando às palavras de Miguel Torga, temos Mago. É o gato que, sendo domesticado e acarinhado, deixa de ser gato: deixa de parte os instintos naturais e aproveita a vida boa que lhe possibilitam, com todas as mordomias.
O dia de hoje traz um episódio que é precisamente o oposto deste, em que o ser humano quer ser, talvez, menos bicho. E a chapada de luva branca surge, mais uma vez, pela voz de Greta Thunberg, que participou hoje na cidade suíça de Lausana numa nova manifestação na defesa do clima, antes de viajar para o Fórum Económico Mundial, de Davos. "Sem natureza, sem futuro", gritou-se por lá. E nós, deixamo-nos estar numa vida certa ou queremos mudar tudo?
Mas continuemos. Mais para a frente, já mesmo no fim do livro de contos (deixo as restantes onze personagens para descobrir por si), é-nos apresentado Vicente, o corvo negro que pretende escolher livremente o caminho que quer seguir, sem medos.
Vicente é a insatisfação, é o querer mais e melhor. É o querer outra vida, diferente. Tal como querem os 251 homens vítimas de abusos sexuais que a associação Quebrar o Silêncio apoiou em três anos. Muitos deles nunca partilharam a sua história de abuso, "estiveram em silêncio grande parte das suas vidas”, referiu Ângelo Fernandes, fundador da associação. Podemos ver estes pedidos de ajuda como um levantar voo? Talvez. E que o caminho depois disso seja mais bonito (sempre com apoio, porque até o Vicente percebeu que sozinho não era mais simples).
Miguel Torga conta, na verdade, histórias de homens, mas cada ser humano é um bicho. Com lutas constantes, sejam estas contra Deus, o Homem ou contra a natureza. Hoje, neste dia que foi assim, entre metáforas, eu sou a Alexandra Antunes e, dentro deste livro de contos, agora sou um bocadinho como a Cega-Rega, a cigarra.
A sugestão no fim desta crónica é só uma: leia Bichos, se quiser adivinhar porquê. "É difícil, mas vai. Desde que haja coragem dentro de nós, tudo se consegue".
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