Todas as vidas começam com uma mulher, e a minha também, uma mulher de cabelo ruivo que entra numa sala e traz um fato em linho que tirou do armário para a ocasião, comprado na banca de Porta Portese, a banca boa da roupa de marca com descontos, não aquela de meia dúzia de tostões, mas a que tem por cima o cartaz: PREÇOS VÁRIOS.

A mulher é minha mãe e segura na mão esquerda uma pasta de couro preto, ondulou o cabelo sozinha, usou rolos e laca, deu volume à franja com escova, tem olhos verdes e amarelos e saltos agulha, ela entra e a sala torna-se pequena.

Há funcionários sentados às secretárias, a minha mãe passou três horas na esquina do prédio, a pasta encostada ao peito, e ao contar diz que as suas pernas eram manteiga, e a saliva, ácida.

Aproxima-se bamboleando as ancas e é antecedida pelo perfume com que disfarçou o cheiro a lentilhas cozinhadas para o almoço, diz: Vim encontrar-me com a doutora Ragni, tenho marcação.

Foi uma frase que repetiu ao espelho e no elétrico e no elevador e na esquina: Tenho marcação.

Num tom doce, num tom alegre, num tom decidido, num sussurro, como se fosse normal e di-lo agora a uma menina sem aliança, com o cabelo preso na nuca, que a observa e vê o vestido de linho ligeiramente amarrotado e o couro da pasta puído na asa.
A menina olha para uma agenda que tem à frente: Como se chama?

Antonia* Colombo, diz a minha mãe.

A menina verifica bem a agenda com as marcações da doutora Ragni, percorre-a rapidamente com o dedo e procura a tal Colombo, mas não a vê.

Não tenho aqui o seu nome, senhora.

A minha mãe esboça um esgar, no qual pensou uma e outra vez, interrogou-se sobre que cara fazer naquele preciso momento, teve de estudar cada instante, imaginar ao pormenor o que aconteceria e o esgar sai-lhe bem, igual ao de uma mulher atarefada, aborrecida com a incompetência alheia, com os atrasos.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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A minha mãe diz: Olhe, já fiz a marcação há uma semana, sou advogada e a doutora Ragni garantiu-me que estaria cá hoje, estamos atrasadíssimas na entrega dos autos.

O esgar da minha mãe é falso e a sua impaciência, real, da mesma forma que são reais os sapatos apertados e os homens altos e suados no elétrico.

As duas trocam mais umas quantas frases e Antonia Colombo insiste, com a certeza de que é o mais acertado, marcar posição e não arredar pé.

A menina deixa-se convencer, a mulher de cabelo ruivo parece certa do que diz e ninguém no escritório tirou sequer os olhos dos papéis que está a tratar, pois ainda não deflagrou nenhuma discussão.

Como tal, a menina abre-lhe a porta onde sobressai a placa DOUTORA RAGNI e a minha mãe transpõe-na, é o limiar do seu futuro.

Vê uma terceira mulher vestida com um conjunto de saia e casaco às bolinhas verdes sobre fundo preto e espera que a porta se feche atrás de si.

Ela e a doutora observam-se, a segunda tem as mãos numa gaveta que fecha prontamente, e mais atrás uma estante a abarrotar de volumes jurídicos e a minha mãe sabe que nunca poderá guardar aquele papel todo, pois o papel ocupa espaço e custa dinheiro.

Mas a senhora quem é?, pergunta a doutora Ragni cruzando as pernas.

Antonia Colombo, responde a minha mãe, e acrescenta: Não nos conhecemos e eu não tenho marcação.

Ergue-se um silêncio compacto que dura alguns segundos até que a Antonia fala.

A senhora não me conhece, mas tem na mesa o meu processo de pedido de atribuição, tenho a certeza de que está aí, nesse monte, lá pelo meio também estou eu, que moro em Via Monterotto, 63, aliás, não moro porque a minha residência não é reconhecida e estamos todos em vinte metros quadrados, numa meia-cave, e os recibos não estão em meu nome e pago multa para ser usufrutuária e adiantei o dinheiro para poder lá estar e quero regularizar a minha situação, já lá vão cinco anos.

