80 mil milhões de dólares. É quanto a Amazon Web Services faturou em 2022. Para colocar em perspetiva, é quase três vezes a receita da Netflix e praticamente o mesmo volume de receitas da Tesla, para o mesmo período. É um número impressionante se tivermos em conta que estamos a falar "apenas" de uma subsidiária da Amazon que, quando foi lançada em 2006, não passava de um projeto secundário de um tal de Jeff Bezos para melhorar o funcionamento da sua plataforma de e-commerce.

Os anos passaram e, na última década de Internet, poucas são as plataformas do nosso dia-a-dia que não estão de alguma forma ligadas a um qualquer serviço de cloud. As plataformas de streaming onde vemos séries e filmes, as redes sociais onde nos ligamos com amigos e consumimos conteúdos de 20 segundos, as plataformas SaaS de suporte ao negócio, dos pagamentos ao recrutamento. Foi neste período que a AWS cresceu e se tornou num dos principais motores da economia e da transição digital. Muitos seguiram a sua deixa, nomeadamente a Microsoft com o Azure e a Google com o Cloud, mas atualmente mantém-se como o líder de mercado nesta área.

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Em 2023, a AWS enfrenta um novo desafio, que é também uma oportunidade: a procura por infraestrutura para desenvolver produtos de inteligência artificial. Desde o lançamento de tecnologias como o ChatGPT e o Bard, quer o público, quer os investidores, passaram a prestar mais atenção a este segmento e às empresas mais bem posicionadas para tirar proveito desta transformação.

Julian Groues foi recentemente anunciado como o novo responsável da AWS para o Sul da Europa, mais concretamente pelos mercados de França, Itália, Espanha e Portugal. Há cinco anos em cargos executivos na empresa, apresenta-se como um otimista nato, confiante tanto no posicionamento da sua empresa no que diz respeito à cloud, como na capacidade da Europa marcar terreno na inteligência artificial face aos EUA. Foi por aqui que passou a nossa conversa.

O AWS Cloud Experience é uma oportunidade, especialmente em Portugal, um mercado menor quando comparado com França ou Itália, para conhecer as empresas locais que utilizam a AWS no seu dia-a-dia?

O que eu gosto mais de ver é a paixão que as pessoas que vêm a estes eventos têm pelas tecnologias de cloud e pela AWS. Sente-se no ambiente criado por pessoas que estão a tentar mudar o mundo. É algo que me surpreendeu quando me juntei à AWS há cinco anos. Estava a conhecer clientes e perguntava "Como estão a correr as coisas?" e todos diziam que estava tudo ótimo e que as suas equipas estavam contentes a trabalhar com a tecnologia. Então, fui pesquisar um pouco sobre porque é que sentiam isso relativamente à AWS. Descobri que remonta às funcionalidades gerais da cloud e à capacidade de inovar mais rapidamente.

Normalmente, tínhamos de esperar muito tempo. Agora, pode-se aprender novas competências rapidamente. Antes, em IT, aprendia-se uma competência, por exemplo, programar numa linguagem ou saber como montar um servidor e fazia-se isso durante 15 anos. Agora, é possível aprender a fazer uma migração SAP ou de base de dados, ou a produzir tecnologias de inteligência artificial. Pode-se treinar e obter novas certificações. Os utilizadores são donos do seu próprio destino e podem fazer as coisas acontecerem quando querem, da forma que lhes for mais conveniente. E acho que estes fatores contribuem para que as pessoas estejam satisfeitas com os nossos serviços.

“Há uma grande diferença entre aprender a usar a AWS para um banco ou para o McDonald's”

Outro ponto importante é que as pessoas que vêm querem partilhar as suas experiências e aprender umas com as outras. Esta manhã [no evento] estava a usar a analogia do elefante na sala, e muitas pessoas usam cloud para coisas diferentes, mas apenas um número muito reduzido de empresas o usam para o “elefante inteiro”. Há uma grande diferença entre aprender a usar a AWS para um banco ou para o McDonald's. E uma das razões pelas quais a adoção da cloud não está a crescer mais rápido é porque não há pessoas suficientes que saibam disto. E por isso fazemos este evento, para juntar estas comunidades.

A história da AWS é um ótimo case-study, porque quando foi criada, em 2006, começou por ser um “side-project” de uma gigante do e-commerce que provavelmente não sabia que a cloud seria uma coisa tão grande. Em 17 anos, surgiu toda uma nova geração de aplicações na Internet que foram construídas na cloud, muitas delas na AWS, por ser infraestrutura pioneira. Como é que vê esta evolução da empresa e como é que isso acabou por moldar a própria Amazon?

