Deveria o software ser sujeito a leis mais rígidas de *copyright* ou, em bom português, direitos de autor? É uma questão que a indústria tecnológica e vários reguladores de mercado já colocam há algumas décadas e que tem ganho cada vez mais força, à medida que diversas big tech vão formando monopólios com produtos ou serviços que contêm linhas de código que não foram necessariamente desenvolvidas por si.
Um dos casos mais mediáticos, que simboliza esta discussão, é o da Oracle vs Google, com a primeira empresa a acusar a segunda de ter usado (e abusado) da sua posição no mercado para tirar proveito, de forma ilegal, de um software seu para desenvolver um serviço que passou a dominar o mercado. “Qual?”, pergunta o leitor. Já ouviu falar do sistema operativo Android? "Só" está presente em cerca de 2 mil milhões de smartphones, hoje em dia. Na semana passada, quase 11 anos depois do início do processo, o Supremo Tribunal nos EUA ficou do lado da Google e decidiu que a tecnológica não tinha feito nada de errado.
Vamos voltar atrás
2009: Oracle compra a Sun Microsystems, empresa responsável pelo Java, a linguagem de programação e plataforma de software utilizada para a criação de milhões de aplicações online.
- 2010: Oracle processa a Google por infração de patentes associadas ao Java (agora seu) no desenvolvimento do sistema operativo Android e exige uma modesta compensação de 9 mil milhões de dólares. A Google defende-se dizendo que utilizou apenas 11.5 mil linhas de código que faziam parte da versão open-source da API do Java, que podia ser utilizada por todos, e que estava dentro dos limites legais.
Relembrar que os APIs (Interfaces de Programação de Aplicações) são um conjunto de protocolos definidos por um software para que outros possam tirar proveito das suas funcionalidades e que podem ter versões pagas.
2010-2020: As duas empresas trocam vitórias entre si em diversos tribunais, até o caso ser conduzido para o Supremo Tribunal. O tema central torna-se mais ideológico para quem o julga, com a Oracle a argumentar que os APIs deveriam ser vistos como produtos criativos e tratados legalmente como tal, ou seja: os APIs deveriam ser sujeitos a direitos de autor.
2021: O Supremo Tribunal, depois de analisar o caso, agora com no âmbito de direitos de autor, decide que a Google fez tudo dentro daquilo que nos EUA se chama de “fair use”:
1. O código foi utilizado para desenvolver um serviço com uma nova utilidade (o Android);
2. O Tribunal decidiu não deliberar sobre se os APIs estão ao mesmo nível de um livro de José Saramago, de um quadro de Picasso ou de um filme de Christopher Nolan;
3. O Tribunal determinou que o Google utilizou apenas 0.4% do código do Java;
4. O Tribunal considerou que a criação deste novo serviço não teve efeitos negativos no mercado e que criou valor para os seus utilizadores.
Quem ficou feliz com isto tudo?
O peso das APIs no tecido empresarial americano e global teve um grande peso na decisão do Supremo Tribunal. Por um lado, pode argumentar-se que as APIs são veículos de inovação ao permitir que startups e empresas possam construir novos serviços e produtos sem ter de desenvolver código de raiz ou pagar por código já existente (poupando tempo e dinheiro). Adicionalmente, a utilização de APIs semelhantes em várias plataformas permite uma integração mais fácil de diferentes funcionalidades, o que melhora a experiência do utilizador.
Por outro lado, esta decisão também significa que empresas maiores podem facilmente tirar proveito do trabalho de startups e incorporar novas funcionalidades nos serviços sem terem de as compensar financeiramente. Não é, por isso, grande surpresa que a Google tenha tido ao seu lado muitos dos seus habituais rivais como, por exemplo, a Microsoft. Inimigos, Inimigos, negócios à parte. Do lado da Oracle estavam, curiosamente, diversos estúdios de cinema e publishers que temem que uma suavização da regulamentação de copyrights possa significar más notícias quando os seus conteúdos aparecerem em plataformas que não deviam.
No futuro… o mais provável é que surjam mais casos deste género, na procura de um equilíbrio ou solução numa indústria que, para muitos, continua sub-regulamentada. Não só em termos de software, mas também noutros temas como moderação de conteúdos (no caso das redes sociais) ou de estratégias monopolistas de muitas big tech, quando promovem os produtos dos seus “ecossistemas” e criam grandes barreiras de entrada nos mais diversos mercados.
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