Sarahah. De origem árabe, a palavra significa "honestidade". E é precisamente este o objetivo desta aplicação que entretanto se tornou viral entre os jovens: fazer perguntas e comentários de forma sincera, sem medos. Mas há um paradoxo: quem tem coragem de falar não dá a cara. Nem o nome. Nada. Permanece anónimo. E quem recebe as perguntas tem a liberdade de escolher se quer responder, até porque as respostas só surgem em espaço público se forem partilhadas nas redes sociais, principalmente no Instagram, através das Insta Stories, que permanecem online apenas algumas horas.
Com esta app mobile, disponível para download na App Store ou no Google Play, qualquer pessoa pode receber mensagens anónimas no seu smartphone. Quem pergunta não precisa de fazer qualquer instalação: apenas necessita do link da conta de alguém para começar a perguntar e, fazendo-o, nunca vai ver as perguntas que outros lhe dirigiram ou as respostas que pretende, a não ser que o utilizador da app partilhe um print screen numa qualquer rede social. Mas os responsáveis pela aplicação já estão a trabalhar nessa nova funcionalidade.
A par com o Facebook ou o Instagram, os jovens encontraram nesta aplicação uma nova ferramenta de descoberta. O que os levou a utilizar uma plataforma onde quem pergunta permanece anónimo e não tem garantias de ter respostas?
“Sinceramente, só entrei porque estava na moda. Decidi experimentar, mas depois de algum tempo na aplicação ela perde a piada”, conta Maria, de 15 anos, ao SAPO24. Diz que nunca viu mensagens ofensivas ou ameaçadoras, apesar de haver “muita gente que não sabe aceitar críticas e isso pode afetá-las”. Porém, diz, nunca aconteceu a amigos próximos.
Joana, que aderiu por curiosidade, concorda. Apesar disso, a jovem de 16 anos diz não ver grande utilidade na plataforma: “as pessoas aqui só estão a fazer perguntas e a dar opiniões para as quais não conseguem dar na cara”.
“Acaba por ser sempre a mesma coisa, o mesmo tipo de perguntas”, explica Maria. “Perguntam muito sobre os relacionamentos amorosos, querem sempre saber dessas coisas e muitas vezes abusam”, diz a jovem sobre as perguntas que recebe.
Mas a ideia da aplicação é enviar mensagens e quanto a essas, explica Maria, não há nada de novo: “são os típicos piropos que se ouvem por aí”. “Normalmente é sobre rapazes e é mais ou menos isto”, acrescenta Joana.
Isa, também de 16 anos, fartou-se. Usou a aplicação durante cerca de duas semanas e depois parou: “até criticavam a roupa que vestia!”, conta ao SAPO24, em entrevista via chat do Facebook.
Durante o pouco tempo que a usou, todavia, não disse nada aos pais. “Conhecendo-os como conheço, provavelmente não iam perceber o conceito. Iam querer saber quem faz as perguntas e isso assim”, diz a adolescente.
Mas como funciona?
Para perceber a plataforma, criámos uma conta e ficámos à espera. O sistema é simples: é criado um endereço (url) que pode ser partilhado. Fica, então, disponível uma página onde qualquer um pode entrar e publicar o que quiser. Quando carrega no botão para enviar, o utilizador recebe uma notificação com a mensagem. O autor não é identificado (nem tem de se identificar para deixar a mensagem), nem é possível responder.
Há, porém, dois mecanismos de defesa: é possível bloquear as mensagens de que se não goste, bem como reportá-las. Para além disso, é também possível impedir que utilizadores não registados enviem mensagens. A ideia de base, porém, persiste: não saber quem enviou o quê.
Depois de ativar a nossa conta, partilhámos a ligação nas redes sociais e esperámos. Logo surgem as primeiras mensagens. Se algumas é possível associar a determinadas pessoas, outras deixam-nos na perplexidade. E levam-nos a imaginar. Terá sido Fulano? Sicrano? Beltrano? Não sabemos. E pouco temos a fazer para descobrir o autor.