É realmente fascinante. E tens razão, a Amazon foi criada em 1996 (os primeiros livros na Amazon começaram a ser vendidos em 1996). Os primeiros serviços da AWS foram lançados em 2006 e agora estamos em 2023 e somos um negócio de quase 100 mil milhões de dólares. O que aconteceu é que, entre 1996 e 2006, a Amazon desenvolveu software para gerir a sua “supply-chain” e o site ficou demasiado pesado e estava a abrandar a inovação dentro da empresa. Por isso, o Jeff Bezos decidiu colocar em marcha um projeto de IT para dividir a enorme base da Amazon em micro-serviços.

Hoje em dia, se fores à primeira página da Amazon.com, tens 25 programas independentes à tua disposição. Antes era um único programa que geria tudo. E assim, juntámos isso à nossa experiência em gerir “data centres” em grande escala de forma segura, barata e sustentável, para ajudar outras empresas. Não acho que naquela altura eles entendessem o quão grande esta área podia ser. Eu tive a oportunidade de entrevistar Andy Jassy [atual CEO da Amazon/ex-CEO da AWS] há três anos, e passámos 2 horas juntos a falar sobre todas estas coisas.

AWS Cloud Experience Portugal 2023
Lisboa, 10 de Outubro de 2023. Keynote de Julien Groues (Country Manager, AWS South Europe) durante o evento AWS Cloud Experience Portugal, que decorreu no Centro de Congressos de Lisboa.

Começámos [em 2006] com armazenamento e computação, os dois primeiros serviços. E agora temos mais de 230 serviços com IA, Rede, Segurança, IA Generativa com o Amazon Bedrock e todas essas ferramentas, além do armazenamento e computação. Mas o verdadeiro valor da cloud é sobretudo o do poder computacional sem servidor, APIs, soluções pré-formatadas e garantir que alguém pode usar todas estas informações. O destino da Amazon e da AWS está muito interligado. Falamos muito agora sobre IA Generativa, mas muita da experiência que temos em IA é de há 10 ou 15 anos, de como o Kindle funciona, de como nosso site está pensado, de como a Alexa foi desenvolvida, de como criamos os nossos drones. São essas experiências combinadas que nos ajudaram a estar realmente na vanguarda da tecnologia.

Ao mesmo tempo, temos desenvolvido e ajudado centenas de milhares de clientes que estão a aproveitar as ferramentas de IA da AWS para inovar. Por isso, acho que essas duas coisas andam de mãos dadas neste momento. O que partilhamos com a Amazon é a cultura, o foco no cliente e o modo como tomamos decisões. E isso ajuda-nos a criar relações muito fortes.

Mas estando o Andy Jassy agora à frente da Amazon, acredita que, em 10 a 20 anos, uma vez que a diferenciação no e-commerce é mais díficil de alcançar, a AWS tem o potencial de se tornar o principal negócio da Amazon?

Sinceramente, não sei. Acredito que provavelmente continuaremos a operar em muitos negócios diferentes. Conheço muito bem o negócio da AWS, tal como o da Amazon. Se olharmos para a AWS agora, a computação em cloud é usada apenas por 10% das empresas ou, por outras palavras, apenas 10% da sua infraestrutura IT está na cloud. Portanto, existem ainda muitas empresas a necessitar de uma transformação para serem mais competitivas, reduzir custos, aumentar a inovação e serem mais seguras.

Uma das maiores preocupações quando falo com CIOs e CEOs é precisamente a segurança. Já tive clientes no limbo porque não conseguiam pagar salários aos seus colaboradores ou porque não conseguiam abrir as suas lojas. A cibersegurança é, por isso, um risco existencial para muitas empresas. Outro tema importante é como podemos, ao mesmo tempo, ajudá-las a serem mais sustentáveis. Queremos continuar a ajudar os nossos clientes na sua migração para a cloud e acreditamos que se olharmos a 10, 15 anos, 90% do IT vai estar na cloud.

“A nossa visão é que praticamente todos os negócios e empresas serão impulsionados pela IA no futuro”

No último ano, tem havido mais ruído sobre o que a Google (com a Deepmind) e a Microsoft (com a OpenAI) têm feito em AI e a Amazon, que tem a maior plataforma de cloud, pareceu optar mais pela discrição e ver o desenrolar dos acontecimentos. Como vê este desafio e qual é a estratégia da AWS no que diz respeito ao AI?

Em primeiro lugar, hoje, empresas de qualquer tamanho e setor usam a AWS: PMEs, empresas digitais, empresas de energia como Galp ou EDP. Usam a AWS para reduzir despesas, para transformarem o seu negócio ou para serem seguros e sustentáveis. Em relação à IA e à IA Generativa, a nossa visão é que praticamente todos os negócios e empresas serão impulsionados pela IA no futuro.

