Há pouco mais de um ano, a chegada de Rúben Amorim ao Sporting Clube de Portugal era descrita como uma “loucura” ou “um murro no estômago”. Em causa estavam vários fatores, dos quais se destacavam a curta experiência do antigo médio como treinador principal, que tinha sido treinador estagiário do Casa Pia e orientado a equipa B e principal do Sporting de Braga, tudo isto no espaço de um ano, o elevado valor pago pelo clube de Alvalad para bater cláusula de rescisão à formação minhota (10 milhões de euros) e ainda o facto de Amorim ter representado o SL Benfica durante seis épocas e ser assumidamente benfiquista.

Hoje, dia 11 de maio de 2021, data que ficará eternizada na história do Sporting como aquela em que terminou o jejum de campeonatos nacionais mais longo do clube, nada parece importar. Afinal de contas, a curta experiência de Rúben Amorim não era assim tão curta; os 10 milhões - que durante a época ascenderam a 14 por atrasos no calendário de pagamentos que fizeram vencer juros - foram compensados com a entrada direta na Liga dos Campeões, competição onde os Leões não participavam desde 2018, ainda com Jorge Jesus ao leme da equipa; e o benfiquismo do técnico foi rapidamente remetido para segundo plano. Afinal de contas, não tinha sido o último campeonato ganho, em 2001/02, com um antigo jogador dos eternos rivais em grande destaque na parelha com Mário Jardel?

Esta é a breve história não de como Rúben Amorim se fez treinador, mas como mostrou ser o treinador certo para levar o Sporting à glória que lhe fugia há duas décadas.

A sobriedade entre os milhões

A contratação de Rúben Amorim ao Sporting de Braga por 10 milhões de euros (ME) fizeram do jovem técnico português, na altura, o terceiro treinador mais caro da história do futebol, atrás de André Villas-Boas (FC Porto para o Chelsea por 15 ME) e de Brendan Rodgers (do Celtic para o Leicester por 10,9 ME).

Atualmente, Amorim já não faz parte desse pódio, depois do Bayern Munich ter desembolsado 25 milhões de euros junto do RB Leipzig para assegurar a contratação de Julian Nagelsmann, fazendo do alemão, três anos mais novo que Amorim, o técnico mais caro de sempre na história do futebol. Mas isso pouco interessa, até porque cada um dos outros treinadores tiveram desfechos bastante diferentes na carreira. Villas-Boas foi despedido ainda antes da época acabar, apesar de ter lançado os Blues para uma conquista inédita da Liga dos Campeões, e Rodgers devolveu os Foxes à imagem da equipa que com Claudio Ranieri foi campeã em 2016. Já Nagelsmann só poderá contar a sua sorte a partir da próxima época, altura em que inicia o contrato com o emblema bávaro.

O percurso de Amorim com os milhões às costas haveria de ser seu e só seu, sem comparações possíveis com os outros dois técnicos com quem chegou a partilhar o pódio dos cifrões. Para além de, tal como Brendan Rodgers devolveu a equipa do Leicester à imagem de outros tempos, não se limitou a ficar próximo dela, igualou-a, conquistando o título de campeão nacional. E fê-lo de forma histórica, sem somar qualquer derrota no campeonato (até agora), um feito absolutamente inédito num campeonato português com mais de 30 jornadas. Mas isto é, como todos sabemos hoje, o fim da história.

O início é muito menos tranquilo. A história que envolvia o preço pago pelo Sporting para contratar Amorim, um clube que não se conseguia reerguer desde a saída de Jorge Jesus e a invasão de adeptos à Academia de Alcochete, as dificuldades em encontrar o treinador certo para dar uma nova vida ao clube e o jejum cada vez mais demorado na conquista de um título de campeão nacional levantavam demasiada poeira.

Alvo de comentários de velhas glórias, como foi o caso de Luís Figo, que apelidou a contratação do jovem treinador como uma “loucura”, ou de membros destacados da massa associativa leonina, como foi o caso de Nuno Mendes, mais conhecido por Mustafá, líder da Juve Leo que classificou a vinda do técnico para Alvalade como “um murro no estômago”, Rúben Amorim apareceu descontraído e bem disposto na primeira vez que falou como técnico dos Leões, ao lado de Frederico Varandas, realista perante o caminho que tinha para fazer de verde e branco

"Estou ciente do desafio. Sei que é grande, mas acredito no clube. Nem sempre se vê a grandeza, só estando cá dentro. Sempre fui adversário do Sporting, e sendo adversário é possível perceber a grandeza do clube. É um orgulho enorme estar nesta casa e defender estas cores, independentemente do momento. Acredito no clube, espero que acreditem em mim. O foco é no trabalho. Posso tentar convencer os sportinguistas que duvidam, por diversos motivos, mas isso não interessa. Interessa quem ganha. Estou preparado. Sei que há uma grande exigência, mas sei que estou preparado para este desafio", disse.