Os jovens costumam partilhar imagens das mensagens noutras redes sociais, sobretudo no Instagram, nas Insta Stories, que permitem partilhar uma imagem durante um período limitado de tempo. Depois, quem enviou o texto pode decidir, ou não, anunciar-se. “Fui eu”, dirão os autores. Ou “Fui eu”, dirão outros fazendo-se passar por eles. Debaixo do manto anónimo, é difícil ter a certeza das coisas. De todas as coisas. Parte do jogo é exatamente essa.
De ideia interessante a experiência terrível
A premissa pode parecer empolgante. Com a porta escancarada, é possível ver como somos vistos pelos outros. E vendo como nos veem, podemos ver-nos melhor. Saramago escrevia, no Conto da Ilha Desconhecida, que é preciso sair da ilha para a conhecer. Porque é preciso olhar de fora para conhecer o interior. Até aqui, tudo faz sentido.
Porém, a Internet é a Internet e uma porta escancarada é uma porta escancarada. O descontrolo está a um passo de distância. De um momento para o outro, alguém menos bem intencionado pode enviar mensagens menos elogiosas. E se para um adulto essas críticas podem até não ter um impacto relevante, para um adolescente podem ser devastadoras.
Na experiência que preparámos para escrever este texto, por entre pedidos de “nudes” (expressão usada para fotografias sem roupa), surgiram mensagens quasi-encriptadas e outras só desamparadas. Não nos calharam insultos.
Não há, contudo, apenas aspetos negativos. Para o jornalismo, por exemplo, esta plataforma pode ser uma ferramenta de trabalho bastante interessante. É um meio para os leitores, para o público, enviarem dicas, apontarem caminhos, aventarem consternações, sem ter de se identificar. Mais uma vez: é uma via aberta para receber críticas e insultos gratuitos, mas esses já surgem nas caixas de comentários. Assim, o leitor pode sentir-se mais protegido ao enviar denúncias que podem ser investigadas pelos jornalistas.
O hype que veio, o hype que foi
Na juventude digital, “hype” é um adjetivo que se apega a alguma coisa em torno da qual se gera um incrível e rápido entusiasmo. Trata-se de um conteúdo viral, numa expressão aproximada. O “hype” à volta do Sarahah entrou de rompante, gritando aos sete ventos, que é como quem diz, a todas as plataformas sociais, as suas bolhas de azul esverdeado com mensagens anónimas. E depois vai saindo devagar para alguns, como no caso da maioria dos jovens com quem o SAPO24 falou.
Neste tipo de redes sociais é fácil que os jovens se cansem rapidamente. A novidade é muita, mas os limites da imaginação e da paciência impõem-se. É difícil acompanhar o ritmo dos fenómenos, mas importa analisá-los. Porque olhando para os nossos comportamentos, podemos melhor perceber quem somos - lá está, há que sair da ilha para conhecer a ilha.
Tudo isto leva-nos, então, a encontrar a psicologia. É que o que aqui está em causa são as relações pessoais entre indivíduos - entre ilhas, se teimarmos na analogia - e a conclusão a que a psicologia chega é a de que estamos aqui com perguntas (inconvenientes) e anónimas.
Quem no-lo mostra é Maria Virgínia Melícias, psicóloga, que ao SAPO24 começa por explicar que a utilização desta aplicação pelos adolescentes vem “do desejo de reconhecimento e aceitação pelos pares, propícia à idade”. E, por isso, normal que surjam perguntas, sejam elas mais ou menos indicadas para o contexto de uma rede social. “A necessidade de entrar na atualidade, no que os outros fazem, é muita. Há tendência para querer saber o que os outros fazem, o que pensam, o que sentem”.
Mas nem tudo aqui é curiosidade juvenil. “Surgem também problemas de autoestima, provenientes das perguntas e dos comentários que são feitos. Nem todos os jovens conseguem encarar da mesma forma aquilo que lhes é dito e isso pode ter consequências graves”, explica Maria. E acrescenta: “Além disso, há que ter em conta os padrões de comportamento. Até determinada idade é normal entrar nestas atividades, mas nalguns casos podem estar associadas certas patologias”.
Entre elogios e críticas, perguntas mais diretas ou com subterfúgios, o Sarahah permite que os jovens sejam um livro aberto uns para os outros, quando entram no jogo. Abrem as portas da ilha, mais que isso: deixam-nas escancaradas. E quem quiser entrar, não tem sequer de tocar na campainha.
