Crónica sentimental de um título mais em esforço do que em jeito

João Dinis
João Dinis

28 de abril de 2002. No Estádio da Luz, Pedro Mantorras marca o 2-1 para o Benfica num jogo em que defrontava o campeão em título Boavista, que perseguia o Sporting no primeiro lugar do campeonato. Faltavam oito minutos para o final do jogo e, com menos um jogador em campo, o Benfica entregava ao seu rival de sempre o segundo título em três anos.

É certo que havia Mário Jardel e os seus 42 golos. Que havia João Vieira Pinto, o menino de ouro da Luz que o Benfica não quis e que passou para o outro lado da 2.ª Circular para com ele fazer dupla. Que havia André Cruz, Paulo Bento e dois jovens a despontar em Hugo Viana e Ricardo Quaresma. Tudo isto é verdade. Mas também não é menos verdade que depois do segundo título em três anos – e depois do primeiro desses dois ter chegado após uma “seca” de 18 anos –, seria difícil de imaginar que o Sporting levaria mais 19 anos a conquistar um título de campeão nacional.

Naquela noite de abril, quando milhões de adeptos leoninos festejaram o golo de Pedro Mantorras – provavelmente o único golo do angolano que alguma vez celebraram nas suas vidas –, poucos imaginariam que o doce sabor da vitória no campeonato nacional de futebol chegaria apenas ao fim de 19 anos. E menos ainda que seria um assumido benfiquista a adocicar-lhes novamente a boca. Mas já lá vamos.

A história recente do Sporting é recheada de quase tudo menos de títulos.

De 2002 para cá, houve anos “do quase”, da semana fatídica de 2005 em que campeonato e Taça UEFA são perdidos em quatro dias, ao recente campeonato de 2016, em que aquela bola chutada por Bryan Ruiz por cima da baliza benfiquista ainda causa indisposição aos adeptos leoninos que se entusiasmaram com o Sporting de Jesus, provavelmente uma das equipas que mais entusiasmou as hostes de Alvalade nestas quase duas décadas.

Mas foram mais as épocas em que no Natal os sportinguistas já não contavam com prendas em maio do que o contrário. E se em 2013 os leões fizeram a pior época desportiva de sempre, terminando em 7.º lugar, em 2018 o Sporting teve provavelmente um dos piores momentos da sua história – senão o pior –, com o episódio em que cerca de meia centena de adeptos invadiu a Academia de Alcochete, agrediu jogadores e treinadores. As imagens correram mundo e o clube que para muitos sempre foi de “elite” emaranhou-se em tribunais e lutas pelo poder diretivo que honraram tudo menos uma história que faz do Sporting um dos mais titulados clubes portugueses (se somarmos as várias modalidades é um dos mais titulados do mundo, lado a lado com o poderoso Barcelona), com milhões de adeptos espalhados pelos quatro cantos do globo.

Ser do Sporting foi tudo menos fácil, nos últimos 19 anos. Aliás, ser do Sporting, nos últimos 40 anos, foi uma tarefa muito complicada. De 1980 para cá, os leões somam apenas cinco títulos nacionais. Cinco campeonatos em mais de 40 anos é o palmarés recente de um clube que faz parte dos chamados três grandes do futebol português, mas que nos últimos anos esteve quase sempre mais próximo de todos os outros do que de Benfica e Porto.

E é verdade que ser de um clube não é uma tarefa que se pode medir em termos de maior ou menor dificuldade. A “dificuldade” de que aqui se fala tem a ver com o investimento emocional que é colocado numa organização que, no final de cada época, não dava retorno. Uma espécie de investimento a fundo perdido, se é que podemos misturar termos financeiros com futeboleiros.

Até que chega Rúben Amorim, o “tal” assumido benfiquista que, tal como Mantorras em 2002, voltou a fazer os adeptos do Sporting sorrir. Tal como no ano 2000 (ano em que os leões terminaram com a “seca” de 18 anos sem vencer), o clube de Alvalade partiu para esta temporada sem grandes expectativas, apesar do forte investimento num treinador millennial que custou 10 milhões de euros aos cofres de um clube em que o dinheiro não abunda.

O Sporting sagra-se campeão tendo ao leme um treinador de 36 anos que nunca assumiu a candidatura ao título até este estar apenas à distância de três pontos (ou dois, para ser mais exato) e que partilha com o último técnico a vencer o título pelos leões o facto de apostar em jovens (Quaresma e Hugo Viana em 2002, Nuno Mendes e Tiago Tomás em 2021, só para dar alguns exemplos) e de dar conferências de imprensa que muitos gostam de ver, se bem que a boa disposição de Amorim e o sotaque de Bölöni provocaram sorrisos não exatamente pelas mesmas razões.

Para além disso, os leões têm na sua presidência um dos menos consensuais líderes dos últimos anos. É provável que Frederico Varandas não tenha o “desamor” que tiveram outros nomes (com Godinho Lopes à cabeça e Bruno de Carvalho logo depois, porque apesar de ter sido destituído continua a despertar paixões), mas não é tão amado – pelo menos até agora – como outros líderes foram, mesmo aqueles que não conquistaram títulos.

Mas neste momento, nada disto importa. No final do dia (ou do campeonato), o que importa é quem lá está em cima. E o Sporting conquistou esse primeiro lugar com sangue, suor e lágrimas. Este é um título mais em esforço do que em jeito. Ou mais em força de que em jeito. Foi mais livres de Paulo Torres a tentar furar as redes, do que de André Cruz “onde a coruja faz o ninho”. Mais carrinhos de Vidigal para “limpar”, do que fintas de Cristiano Ronaldo para levantar o estádio. Mais calções sujos de Acosta a deslizar para um golo de recarga, do que cabeceamentos elegantes de Mário Jardel para o fundo da baliza.

Alguém dizia que ser do Sporting “é por amor, não é por interesse”, como num casamento em que é preciso gostar-se muito para não haver divórcio. Mais habituados a não ganhar do que a vencer, milhões espalhados pelo mundo podem hoje, pelo menos durante umas horas, lembrar-se dos golos de Coates em cima dos 90 minutos em vez dos seus autogolos e penáltis cometidos há uns meses; chorar lágrimas de alegria em vez de lembrar as lágrimas de tristeza dos jogadores naquela final da Taça perdida para o Desportivo das Aves, escassos dias depois do ataque à Academia.

Todos os golpes duros sofridos pelos adeptos leoninos ao longo dos últimos 19 anos têm agora o seu curativo. Não apaga tudo, mas ajuda. O Sporting é campeão, Portugal volta a ser verde-e-branco.

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