Com uma visão sóbria do caminho pela frente, aproveitou também para chutar para canto os milhões. "A exigência é sempre igual. Os adeptos querem ganhar, independentemente do valor. Fosse por 0 ou por 10 milhões de euros, eu tinha o primeiro treino preparado. Não muda nada em mim. Quando puseram a cláusula comecei a rir-me. Ninguém ia pagar esse valor por mim e aconteceu isto. Agradeço a confiança e estou preparado para retribuir. No fim, faremos as contas", brincou.

Numa época em que assumia um terceiro conjunto de jogadores, depois de Sporting de Braga B e Sporting de Braga, e numa equipa onde seria o quarto treinador na mesma temporada a sentar-se no banco, Amorim mostrou capacidade e sobriedade suficiente para mostrar que não era só mais um, ao mesmo tempo que não prometia o paraíso. Aliás, que não prometia nada mais do que trabalho e uma resposta à escolha da direção na sua pessoa dentro de campo.

O Benfica onde deve ficar, do outro lado da Segunda Circular

Com a chegada de Rúben Amorim a Alvalade, outro tema inevitável foi a ligação do novo treinador dos Leões ao Benfica. Afinal de contas, havia registos de entrevistas relativamente recentes em que este se assumia um “fanático” pelo clube da Luz e onde assumia que gostava de vir um dia a treinar os encarnados.

Antes sequer que demorasse a que isso se tornasse um problema, Amorim não fugiu ao tema logo na apresentação oficial. "Fanático pelo Benfica? Sou fanático por ganhar". "O meu foco é defender esta casa como defendi o Casa Pia. O meu empenho é igual, no Casa Pia, Braga B, Braga. Defendo as cores, não vou esconder o meu passado. Fui adversário, percebo a grandeza do Sporting. Ninguém aqui quer mais ganhar que eu", defendeu.

Já na entrevista ao Expresso, em 2017, em que assume que queria um dia treinar o Benfica, Rúben Amorim tinha assumido a mesma linha de decisão. "Um treinador tem que ter as portas abertas em todo o lado, mas, a meu ver, é preferível ser sincero com as pessoas, porque se for treinar um clube qualquer que seja adversário direto do Benfica, acho que as pessoas preferem que diga 'sou do Benfica, mas sou profissional', do que estar a dizer que era um boato. Já joguei contra o Benfica mil vezes, mesmo emprestado, e toda a gente sabe que, quando chega o momento, separo as águas", referiu na altura.

Ao longo da época, o jovem técnico cumpriu as palavras com que se apresentou e não só separou sempre as águas de forma profissional como manteve a postura honesta e mostrou conhecer e respeitar o ADN do Sporting ao montar uma equipa que bebia diretamente da formação, tendo promovido jogadores à equipa principal, como foi o caso de Nuno Mendes, Gonçalo Inácio ou Tiago Tomás, e com um capitão à antiga, com uma grande presença e que foi capaz de decidir vários jogos importantes para o título, e com um futebol atrativo.

Já na reta final do campeonato, a 1 de maio, quando o título parecia cada vez mais uma realidade, Amorim voltou a falar sobre o benfiquismo aos adeptos: “Agradeço muito o apoio dos adeptos aos jogadores porque eles dão tudo pelo clube. Eu sou mais um sportinguista. Não vou dizer que sou do Sporting desde pequenino, ou que mudei convicções, mas defendo os meus jogadores e o meu clube até à morte. Acho que tenho mais respeito dos adeptos se disser a verdade e eu sou profissional, sou do Sporting e gosto muito do clube".

Não deixa de ser um tanto ou quanto curioso que tal como na última vez que o clube de Alvalade foi campeão, que haja novamente um antigo jogador do eterno rival em destaque. Há 19 anos era João Vieira Pinto, hoje é o antigo médio.

