O mal que a Covid-19 fez à nossa saúde

A situação pandémica melhorou novamente em Portugal. Escrevê-lo assim, numa fase em que praticamente não há restrições face ao que vivemos nos últimos dois anos, parece de somenos, mas não é.

Se há três semanas, Portugal era o país com maior número de novos casos de Covid-19 na UE e segundo no mundo, neste momento baixou para o 9.º — a isso se deve a redução da média diária de novos casos de 1.560 por milhão de habitantes para 996 à data de hoje. Nem tudo é bom, contudo: no que toca às novas mortes diárias atribuídas à covid-19, Portugal tem ainda a terceira maior média da UE, passando de 3,68 há três semanas para duas, e é antecedido por Malta, com 3,04, e Grécia, com 2,4.

Que a pandemia nos condicionou fortemente a vida, não há quaisquer dúvidas — à parte de todo o impacto económico e social, o total de população da União Europeia baixou uma vez mais devido à pandemia: está nos 446,8 milhões de habitantes, quando em 2021 estava nos 447 milhões e em 2020 nos 447,7 milhões.

De acordo com o serviço estatístico europeu Eurostat, verificou-se também, pelo segundo ano consecutivo, uma situação de mudança natural negativa, com mais mortes do que nascimentos, “muito provavelmente devido ao impacto da pandemia”.

O impacto da pandemia, contudo, não se avalia apenas no que sofrimento que provocou diretamente, como também os seus insidiosos efeitos indiretos. Vejamos o caso de Portugal. O Conselho Nacional da Saúde divulgou hoje o relatório “Pandemia de covid-19: Desafios para a saúde dos portugueses”, e algumas das suas conclusões vêm cimentar aquilo que a nível político e técnico se vinha adiantando: de a obrigatoriedade do Serviço Nacional de Saúde ter de responder à urgência sanitária da pandemia obrigou-o a descurar outras das suas responsabilidades perante a população.

“A organização da resposta em cuidados de saúde à covid-19 teve impactos profundos na prestação de cuidados de saúde não-covid substanciados na alteração da atividade assistencial, na redução das atividades relacionadas com a prevenção da doença ou promoção da saúde”, lê-se nesse relatório. Por outras palavras, sendo a manta da saúde pública demasiado curta, para tapar a cabeça foi preciso destapar as pernas até aos joelhos.

Estas são algumas das conclusões deste relatório:

  • Comparando com a média de 2015 a 2019, em Portugal continental registou-se uma redução de 19% no número de intervenções cirúrgicas programadas em 2020, ou seja, menos cerca de 700 mil cirurgias, com redução superior (23,1%) nas cirurgias convencionais — as urgentes também sofreram uma redução, mas menor, de 8,3%;
  • Pouco menos de três quartos das consultas marcadas foram realizadas dentro do Tempo Máximo de Resposta Garantido em 2020;
  • A cobertura da população inscrita com médico de família desceu 1,1% em 2020;
  • Houve uma redução de 12,2 a 21,6% das primeiras consultas hospitalares, sendo esta diminuição menos acentuada nas consultas subsequentes (entre 0,04% e 16,6%), em 2020;
  • Houve uma séria redução dos rastreamentos: menos 102.812 pessoas rastreadas para a retinopatia diabética, menos 174.218 mulheres rastreadas para o cancro da mama, menos 124.835 mulheres para o cancro do colo do útero e menos 34.920 pessoas rastreadas para o cancro do cólon e reto, tudo isto em 2020;
  • Houve um excesso de 12 mil mortes em 2020;

Olhando para estes valores, poder-se-á cair no erro de pensar que o passado já lá vai e que felizmente a pandemia já não nos atinge como dantes. No entanto, há que ter em conta que não só os sistemas de saúde não funcionam de forma isolada (lá está, a tal metáfora da manta acima evocada), como essas insuficiências provocaram problemas com os quais estamos a lidar ainda hoje.

O relatório do CNS refere especificamente que se a diminuição da atividade assistencial teve implicações profundas no imediato, os impactos na área dos cuidados preventivos e de promoção da saúde “certamente se encontrarão com maior evidência no avanço da linha do tempo”.

Menos assistidos, ficámos mais vulneráveis. Aliás, o relatório sugere mesmo, quanto às 12 mil mortes a mai sem 2020, que “o excesso de mortalidade observado em março e abril e de outubro em diante coincidiram com os picos de incidência da infeção (primeira, segunda e início da terceira vaga), o excesso de mortalidade sentido no final de maio e entre julho e agosto de 2020 não coincidiu com incidências elevadas no país”.

E sublinhe-se o seguinte ainda: “ficámos” mais vulneráveis, mas os problemas não atingiram toda a população de forma proporcional. Foram os mais desfavorecidos a sofrer mais na pele, já que, o documento concluiu também que os trabalhadores pouco qualificados de baixas remunerações, com contratos precários ou envolvidos na economia informal, foram “não só como dos mais atingidos pela pandemia, como os que suportam intensamente as suas consequências negativas sobre o seu nível de vida”.

E agora, o que fazer? O relatório sugere também algumas medidas, entre as quais:

  • “Repensar e robustecer o Serviço Nacional de Saúde (SNS) em recursos humanos (sobretudo médicos e enfermeiros), organizacionais e financeiros, com vista a assegurar a recuperação dos cuidados e a garantir a resposta a emergências de saúde pública, minimizando o seu impacto na prestação de cuidados assistenciais e atividades preventivas”
  • Iniciar uma “profunda reforma” dos serviços de saúde pública, revendo matérias como a autonomia, os encargos e os recursos, nos seus vários níveis - central, regional e local.
  • Reforma deve assegurar a interdisciplinaridade das equipas, garantindo os recursos especializados essenciais para as funções da saúde pública, e dedicando uma “atenção especial” às crises sanitárias e, em particular, às emergências infecciosas.
  • Que se faça uma análise “transparente, exaustiva e sistemática” ao efeito da covid-19 no sistema de saúde, considerando o desempenho institucional e os resultados das políticas e ações implementadas.
  • Reforço das políticas sociais com impacto direto e indireto na saúde e no bem-estar das famílias mais desfavorecidas, preconizando a urgente implementação de medidas específicas de recuperação da aprendizagem e promoção do bem-estar das crianças, com especial atenção aos alunos mais afetados pela pandemia e com maiores dificuldades escolares.

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