E, portanto, considero que não estamos atrasados de forma alguma. Acho que temos uma estratégia um pouco diferente dos nossos rivais, no sentido em que a estratégia da AWS não é apenas oferecer chatbots e novos conteúdos, mas impactar a forma como as empresas trabalham. Sistemas como OpenAI e Bard tornaram esta tecnologia visível [a IA generativa] para o público porque podemos fazer perguntas ou conectarmo-nos a um site e ter uma nova experiência em termos de interação. A nossa abordagem é um pouco diferente. Nós fornecemos soluções B2B, ou seja, temos uma diferença mais conceptual e mais focada na experiência ao longo do tempo. Em segundo lugar, focamo-nos muito na segurança do sistema e na confidencialidade dos dados. A maneira como fornecemos IA Generativa aos nossos clientes é numa infraestrutura privada, para que possam desenvolver os melhores modelos com a garantia de que os seus dados estão protegidos.

O terceiro ponto é que não achamos que basta uma tecnologia para a abordar todos os casos de uso. Se olhar para o Amazon Bedrock (plataforma da AWS para desenvolvimento de IA), temos cinco ou seis modelos-base da Meta, da Anthropic, da Amazon ou da A20 labs, que os clientes podem utilizar de forma flexível, ajustando à sua própria aplicação. Por isso, a nossa estratégia passa por ajudar as empresas a perceber estes três pilares.

Apoio no atendimento ao cliente através da IA Generativa. Melhoria em processos criativos e de inovação. Ganhos de eficiência, desenvolvendo código mais rápido ou inovando mais rápido. Então, nossa abordagem será continuar a oferecer o melhor ecossistema para os nossos clientes. Fornecendo a infraestrutura para developers criarem modelos-base, através de plataformas como a Anthropic ou a Hugging Face. Fornecendo a infraestrutura com os chips mais poderosos, como a NVIDIA ou com chips que projetamos especificamente para os nossos clientes. Nem todos precisam do carro mais veloz para chegar ao trabalho de manhã. É uma questão de aplicar a tecnologia certa no caso de uso certo. Por último, disponibilizando APIs prontas para serem incorporadas numa plataforma ou aplicação.

“Não sou capaz de comentar a diferença entre os valores da Anthropic e da OpenAI”

Nesta era da inteligência artificial, um dos temas principais é a ética por detrás da forma como alguns produtos estão a ser desenvolvidos. Mencionou a Anthropic [recentemente investida pela Amazon] e é uma história interessante porque é uma startup fundada por pessoas que trabalharam anteriormente na OpenAI e que não concordaram com a forma como os seus modelos estavam a ser desenvolvidos. Qual é a importância destes valores nas integrações que são feitas num ecossistema como o Amazon Bedrock?

Sempre tivemos uma política rigorosa no uso da nossa cloud para garantir que as pessoas respeitam alguns princípios e que a tecnologia está a ser usada corretamente. Não sou capaz de comentar a diferença entre os valores da Anthropic e da OpenAI. Li livros e acabei inclusive de terminar a biografia do Elon Musk e ele fala um pouco sobre isso lá. Mais do que isso, não sei. No entanto, sei o que para nós é realmente importante.

Estes modelos são muitas vezes são treinados com dados públicos. A nossa visão é que é possível utilizar o modelo conforme ele foi treinado e atualizá-lo à medida que é aprimorado, por isso, é que o Bedrock é tão importante. O modelo de hoje nunca será o melhor modelo no mundo. É normal sair um novo modelo e rapidamente receber elogios pelas melhorias que traz. Mas qual é o modelo que vai sair daqui três meses? Vai ser Meta 2,3 ou 4 ou vai ser uma nova startup? As empresas têm simplesmente que estar prontas para receber esses novos modelos e integrá-los num ambiente privado e seguro. Os seus prompts são os seus prompts, os seus dados são os seus dados.

É por isso que eventos como o de hoje são importantes, porque tem tudo a ver com nuance, não é verdade? Porque há coisas que não são necessariamente super fáceis de entender. E é isso que estamos a fazer com muitos destes eventos. Queremos explicar as diferenças porque achamos que as pessoas que as entenderem vão tomar melhores decisões ou pelo menos vão tomar as decisões que querem tomar.

Hoje [no evento], houve a apresentação de muitos case-studies ligados à inteligência artificial, desenvolvidos com serviços da AWS. Há algum que o entusiasme em particular, por exemplo, com IA generativa?

