No verão, uma mãe em Nashville com um distúrbio genético aparentemente incurável  encontrou finalmente um fim para o seu sofrimento. Como? Editando o genoma.  A recuperação de Victoria Gray da anemia falciforme, que lhe causava convulsões dolorosas, ocorreu num ano de avanços numa das áreas de maior desenvolvimento na investigação médica: a terapia genética.

"Esperava uma cura desde os 11 anos", contou Gray, de 34 anos, à AFP. "Desde que recebi as novas células, pude aproveitar mais tempo com minha família sem me preocupar com dor ou com uma emergência inesperada".

Durante várias semanas, o sangue de Gray foi recolhido para que os médicos pudessem chegar à causa da sua doença - células-tronco da sua medula óssea que produziam glóbulos vermelhos deformados.

As células-tronco foram enviadas para um laboratório escocês, onde o DNA foi modificado usando a técnica Crispr/Cas9, uma nova ferramenta informalmente conhecida como "tesoura" molecular.  As células geneticamente editadas foram transpostas de volta para as veias e para a medula óssea de Gray. Um mês depois, ela estava a produzir, por si, células sanguíneas normais.

Os médicos alertam que é necessário cautela, mas teoricamente foi curada.

"Esta é uma paciente. Esses são os primeiros resultados. Precisamos ver como funciona noutros pacientes", disse o médico de Gray, Haydar Frangoul, no Instituto de Investigação Sarah Cannon, em Nashville. "Mas estes resultados são realmente empolgantes".

Na Alemanha, uma jovem de 19 anos foi tratada com um método semelhante para uma doença sanguínea diferente, a beta-talassemia, que fazia com que ela precisasse receber 16 transfusões de sangue por ano.  Nove meses depois,  está completamente livre desse fardo.

"Tudo está a desenvolver-se muito rapidamente"

Durante décadas, o DNA de organismos vivos, como o milho e o salmão, foi modificado. Mas a Crispr, inventada em 2012, tornou a edição de genes mais acessível. É muito mais simples que a tecnologia anterior, mais barata e fácil de usar em pequenos laboratórios.

A técnica deu um novo impulso ao debate perene sobre o conhecimento da humanidade no que respeita à manipulação da própria vida.

"Tudo está a desenvolver-se muito rapidamente", afirma a geneticista francesa Emmanuelle Charpentier, uma das inventoras da Crispr e cofundadora da Crispr Therapeutics, a empresa de biotecnologia que conduz os ensaios clínicos envolvendo Gray e os pacientes alemães.

A Crispr é a mais recente inovação em um ano de grandes avanços na terapia genética, uma aventura médica iniciada há três décadas.  Os cientistas que praticam a técnica inserem um gene normal nas células que contêm um gene defeituoso. O gene novo faz o trabalho que o original não pôde - como produzir glóbulos vermelhos normais, no caso de Gray, ou criar super glóbulos brancos que matam tumores para um paciente com cancro.

A Crispr vai ainda mais longe: em vez de adicionar um gene, a ferramenta edita o próprio genoma.

Após décadas de investigação e ensaios clínicos sobre uma correção genética para desordens genéticas, 2019 teve um marco histórico: a aprovação para comercializar as primeiras terapias genéticas para uma doença neuromuscular nos EUA e para uma doença de sangue na União Europeia.  Juntam-se a várias outras terapias genéticas - elevando o total para oito - aprovadas nos últimos anos para tratar certos tipos de cancro e cegueira.

Serge Braun, diretor científico da Associação Francesa de Distrofia Muscular, vê 2019 como um ponto de viragem que levará a uma revolução médica.  "Vinte e cinco, 30 anos, foi o tempo que levou", disse à AFP de Paris. "Demorou uma geração para a terapia genética se tornar realidade. Agora, só vai continuar a acontecer mais rápido".

Nos arredores de Washington, nos Institutos Nacionais de Saúde (NIH), os investigadores também celebram um "período de avanço".  "Atingimos um ponto de inflexão", afirma Carrie Wolinetz, diretora associada de política científica do NIH.

Estas terapias têm preços exorbitantes, custam até dois mil milhões de dólares - o que significa que os pacientes têm pela frente negociações que não são fáceis com os planos de saúde das seguradoras.

Por outro lado, estas terapias também envolvem um regime complexo de procedimentos que só estão disponíveis nos países mais ricos.   Gray, por exemplo, passou meses no hospital com recolha de sangue, passando por quimioterapia e tendo as células-tronco editadas e reintroduzidas por transfusão, além de ter combatido uma infecção geral.

No entanto, o número de terapias genéticas aprovadas aumentará para cerca de 40 em 2022, de acordo com investigadores do MIT. Elas terão como alvo principalmente turmores e doenças que afetam os músculos, os olhos e o sistema nervoso.

A questão ética

Outro problema com a Crispr é que a sua relativa simplicidade serviu também de gatilho para a imaginação de cientistas desonestos que não partilham necessariamente a ética médica.

No ano passado, na China, o cientista He Jiankui provocou um escândalo internacional - e a sua consquente expulsão da comunidade científica - quando usou a Crispr para criar o que chamou de primeiros humanos com genes editados.  O biofísico disse que alterou o DNA de embriões humanos que se tornaram as gémeas Lulu e Nana. O objetivo era criar uma mutação que impedisse as meninas de contrair o HIV, mesmo que não houvesse razão específica para submetê-las ao processo.

"Esta tecnologia não é segura", disse Kiran Musunuru, professor de genética da Universidade da Pensilvânia, explicando que as "tesouras" Crispr com frequência fazem o corte próximo ao gene alvo, causando mutações inesperadas. "É muito fácil fazer isso se não se importar com as consequências", acrescentou.

Apesar das armadilhas éticas, a restrição parece ter prevalecido até o momento.

A comunidade está de olho na Rússia, onde o biólogo Denis Rebrikov disse que quer usar o Crispr para ajudar pais surdos a terem filhos sem a deficiência.

Também existe a tentação de editar geneticamente espécies inteiras  - mosquitos causadores da malária no Burkina Faso ou ratos que hospedam parasitas  que transmitem a doença de Lyme nos EUA.

Os investigadores responsáveis por estes projetos estão a avançar com cuidado, porém, plenamente conscientes da imprevisibilidade das reações em cadeia no ecossistema.

Charpentier não acredita nos cenários mais distópicos previstos para a terapia genética, incluindo "biohackers" americanos que se injetam com a tecnologia Crispr comprada on-line. "Nem todos são biólogos ou cientistas", disse.

E a possibilidade de sequestro militar para criar vírus ou bactérias que matam soldados Charpentier acha que a tecnologia geralmente tende a ser usada para melhor. "Sou bacteriologista - falamos sobre bioterrorismo há anos", disse. "Nunca aconteceu nada".