A doutora levanta-se da cadeira e revela que não é muito alta, retira os óculos do rosto, são redondos e de tartaruga, e atira-os para a secretária com irritação, grita à minha mãe que saia.

Eu já estive nas vossas repartições, em todas as repartições, levei os documentos que me solicitaram, casei com o homem que vivia comigo, fiz com que ele adotasse o meu filho, fiquei grávida, formei um agregado familiar e cumpro todos os requisitos, diz a minha mãe.

A doutora põe-se a marcar números no telefone até que baixa o auscultador, ameaça chamar a polícia e diz à minha mãe que tem imediatamente de se ir embora, como se atreveu a entrar ali com manhas, di-lo numa voz mais alta: Como se atreveu?

A minha mãe senta-se então no chão de pernas cruzadas, o vestido de linho sobe-lhe pelas coxas brancas e sardentas, ergue as mãos acima da cabeça e diz: Eu vim cá, vim cá pela minha casa.

E fica quieta, tem os braços rígidos, as mãos abertas de par em par, a pasta está no chão e está vazia, a minha mãe não é advogada e não tem marcações com quem importa, tem uma casa que livrou de ratos e de baratas e de seringas e pretende uma solução.

A doutora abandona a secretária e passa por ela, dá-lhe uma joelhada de propósito e abre a porta, pede ajuda ao escritório, diz: Tenho uma doida sentada no chão, levem-na daqui.

Nesse momento, a menina de antes e uns quantos homens e o contínuo e a porteira acodem e dão com um tronco de mulher, que é a minha mãe, com as mãos levantadas para o teto e o vestido de linho já todo enrodilhado, tem um rosto pétreo e sustenta entre os lábios insultos e cantos a plenos pulmões.

Julga que eles não sabem o que significa chegar ao ponto em que já não se consegue aguentar, após um dois três quatro cinco dez assistentes sociais, após uma duas três quatro cinco dez estações dos correios, após um dois três quatro cinco dez defensores oficiosos, após um dois três quatro cinco dez funcionários do instituto da habitação, após um dois três quatro cinco dez formulários a preencher, após uma duas três quatro cinco dez multas e recibos e convocatórias e ameaças.

Eles levantam-na e levam-na em peso, elevam-na pelos braços e pelas pernas e nisto a blusa abre-se e revela um sutiã sem armação, seios fartos, a saia rasga-se e as suas cuecas espreitam, a minha mãe já fez em fanicos o vestido bom e esperneia e grita, como uma fera bárbara.

E eu, como se estivesse lá, de pé, a vê-la do canto da sala, julgo-a e não a perdoo.

1.

A casa é onde está o coração

Vivemos num bairro ao qual a minha mãe não gosta de chamar periferia, dado que para ser periferia há que se ter noção de qual é o centro e nós nunca víamos esse centro, eu nunca visitei o Coliseu, a Capela Sistina, o Vaticano, a Villa Borghese, a Piazza del Popolo, não fazemos visitas de estudo com a escola e, quando saio, é para ir com a minha mãe ao mercado do bairro.

Dessa casa, com cinco metros de largura e quatro metros de comprimento, aprecio o terraço de cimento e os canteiros, só têm erva lá dentro, nunca ninguém pensou em pôr lá flores e a minha mãe também se recusou, pois plantar significa ficar.

O interior é uma cozinha num armário, é uma cama articulada que se tira de debaixo da cama do Mariano, é um aquecedor elétrico que se deve acender pouco e se estiver mesmo frio, é um cartaz dos Beatles por cima da mesa onde comemos e quatro cadeiras diferentes, é ouvir a cama dos meus pais a ranger quando fazem aquilo, porque só há uma divisão e não dá para ir lá para fora e não dá para nos fecharmos na casa de banho, porque lá fora e na casa de banho também se ouve tudo.

A casa sou eu em criança, que só conheço o espaço de cimento e o habito como a um palácio, a par do meu irmão, é nosso e de mais ninguém, escavamos, saltamos, cozinhamos urtigas e formigas e traçamos no chão com paus de giz trazidos da escola números e linhas e triângulos e quadrados nos quais nos sentamos e dizemos que são as nossas coisas, que vivemos ali, dentro dos sinais no chão que desenhámos.