Estivemos a trabalhar com um cliente de viagens e hospitalidade que tem utilizado a IA generativa para criar um consultor de viagens que permite aos clientes fazer perguntas e planear a melhor viagem. Às vezes, planear uma viagem é muito difícil e não se sabe onde ir ou como reservar um hotel. Este cliente faz tudo com IA generativa e conseguiram fazê-lo em apenas alguns meses.

Trabalhei também com um cliente ligado à moda que mudou completamente a forma como comercializa os seus produtos. Costumavam criar novos produtos, enviá-los para todo o mundo e fazer várias campanhas publicitárias. Agora, tiram uma fotografia num estúdio aos produtos e usam a IA generativa para gerar diferentes fundos de imagem.

Tenho um cliente no setor dos seguros e sabemos como são complicados os contratos com seguradoras. Fizeram uma análise de todos os contratos com IA generativa e agora, quando alguém liga para o serviço de apoio ao cliente e pergunta logo qual é a sua franquia ou se está coberto ou não. O agente de atendimento ao cliente apenas digita a pergunta, a resposta retorna imediatamente e, em seguida, oferecem algumas oportunidades de upselling, dizendo algo como "Vi que tem um seguro de casa, não gostaria de ter um seguro de carro?".

Outro é um cliente que coloca séries de TV na Internet para estarem disponíveis em replay. Eles costumavam ter uma pessoa que olhava para 20 programas por ano e escrevia o resumo. Atuamente, têm IA generativa a fazer o resumo dos programas e uma pessoa pode fazer 200 num dia, apenas corrigindo alguns erros. Mesmo no seu mundo [o dos media], tenho um cliente que está a usar a IA generativa para gerar diferentes títulos, e depois testar os títulos na Internet com diferentes audiências. Passadas algumas horas, o sistema determinará que título teve a melhor conversão e esse passa a ser o exibido para todos. Há casos de uso realmente interessantes e mal posso esperar para ver o que vem a seguir.

A AWS e Amazon são empresas americanas e um dos tópicos mais discutidos é a abordagem que a Europa e os EUA tem no desenvolvimento e na regulação de produtos de inteligência artificial. Neste sentido, quais são os maiores desafios da AWS na Europa, onde é necessário combinar a missão geral da empresa com as especificidades de mercados como França, Alemanha, Itália ou mesmo Portugal?

É obviamente importante para nós como empresa respeitar todas as leis de todos os países onde operamos. Temos que olhar tanto para as leis como para as especificidades culturais de cada um dos países, clientes e parceiros com os quais trabalhamos. Posso dizer, no entanto, que em relação à IA, estou muito otimista com o que as empresas europeias estão a fazer. Vemos empresas que estão a desenvolver modelos incríveis, como a Hugging Face, que é uma empresa europeia. Acho que a chave não está tanto na infraestrutura, mas nos serviços que estão por trás desses modelos, que permitam inovar mais rápido, de forma mais barata e com mais segurança.

O que precisamos de encorajar na Europa é o desenvolvimento deste tipo modelos que possam ser usados por empresas europeias e não europeias. Ao mesmo tempo, precisamos de garantir que empresas europeias aproveitam esses modelos o mais rapidamente possível, porque não se pode bloquear a inovação em certos países e não em outros, senão criamos um sistema de duas velocidades. Então, é aqui que também temos que ter cuidado, seguindo as regras enquanto ainda incentivamos a inovação. É um equilíbrio muito importante para nós, mas estou confiante no trabalho que as empresas europeias estão a desenvolver.

“O que me deixou mais impressionado é a capacidade de trabalho e o vibrante ecossistema de startups”

Como olha para a realidade do mercado português? Partilha algumas semelhanças com países como França e Itália e, em termos de aplicações, está muito dependente do segmento B2B e do turismo.

Eu acho que existem mais semelhanças do que diferenças, porque as empresas acabam por usar a cloud pelas mesmas razões. O que me deixou mais impressionado nos poucos meses em que tenho estado em contacto com as empresas portuguesas é a sua capacidade de trabalho e o vibrante ecossistema de startups. Há startups absolutamente fenomenais que estão a ser criadas aqui. Eu não sei se é da influência da Web Summit ou se, na verdade, a Web Summit está aqui por causa disso. Mas a vitalidade do ecossistema, a inovação que vem dessas empresas é simplesmente incrível.

E do outro lado, o apoio de empresas como a EDP, a Galp, ou a OutSystems, que agora está presente em 80 países, acho que é impressionante e foi uma agradável surpresa. Eu adoro o que faço e ouvir essas histórias de como as pessoas usam a tecnologia para transformar o que fazem ou para inventar o futuro é muito entusiasmante. É o que torna isto divertido.