Há algo de especial nos filmes. Pelo que nos fazem sentir, pelo que nos fazem pensar, por combinarem o melhor de outras formas de arte e cultura, como a literatura ou a música. Independentemente do género ou tipo de história que nos apela mais individualmente, o cinema é sinónimo de uma experiência única que desperta as emoções e alimenta a alma. Mas não só: o cinema é mais ou menos mágico porque funciona como um espelho da nossa sociedade. E isso tem tanto de fascinante como de aterrador. "Oppenheimer", de Christopher Nolan, que estreou neste fim de semana, foi só o último exemplo disso.
Como nota a Axios, há muita gente por Silicon Valley (e não só, na verdade) que tem estado analisar as semelhanças entre o atual medo existencial em torno da Inteligência Artificial (IA) e os pesadelos que assombraram os cientistas que criaram a bomba atómica nos momentos mais negros da Segunda Guerra Mundial. Baseado na biografia de 721 páginas "American Prometheus: The Triumph and Tragedy of J. Robert Oppenheimer", o novo filme de Nolan tem levado a que nos últimos meses tenham surgido muitos paralelismos entre os tempos idos do Projeto Manhattan que o filme retrata e a atualidade.
A analogia com as armas nucleares acontece porque existem muitas pessoas a alertar que a IA é uma tecnologia de ponta que surgiu com uma rapidez assustadora e que acarreta sérios riscos – difíceis de prever -, com os quais a sociedade não está preparada para lidar. E ganhou expressão e outra dimensão quando os líderes da OpenAI, Anthropic e Google DeepMind, bem como "os Padrinhos da IA", Geoffrey Hinton e Yoshua Bengio, e figuras proeminentes, como Bill Gates, assinaram uma carta aberta em que alertavam que estes riscos com a IA são "comparáveis a pandemias ou a guerra nuclear".
Mas será que estamos a viver um "o momento Oppenheimer" da IA? Christopher Nolan, o realizador do filme que nos traz aqui hoje, acredita que sim. Numa entrevista recente, o britânico disse que muitos dos especialistas com quem falou sobre o assunto e que "trabalham para tornar a inteligência artificial mais poderosa enfrentam muitas das mesmas questões morais que o 'pai da bomba atómica'".
No entanto, existe quem saliente que a analogia com bombas nucleares pode ser enganadora ou arrojada — é o caso da Vox, que publicou um extenso artigo que detalha o que é que a história das armas nucleares pode (e não pode) dizer-nos sobre o futuro da IA. A par, a The Atlantic fez algo no mesmo sentido, mas frisando desde o início que a nova tecnologia é mesmo incomparável e que é difícil encontrar uma analogia adequada (ainda que dê vários exemplos).
Os dois artigos são diferentes, mas a sua génese toca em pontos comuns:
- A inteligência artificial, mais concretamente a IA generativa, em termos gerais, está acessível à maioria dos indivíduos e das empresas com ligação na Internet e há informação de como utilizá-la; no sentido inverso, as armas atómicas continuam a ser uma tecnologia ao dispor apenas de certos Estados e não é utilizada desde 1945 (se bem que os seus efeitos de dissuasão possam ser considerados uma aplicação contínua, como a guerra da Ucrânia o tem demonstrado).
- A inteligência artificial também difere porque depende da motivação humana e se esta ferramenta vai ser utilizada para o bem ou para o mal. Exemplo: sem malícia, o ChatGPT pode ser utilizado para fins de entretenimento ou até para educação; já o seu irmão gémeo mau da Dark Web, o WormGPT, não tem filtros e por 60 euros por mês não tem problemas em criar malware para ajudar criminosos.
No fundo, a ideia que os dois artigos transmitem é que, para já, existem algumas linhas comuns que levam à comparação que está a ser feita. Mas fazem saber que existem limites até para os paralelismos, ainda que tenhamos vontade de encontrar analogias que nos permitam perceber algo que desconhecemos.
O que não quer dizer que não seja necessário regular o setor ou que seja preciso pensar no pior que a tecnologia pode trazer à sociedade – se a Skynet (ainda…) de “Exterminador Implacável” é ficção científica, a IA generativa já está apta a fazer muito trabalho humano e é preciso discutir se a sociedade está preparada para lidar com isso. Para manter a toada cinematográfica, tome-se por exemplo a greve dos argumentistas e dos atores em Hollywood.
Numa altura em que os profissionais do setor lutam contra os grandes estúdios para evitar que o mundo ficcionado da série "Black Mirror" salte para o mundo real, uma empresa chamada Fable Studios lançou um vídeo da sua plataforma, "A Simulation", que aparentemente consegue criar um episódio falso da série de animação "South Park" com recurso apenas a algumas prompts e indicações — o resto fica a cargo do algoritmo e da inteligência artificial.
Parafraseando a Axios, até aos dias de hoje "nem as armas nucleares nem os algoritmos destruíram ainda o futuro da humanidade – mas o milénio ainda é recente". Tão recente que, quando lemos coisas como as principais potências militares do mundo já terem iniciado uma corrida para integrar a IA na guerra, a dúvida fica no ar.
Por enquanto, dizem que os algoritmos têm apenas controlo de drones e que ninguém está a pensar em convidar a IA para formular planos bélicos e de invasão nas grandes reuniões com presidentes e chefes militares num futuro próximo. Mas se o primeiro passo está dado, fica difícil de ter confiança ou esperança num futuro sem algoritmo de guerra. Independentemente de os paralelismos nucleares atualmente serem arrojados ou não.
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