C-A-S-A, dizemos, e é só fazer uns quantos traços, as paredes e o telhado, as janelas, a porta.

Esse lugar, o chão das nossas brincadeiras e das nossas primeiras fantasias, existe porque a nossa mãe assim quis, antes era o domínio das baratas, de um ou outro rato e de diversas seringas atiradas da rua através da rede ou deixadas por quem dorme à porta do prédio.

A nossa mãe calça umas galochas altas, que pedira emprestadas ao meu pai, para as apanhar uma a uma e as queimar antes de as deitar fora, se encontrares uma seringa, está sempre a dizer a minha mãe, tens de a fazer desaparecer, pois se uma criança cair em cima dela a culpa também será tua, dado que a ignoraste.

Vai buscar o veneno, pedira ao meu pai que trouxesse uma pá das obras e põe-se a enxotar, a matar, a extirpar.

Após meses de trabalho, o pátio para o qual dá a boca desdentada da nossa casa numa meia-cave fica saneado e ela leva-nos para lá, pela mão, diz: Brinquem.

Livro: "A Água do Lago Nunca é Doce"

Autor: Giulia Caminito

Editora: Lua de Papel

Data de Lançamento: 29 de outubro de 2024

Preço: € 17,90

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Para ter aquela casa, a minha mãe pediu dinheiro à sua avó para indemnizar os familiares de uma velhota, que morrera lá.

Num bairro popular de heroinómanos e velhos moribundos, ninguém compraria aquele buraco sujo de bolor e, ainda assim, a minha mãe jamais teria dinheiro para o comprar, daí que tivesse chegado a um acordo com os proprietários, desencadeando a tentativa de regularizar a sua situação, de arranjar um outro sítio, de fixar pelo menos momentaneamente a residência.

Pensara que iria levar pouco tempo, que haveria de conse- guir, que nos arranjariam uma nova casa enquanto estávamos ali à espera.

Ficamos muito tempo à espera, tanto que a minha mãe acaba por ceder e põe-se a limpar e a arranjar o chão e a pintar o teto e a melhorar o escoamento de água da banheira, pois o município de Roma não faz tenções de nos dar uma casa.

Tudo se vai aguentando no equilíbrio do que está prestes a ruir, embora se agarre com a última raiz a um terreno friável, até que a minha mãe volta a engravidar e o meu pai, que não é o pai do Mariano, se magoa no trabalho: cai de um andaime e fica paralítico.

Aos documentos do casamento e da adoção juntam-se os da invalidez, aos pedidos de subsídio de desemprego acrescentam-se os de família numerosa e para pôr os meus irmãos na creche, a nossa vida é pedir à cidade, ao presidente da Câmara, a Itália, para que nos ajudem e abriguem e salvaguardem e não nos esqueçam, vivemos num requerimento perpétuo.

Quando os gémeos nascem, eu tenho seis anos e o Mariano detesta-nos a todos, desde logo o pai que não é seu e que de homem carrancudo se transformou num acessório molesto e cansativo, num forno que deixou de funcionar, num aspirador que não apanha nada do chão, num esquentador que ao fim de cinco minutos nos deixa com frio, é uma sucata que ele quer deitar fora.

O meu pai, conhecido pelos chapadões e pela ânsia de fazer sexo, fica agora imóvel na cadeira de rodas que a minha mãe arranjou através de familiares no hospital, e levanta as pernas sozinho, uma de cada vez, e deixou de jantar: Para quê comer?

Em casa há um homem quieto, semelhante a uma estátua, ao mármore, aos azulejos, à ombreira da porta, aos muretes que delimitam o prédio, e uma mulher atarefada que apanha, que muda de sítio, que brune, que arruma, que cola, que envenena, que expulsa a água à vassourada quando a casa fica alagada por culpa do excesso de chuva. O homem quieto é meu pai, a outra, a incansável, é a mulher de cabelo ruivo, que se chama Antonia Colombo.

Não tenho brinquedos e tenho poucas amigas, de tudo me calha a sua cópia má: a boneca remendada com restos de tecido, a pasta utilizada por outra menina com os seus desenhos lá postos, os sapatos da feira trazidos para casa sem caixa, dentro de um
saco de plástico, com a sola já gasta, tangerinas em vez de luzes de Natal, em vez das Barbies as fotografias das mesmas recortadas das revistas.

