Cientistas, governos e especialistas encontram-se numa luta contra o tempo para arranjar soluções que permitam controlar o vírus. Uma das alternativas que tem vindo a ganhar destaque no panorama internacional é a de tirar proveito da tecnologia disponível com o desenvolvimento de apps de rastreio da Covid-19. Contudo, isto levanta uma questão: Estaremos a usar a tecnologia de forma consciente ou a abrir uma via sem precedentes, baseada numa pandemia global?
A premissa seguida por todas as autoridades de saúde é a de que os indivíduos que tenham contacto direto com alguém infetado com Covid-19 correm o risco de adoecer. Como tal, a ideia por trás do “contact tracing” (técnica que envolve encontrar cada pessoa infetada e descobrir com quem interagiu durante esse período de tempo) é simples, mas a sua execução deixa algo a desejar. O processo é demorado e lento: alguém fica doente; é entrevistado pelas autoridades de saúde pública e o seu percurso e contactos são mapeados; é feita uma lista de pessoas com quem esteve em contacto e pede-se-lhes que se mantenham em casa e prestem atenção aos sintomas; se uma das pessoas exposta estiver infetada, os seus contactos também serão rastreados e assim sucessivamente até que todos os possíveis infetados com o vírus estejam fora de circulação. Contudo, com o número de infetados ao nível mundial a chegar aos 3 milhões, é desafiante ter os recursos e o tempo necessário para continuar a seguir este modelo de “contact tracing”.
Enquanto governos e cientistas continuam numa correria contra o tempo para encontrar uma resposta urgente para este surto, alguns especialistas começaram a tirar partido dos avanços tecnológicos para agilizar e acelerar este processo. Em Singapura e na China estão a utilizar ferramentas e apps de telemóveis para identificar e monitorizar as pessoas que possam ter sido expostas ao vírus. Na Alemanha, Reino Unido e Austrália estão a construir apps que facilitem o rastreamento das pessoas infetadas.
Recentemente, a Apple e a Google anunciaram que vão unir esforços no desenvolvimento e distribuição de uma tecnologia de monitorização de telemóveis, que permite rastrear a cadeia de possíveis infetados pela Covid-19. Em vez de recorrer a sistemas de geolocalização (GPS), estas aplicações irão recorrer a tecnologia Bluetooth, uma tecnologia que permite conexão sem fios. Isto permitirá criar aplicações para travar a propagação do Covid-19, sem que a localização dos utilizadores seja guardada. Segundo as gigantes tecnológicas, a tecnologia Bluetooth permite manter a privacidade dos utilizadores porque usa uma ligação por radiofrequência para se ligar a aparelhos que estejam a curta distância (alguns metros). A Apple e a Google preveem que esta tecnologia esteja disponível para ser usada em aplicações a partir de maio.
Esta monitorização do vírus tem levantado algumas questões relacionadas com privacidade que começam a sobressaltar alguns especialistas. Assumindo que dados pessoais são mais valiosos que o petróleo, de que forma estarão eles a ser utilizados pelos governos e grandes empresas neste rastreamento a nível global? Estaremos a dar o passo certo ou a abrir uma via sem precedentes?
Liberdade ou segurança?
Assustados com as consequências do surto pandémico, os governos apressam-se na tomada de medidas de combate ao vírus. Contudo, alguns peritos alertam para a possibilidade de haver quem se possa aproveitar desta crise. Observamos crescentes números de grandes empresas, como a Facebook, Tecent (WeChat) e Ant Financial Services (AliPay), e governos como o polaco, norueguês, austríaco ou sul-coreano a aderir aos processos de “contact tracing” através de aplicações móveis que, se utilizados maliciosamente, podem representar uma violação dos direitos à privacidade dos utilizadores. Começamos agora a ponderar formas de nos protegermos que, outrora, seriam impensáveis. Ao escolher entre as alternativas, devemos perguntar-nos não apenas como superar a ameaça imediata, mas também que tipo de mundo habitaremos quando a pandemia passar.
Enquanto grande parte da população mundial se foca em encontrar uma resposta, uma cura ou até mesmo um ponto de referência para quando possamos voltar ao “normal’’, existe, paralelamente, quem receie ver as suas liberdades reduzidas, quer seja através de sistemas de vigilância constante ou através da estruturação de bancos de dados com milhares de pedaços de informação minuciosa sobre cada um de nós.
Corremos, agora, o risco de sermos monitorizados por uma app que carregamos para os nossos telemóveis e tablets. Esta monitorização passa pela indicação das mais variadas informações desde a nossa temperatura corporal à nossa localização ou até mesmo ao número de pessoas com quem partilhamos o mesmo espaço, quer seja no trabalho ou em casa. E não podemos ignorar que muitos desses dados estão ao alcance de um simples clique - basta permitir.
Snowden, um dos nomes de referência no que toca a questões de privacidade, numa conversa num festival de documentários, afirma que “é crucial ter em mente a perspectiva de que numa sociedade livre um vírus é perigoso mas a destruição de direitos é fatal. É algo permanente que não voltamos a ter.” Mesmo que a pandemia da Covid-19 seja um fenómeno transitório, Snowden alerta que temos de estar conscientes que as decisões tomadas, podem não o ser.
As maiores inovações das empresas de tecnologia chinesas durante a crise da Covid-19 foram as de rastreamento. Capacetes de inteligência artificial para medir a temperatura, drones capazes de usar reconhecimento facial para alertar quem não usava máscaras em público e aplicações móveis para controlar as viagens. “O mesmo tipo de ferramentas que são utilizadas em Estados democráticos para monitorizar o crime organizado e o terrorismo são, na China, usadas para controlar os cidadãos” aponta Sandra Carvalho, analista de defesa e contra-terrorismo na empresa de consultoria Thales.
E em Portugal, que estamos nós a fazer?
Em Portugal, o cenário não é diferente - com espaços despidos de pessoas e locais deixados ao abandono, rapidamente se começou a pensar em novas formas de utilizar a tecnologia ao nosso serviço.
No Porto, os passeios na zona Ribeirinha foram monitorizados por drones com mensagens para a população: “Não permaneça no espaço público, senão por necessidade absoluta. Permaneça em casa”. Também as saídas das zonas de residência foram controladas pela polícia que formava filas de carros à saída e entrada da autoestrada, deixando apenas seguir o seu caminho quem tinha a devida justificação - laboral ou residencial.
Lançou-se a aplicação Covid19-Estamos On que, em Portugal, já conta com mais de 50 mil utilizadores, para reforçar a capacidade de alcance de toda a informação necessária para fazer frente ao novo coronavírus. Também também criada a Covidografia, uma plataforma que reúne informação, enviada pelos próprios utilizadores, sobre os sintomas dos portugueses para melhor se avaliar a propagação da pandemia. Também está, atualmente, a ser desenvolvido pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, uma aplicação móvel que permitirá aos portugueses serem alertados caso tenham estado em contacto com alguém infetado com a Covid-19. Será de uso voluntário e utilizará o Bluetooth para rastreio de dados entre smartphones que tenham estado próximos nos últimos 14 dias.
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