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O facto de Rúben Amorim ter sido contratado ainda na reta final do último campeonato, permitiu que o antigo internacional português tivesse tempo para conhecer bem o plantel e as camadas jovens dos Leões e começasse desde cedo a trabalhar o novo esquema tático com que marcou a sua passagem pelo Sporting de Braga, um sistema assente em três defesas, subida, a participar no processo de criação de jogo, com um grande envolvimento dos laterais nos momentos ofensivos e uma grande mobilidade entre linhas no último terço.

Foi precisamente este esquema e este tempo que deu ao Sporting novos ídolos para o presente, a época do título, e para o futuro. Falamos nada mais nada menos do que Nuno Mendes, Gonçalo Inácio, Pedro Gonçalves e Tiago Tomás. Sebástian Coates como capitão e comandante da primeira linha da equipa. Ádan como pilar da experiência entre os postes.

O facto de Amorim ter construído um sistema forte taticamente, assente em pérolas da formação, devolveu o clube à imagem de outros tempos, quando a discussão sobre se o Sporting CP continuava a ser ou não um dos grandes clubes de Portugal não existia.

Com a saída prematura da Liga Europa e com o foco nas competições nacionais, o técnico conseguiu mais tempo que os rivais para trabalhar a equipa no campo (e no balneário) para o campeonato. E fazê-lo como nunca ninguém tinha conseguido: sem qualquer derrota.

A arte de saber gerir as expectativas

O Sporting tornou-se líder isolado do campeonato na sexta jornada, aproveitando um desaire em simultâneo do FC Porto e SL Benfica, que perderam nessa ronda frente ao Paços de Ferreira e ao Boavista, respetivamente. Manteve-se líder até ao final do campeonato, venceu-o, mas nenhum momento, que não aquele em que os Leões estavam apenas a 2 pontos de serem campeões, com três jogos ainda por disputar, levou a que Amorim metesse a carroça à frente dos bois.

Tal decisão na comunicação com os adeptos pode ser vários motivos. Primeiro, por experiência própria. Se é verdade que Amorim, enquanto jogador, não fazia parte da equipa do Benfica que perdeu tudo no final da temporada, em 2012/13, tendo estado emprestado ao Braga nessa época, também é verdade que integrou o plantel do clube da Luz na época seguinte e sentiu bem de perto um plantel desolado que seguia com a ambição de não voltar a deixar espaço para erros no futuro.

Depois, existe o facto da responsabilidade que vem associada a uma candidatura ao título. Com um plantel essencialmente jovem, assumir tal postura poderia levar a uma quebra de uma equipa onde brilhavam jogadores jovens. Amorim tentou sempre colmatar essa possível fragilidade no balneário com vários jogadores com elevada experiência - Ádan, João Mário, João Pereira -, mas não quis arriscar.

Nem quando o Sporting passou a consoada em primeiro lugar, algo que não acontecia há 19 anos, desde o último título leonino, Amorim mexeu uma palha no seu discurso. Afinal de contas, havia também outras épocas 'do quase', 2004/05 e 2015/16, que lhe davam a lição para gerir devidamente as expectativas dos adeptos e que não lhe frustrasse o caminho que fez com eles.

Foi assim que só no dia 10 de maio, um dia antes de se sagrar campeão nacional, Amorim admitiu que o Sporting era candidato ao título, o mais importante da história recente do clube, porque interrompe o maior jejum de sempre em Alvalade. E o seu segundo. Em duas épocas como treinador principal, Amorim soma três títulos (duas Taças da Liga e uma Liga) e prepara-se para se estrear na Liga dos Campeões na próxima época onde vai devolver o Sporting à piscina dos grandes.

É assim que hoje Rúben Amorim e o Sporting vão desfilar por Lisboa, aos ombros um do outro, naquele que foi um exercício de crescimento junto porque, afinal, os preconceitos iniciais não tinham uma série de coisas em conta. Amorim tinha pouca experiência como treinador, mas esteve vários anos sob o comando de grandes técnicos de gabarito nacional, como foi o caso de Jorge Jesus, treinador que deixa para trás neste mesmo campeonato, ou Leonardo Jardim. Foi um jogador polivalente e titular em grandes clubes, o que lhe permitiu uma compressão do jogo muito mais abrangente do se fosse dono de uma só posição. Já os milhões e o Benfica, são conversas para adeptos, com o jovem treinador a mostrar desde cedo o profissionalismo é realmente a única coisa que não se troca na vida.