Acho que somos materiais de refugo, cartas inúteis num jogo complicado, bolas de bilhar lascadas que já não rolam: ficámos imóveis no chão, como o meu pai, caído de um andaime desadequado, num estaleiro de obras ilegal, sem contrato e sem seguro e é aí de baixo, do ponto para onde nos despenhámos, que vemos os outros a pôr colares de pedras preciosas ao pescoço.

Os gémeos são minúsculas criaturas ruidosas que dormem num caixote enorme cheio de cobertores, pousado na mesa da cozinha, e o cheiro das suas fraldas mistura-se com a sopa.

Eu e o Mariano não percebemos porque é que ainda ali estamos e nunca tentámos fugir, é algo que planeamos às escondidas, eu e aquele menino de cabelo escuro, o momento em que daremos à sola, embora nunca estejamos prontos a escapulir, dobrar a esquina da nossa vida.

Somos pessoas que conhecem mal a geografia do Lazio, a sua região, e das ruas de Roma, a sua cidade, pois o perímetro das nossas des- locações é o do bairro, uma vez que para lá dele é demasiado caro para nós, e ninguém daria crédito à minha mãe ou trocaria pão e presunto por um dia do seu trabalho.

A teoria materna é esta: quem não nos conhece não nos ajuda, daí que fiquemos onde se sabe que estamos, onde ela pode urdir pequenas e grandes relações de proteção e de reconhecimento.

O Mariano é o mais velho e sentiu cada um de nós como uma intromissão entre si e a Antonia, que durante um período foi mãe adolescente, e eles os dois eram um único corpo para sobreviver.

No que me diz respeito, o meu irmão tolera-me porque não sou uma chorona e porque o ouço em silêncio, deixando que ele descarregue patranhas e demónios em cima de mim, histórias negras e terríveis, e aventuras em que a menina de serviço morre e o lobo vence sempre. Os anos que nos separam são quatro, que em pequenos parecem muitos mais e fazem com que eu o considere adulto e quase velho. É ele quem intervém quando me chateiam, eu na verdade tenho péssima opinião das outras meninas e olho para elas com deceção, parecem-me ter algo mais do que eu, embora ainda não tenha encontrado a minha forma de lhes dar luta.

Há uma loirinha, austríaca aos meus olhos, que me chama Bico de Morcego porque diz que tenho lábios salientes, e eu ergo-me nas pontas dos pés, na casa de banho, para verificar, não me parece de todo que tenha alguma deformidade e sei que outrora os morcegos foram ratos e não patos. Porém, os insultos das crianças não precisam de ter sentido para magoarem: ser-se diferente, defeituoso, é prejudicial e permanecer perfeitamente alinhado promove a mistura e não dar nas vistas, nós já estamos suficiente- mente arruinados por nós mesmos, não podemos dar-nos ao luxo de bicos ou orelhas vistosas.

Quando conto ao Mariano, ele vem até à porta da minha escola, pede-me para lhe indicar quem é a menina, grita-lhe: Está caladinha, ó anormal, e dá-lhe um murro.

Eu sinto um arrepio de saudável admiração por ele, que com um gesto silenciou a grosseria alheia, guardo de imediato a sua irascibilidade como um tesouro digno de baú.

O sucedido não cai bem às professoras nem à minha mãe, que mantém as mãos do Mariano atadas atrás das costas durante um par de dias, dizendo-lhe que tem de se safar sem elas ou pedir-nos ajuda para o que sem elas não consegue fazer: se não as sabe usar como deve ser, então deixará de as usar.

A Antonia arranja soluções diferentes para os problemas, raramente nos dá bofetadas ou pontapés, prefere tirar-nos qualquer coisa.

Se gritarmos dentro de casa, não faz o jantar; se não a ajudarmos com os gémeos preferindo as nossas brincadeiras, não nos manda o lanche para a escola ou apreende-nos o estojo; nasceu para as greves e para as demonstrações de resistência.