“És bué bom, posso te comer?”
Se olharmos antes para as conversas, mais uma vez estas têm uma relação direta com as idades de quem usa o Sarahah. Perguntas "do foro pessoal, algumas até mais íntimas" estão relacionadas com a necessidade de descoberta, quase como se fosse "um adolescente a espreitar o quarto dos pais", exemplifica a psicóloga. Mas há limites. "É preciso estar-se atento a estas perguntas, para que não causem qualquer tipo de problema aos jovens".
Muitos dos jovens com quem o SAPO24 falou afirmam que os pais não sabem que utilizam a aplicação e que, se soubessem, iam considerá-la perigosa por permitir o contacto anónimo. "É necessário que haja um acompanhamento destes hábitos. Não significa que não utilizem, mas sim que devem ter atenção e ser vigiados", refere a psicóloga.
Todavia, esta é uma ‘brincadeira’ que pode ser perigosa. “Qualquer rede social tem os seus problemas, ainda para mais quando falamos de uma faixa etária com as características que têm os adolescentes. Mesmo o Facebook tem os seus perigos, até porque se podem criar contas anónimas. Aqui é diferente: é a própria aplicação que legitima este anonimato, que ‘empurra’ as pessoas para este sistema. Pode não ser bom. Mas a verdade é que nestas idades a vergonha é sempre muita”.
Por isso, o facto de a maioria dos jovens optar por apenas uma das vertentes do Sarahah - perguntar ou responder - não é estranho. “Há quem tenha mais tendência a querer saber mais sobre os outros e tenha vergonha em perguntar pessoalmente ou diretamente, mas também há quem prefira responder porque é uma forma de se afirmar, de dizer ‘eu não tenho medo de nada’, conclui.
É o que se passa com João, 17 anos. Nunca perguntou nada a ninguém, mas responde. “Não sinto necessidade, sou uma pessoa muito direta”, diz o jovem. Aliás, a questão que encima este trecho foi recebida por ele, que diz ser uma pergunta inapropriada.
E o mesmo para Francisco, de 16 anos. “Simplesmente não gosto de fazer [perguntas]”, explica. Mas responde. E se as perguntas que João recebe são diretas, as que Francisco mostra, na conta do Instagram, não ficam atrás.
Da Geração Z para os Millennial
As fronteiras não são precisas, porém, a barreira entre a Geração Z e a geração dos Millennial oscila em meados da década de 1990. Se alguns autores desenham a fronteira em 1993, outros deixam a raia já depois do segundo milénio.
Aos 24 anos, Miriam, a estagiar numa rádio, está numa fase diferente daquela em que estão Francisco, Maria, Joana, João ou Isa. Porém, não é por isso que não usa a plataforma.
Começou tal qual como os autores deste texto: queria falar da aplicação e meteu-se a investigar. “Precisava de falar sobre isso no ar e para tal teria de experimentar primeiro”, conta por mensagem eletrónica ao SAPO24. “Depois achei curioso e continuei a usar já para uso pessoal apenas”.
“Esta aplicação permite que as pessoas possam perguntar algo que se não fosse de forma anónima não teriam coragem de perguntar ou dizer. Fascina-me o facto de poder quebrar a barreira que existe aí no meio”, diz Miriam.
Barreira que pode também ser uma linha de defesa para a frente ofensiva que penetra na ilha. Sem ela, as fendas evidenciam-se e vem tudo atrás. “O pior não foi uma pergunta, foi uma crítica à minha pessoa.” "Afeta, mas depois penso ‘é anonimato’, todos podem dizer o que pensam e eu tenho a liberdade de ignorar. E assim fiz”.
Nota-se, porém, a maturidade para relativizar o real poder ofensivo das forças invasoras. Sem ela, uma mensagem “pode deitar muito abaixo alguém que esteja fragilizado emocionalmente”, diz Miriam. “Já vi coisas horrorosas”.
Todavia, nem todos os que se aproximam da ilha querem pregar uma bandeira no topo. Há também os que só a querem conhecer. “Já me aconteceu uma pessoa que de anónima passou a conhecida. Chegámos a sair”, conclui.
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