O presidente-executivo da Google Jigsaw, uma aceleradora que investe e estuda os impactos da geopolítica, frisou que estamos prestes a entrar numa era mais complexa do que a do mundo bipolarizado da Guerra Fria, do mundo unipolar do pós-Guerra Fria e do mundo multipolar pós-11 de setembro.
"Venho aqui falar daquela que eu considero ser a grande interrogação tecnológica e geopolítica do momento: como podemos prevenir uma ciberguerra?", foi assim que Cohen abriu um dos momentos mais aguardados desta edição da Web Summit. E, ainda que a sua intenção seja fazer soar o alarme, adiantou que o "espírito inovador" dos empreendedores que o ouvem deixa-o, apesar de tudo, "bastante otimista". Depois, prosseguiu em passo rápido.
"Dentro de três anos, haverá mais dispositivos inteligentes em circulação do que seres humanos no planeta. Ainda que não fosse óbvio que a tecnologia se tornasse tão omnipresente e fluida e que nos permitisse estar conectados no Afeganistão com a mesma qualidade do que numa cozinha de Manhattan", rematou.
No Center Stage da Web Summit, Jared Cohen recordou que a Internet é uma moeda de duas faces, onde não figuram apenas as "histórias extraordinárias sobre como a tecnologia mudou para sempre a vida de milhões de pessoas". Ainda que estas existam, diluem-se cada vez mais entre as narrativas sobre como a Internet criou mecanismos para magoar, destruir e aniquilar. Se, por um lado, é capaz de dar "uma segunda oportunidade de viver" a uma mulher afegã violentada por um grupo terrorista talibã; por outro é montra e veículo de recrutamento para grupos como o autoproclamado Estado Islâmico. "E não importa se os vídeos são pouco editados, se parecem amadores ou exagerados. Os destinatários não querem saber desses detalhes. O importante é a mensagem". E muitas vezes a mensagem é, nada mais, nada menos, que "propaganda".
Vivemos numa era onde é cada vez mais fácil, através das redes sociais, para o bem e para o mal, diferentes "vozes e opiniões" conquistarem terreno no espaço público, levando a que os governos tenham mais inclusivamente dificuldade em descortinar o sentimento dicotómico das populações: enquanto uns se exaltam por coisas sem aparente importância, outra semelhante fação revela pouco ou nenhum interesse. Para aumentar a complexidade, hoje as pessoas "têm mais do que uma identidade". Diferentes contas nas redes sociais, e-mails, perfis, "uns são profissionais, outros pessoais". E este começa também a ser o caminho traçado pelos Estados: "têm uma política para o mundo físico, outra para o digital". Veja-se, a título de exemplo, a relação entre a China e os Estados Unidos. "No mundo físico, os dois países são uma espécie de frenemies [amigos-inimigos] e têm uma relação complicada, mas que vai funcionando. Mas se olharmos para a relação digital, esta é mais controversa".
"O que existe hoje é um sistema internacional que tem uma frente física e uma frente digital, e todos os desafios do mundo físico que conhecemos há décadas e séculos estão a derramar para o online", explicou Cohen. Posto isto, diz, "todas as guerras vão começar como ciberguerras”.
"Foi sempre a economia, a política e o poder militar a determinar quais são os Estados mais poderosos", lembrou. "Estes são atributos que permanecem inalterados. Só que, doravante, os estados mais poderosos serão aqueles capazes de projetar influência nessas áreas, mas em ambos os domínios: o físico e o virtual", continuou.
E quem exerce um claro domínio nestas circunstâncias? De momento, duas potências: Estados Unidos e China. Na visão de Cohen, são as duas nações que partem em vantagem. No entanto, países como a Rússia — consideradas para todos os efeitos potências em declínio — têm vindo a "ressuscitar muitas das suas táticas da Guerra Fria num mundo que é tanto digital como físico". É aqui que entram, por exemplo, as "fake news" ou notícias falsas. É "o digital da propaganda" à boleia do "patriotic trolling" — uma espécie de "ciberbullying organizado", onde pessoas ou entidades, fazem publicações provocatórias, de forma deliberada, em fóruns ou grupos, somente com intuito de causar discórdia. Sem regras, sem controlo. "E se não existirem regras, como é que podemos evitar uma guerra à escala planetária?”, questiona Cohen.
Paralelamente, existem ainda nações que, segundo os Estados Unidos, são pouco amigáveis [Coreia do Norte e o Irão] e que não só têm capacidade de agitar o digital, como estão efetivamente dispostas a avançar com as "mais nefastas táticas virtuais". Porque nas guerras deste mundo híbrido “não importa o tamanho de uma nação" pois até "podem ser pequenas em território físico, mas dominam o espaço na rede”, como por exemplo Israel, Singapura e Estónia, enumera Cohen.
Para o diretor-executivo da Jigsaw, no mundo híbrido do século XXI o que acontece atrás de um ecrã, não fica atrás do ecrã. Porque um clique pode ter repercussões graves no que físico, palpável. Assim, exige-se mais política, maior monitorização, e capacidade de compromisso.
Em suma, aquilo que o diretor-executivo da incubadora Jigsaw da Alphabet (sucessora da Google) veio apresentar em Lisboa vai ao encontro daquilo que escreveu num artigo de opinião em agosto no New York Times.
“As armas cibernéticas não vão desaparecer e a sua expansão não pode ser controlada. (...) o mundo tem de estabelecer um conjunto de princípios que determinam a conduta correta no que concerne o ciberconflito”, escreveu à data. É tempo de os Governos discutirem "o que constitui uma resposta razoável para quando uma nação está a ser atacada por outra no ciberespaço. Caso contrário, é apenas uma questão de tempo até que a nação sob ataque responda bombardeando o provável culpado, mesmo sem provas”.
Hoje, no palco da Web Summit, Cohen reiterou que é preciso agir, para que não se corra "o risco de chegar a um ponto onde o conflito físico se tornará inevitável".
A Web Summit decorre até quinta-feira, no Altice Arena (antigo Meo Arena) e na Feira Internacional de Lisboa (FIL), em Lisboa. Segundo a organização, nesta segunda edição do evento em Portugal, participam 59.115 pessoas de 170 países, entre os quais mais de 1.200 oradores, duas mil 'startups', 1.400 investidores e 2.500 jornalistas. A cimeira tecnológica, de inovação e de empreendedorismo nasceu em 2010 na Irlanda e mudou-se em 2016 para Lisboa por três anos, com possibilidade de mais dois de permanência na capital portuguesa.
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