Tem as suas ideias que construiu sabe-se lá como, talvez venham da minha avó, talvez da vida, talvez sejam de nascença e pronto, não tem religião, abandonou o partido, para ela só a justiça é evidente, uma tenaz fixação pelas coisas justas.

Eu tenho um grande fascínio por flores, não as pouquíssimas que nascem espontaneamente no nosso pátio, margaridinhas primaveris muito frágeis, mas pelas rosas dos jardins dos outros, os jasmins, as hortênsias, que vejo despontar ao andar pela rua ao lado da minha mãe e tenho vontade de apanhar.

Hei de tentar uma vez, pois quero deixar a macerar as pétalas dessas rosas numa garrafa de plástico juntamente com água, como fazem as minhas colegas e depois mostram na escola os seus fedorentíssimos, mas preciosos, perfumes caseiros. A Antonia vê-me arrancar uma rosa que desponta de uma rede e começamos a discutir.

Não podes tirar o que não é teu, ralha-me ela.

Mas estava na rua, a rua é de todos, respondo eu.

Então és uma ladra ainda maior, não se toca no que é de todos, rosna a minha mãe.

Partir objetos ou danificá-los é um sacrilégio, que a minha mãe remedia de imediato estudando maneiras de os reparar ou reutilizar de outro modo, mas torna-se intransigente em relação ao que é de todos: não se pisa a relva do parquinho, não se atira papéis para fora do cesto, não se arrancam rosas nos jardins, não se estragam os livros da biblioteca.

Os livros são a sua grande obsessão, pois em casa, sobretudo desde que o meu pai fica na cama ou na cadeira, e nós não temos televisão, mas um rádio apenas, o único passatempo é a leitura e, não havendo espaço nem dinheiro para os nossos livros, usamos os livros de todos que devem ser para nós relíquias, são guardados bem empilhados, a minha mãe tem assinaladas todas as datas em que temos de os devolver e chateia-nos para os terminarmos a tempo, verifica que não os sujámos ou amarrotámos e, se assim for, arrasta-nos até à biblioteca para pedirmos desculpa à bibliotecária e às outras crianças e depois indemniza-os, mesmo que eles digam que não é preciso ela responde: É preciso, e de que maneira.

Quando me atrevo a observar-lhe que as coisas de todos é como se não fossem de ninguém, ela responde-me: Tira já essa ideia da cabeça ou ainda te tornas uma mulher má.

A Antonia já não se veste bem, vai visitá-los com a roupa com que também anda por casa, suada, com uma grande mola no cabelo, tem o rosto redondo e as têmporas apertadas, os olhos têm pestanas compridas e o seu nariz não sobressai nem se esconde, não é magra, não tem peso a mais, o seu físico é saudável.

É algo que está sempre a dizer-nos também, que o que importa é ter uma cara de saúde, as pernas magras não ficam bem, os rostos chupados metem medo.

A Antonia concluiu que vai ter de insistir para alcançar o que quer, entrou no palco deles como um pequeno holofote que se solta do teto e cai em cena: indesejado e perigoso. Deveria iluminar os outros e tem agora ânsias de protagonista.

É uma mulher disfuncional, desesperada e desapaixonada e leva consigo um maço de documentos, identificou um funcionário
que lhe parece mais cordial do que os restantes e apontou o seu nome num pedaço de papel: Franco Murri.

Ouve lá, Franco Murri, eu sou a Antonia Colombo e, enquanto não me ajudarem, vou voltar cá e perguntar por ti, afirma a minha mãe enquanto lhe passa as páginas umas atrás das outras.

Franco Murri tenta ser simpático: Sabe, a senhora veio cá de forma ardilosa e a nossa diretora não esqueceu o episódio, pelo que é difícil que o processo chegue a bom porto.

Antonia Colombo não cede: Nesse caso, vamos pôr cinquenta vezes o meu processo naquela secretária até que eu me torne um estorvo tão grande que já não poderei ser ignorada. Eu tenho quatro filhos agora, e um marido inválido.

Assim durante um mês, durante dois, durante três, ela sabe que se mudar de pessoa vai ter de recomeçar do zero, pelo que quando não vê Franco Murri na sua secretária diz que voltará no dia seguinte ou faz uma nova marcação.

Ao regressar a casa, fala-nos do Franco como se fosse o farmacêutico ou o vendedor de jornais, um homem familiar, de um mundo conhecido e animador, nós não sabemos atribuir-lhe um rosto ou corpo, parece-nos um intruso, não percebemos o que fará pela nossa mãe e começamos a ter ciúmes dele, sobretudo o Mariano.

O teu pai nunca diz nada em relação a ela ir falar com aquele tipo, repreende-me o meu irmão um dia, como se a culpa fosse minha, sobretudo de ter um pai que ele não tem ou não quer.

E ia dizer o quê?, respondo eu e observo o meu pai, está sentado, as rodas da sua cadeira encalharam na perna da mesa e tem Il Manifesto aberto sobre os joelhos, está parado há meia hora pelo menos na mesma página e julgo que se terá esquecido do que está a ler.

Qualquer coisa, responde o Mariano e lança-lhe olhos de desaprovação, aqueles com que sempre o fita.

O meu pai está estafado, fulminado, vou ter com ele e apoio-lhe uma mão no joelho, embora ele não consiga senti-la, e pergunto-lhe quem é aquele Franco e se ele quer dizer-lhe alguma coisa.

O meu pai, sem olhar para mim, diz: Manda lá calar o teu irmão.

Ele e o Mariano enfrentam-se à distância que vai da cadeira daquele à cama deste, pois estão sempre na mesma divisão, não dá para fugir, não dá para fazer de conta que não se ouviu.

Foi presa, acrescenta o meu pai, enquanto o Mariano enfia os ténis com raiva, quer sair para ir correr.

Quem?, pergunto eu, baixando os olhos para o jornal.

A tal diretora, explica-me o meu pai, embora eu não saiba o que é uma diretora e o que dirigirá ela, pelo que procuro entre as palavras impressas um indício para compreender e leio um nome que ele está a pressionar com o dedo: Vittoria Ragni.

Não sei quem é e não paro de reler aquele nome, Vittoria Ragni, chego a dizê-lo em voz alta quando a minha mãe regressa a casa, traz uma embalagem de detergente para o chão, nunca volta de mãos vazias, transporta frascos de vidro, garrafas de plástico, pedaços de contraplacado, o que já não é útil para os outros ser-nos-á útil com certeza.

O que tem a Vittoria Ragni?, pergunta pousando a embalagem na mesa onde estamos. Mariano, aonde é que vais?, acrescenta, mas o Mariano não se digna a olhar para ela e sai, pelo que não é espectador da primeira satisfação da nossa mãe, não vê o seu rosto a esticar na testa as rugas de expressão, não tem como captar o relâmpago dos seus olhos, os lábios a arquearem-se.

A Antonia arranca o jornal das mãos do meu pai e lê, e torna a ler, e eu vejo que do sorriso vão despontando tremores, vejo a minha mãe a chorar.

Observo-a atónita, quase nunca a vi a chorar, nem mesmo no hospital quando estava a dar à luz os gémeos, nem mesmo quando a sua avó morreu, quando o meu pai caiu.

Está a ser investigada por ilegalidades, vão metê-la na prisão, diz entre lágrimas e eu não consigo perceber se está feliz ou desgostada.

Era tua amiga?, pergunto com timidez e ela desata a rir, tem os olhos marejados ainda, mas ri a bandeiras despregadas.

A Antonia tem de mostrar o que nos falta, a água quente que não aparece, as tomadas elétricas com fios à mostra, o espaço para nos mexermos que não temos, a luz que entra pouco e mal, embora não deixe de repetir enquanto as pessoas estão lá: Vamo-nos safando, está tudo limpo.

A nova diretora é uma mulher que vem da assistência social e, quando lê no nosso processo que há quatro crianças em vinte metros quadrados, pega num marcador vermelho e anota na primeira folha: URGENTE.

Eles começam assim a tratar de nós e vêm verificar onde vive- mos, dão com o meu pai sentado na cama que nem sequer diz bom-dia e os gémeos agarrados à saia da minha mãe, arriscando-se a puxá-la para o chão, ao pé do armário está o saco com as roupas deles, dormem num caixote, um rente ao outro, têm ainda de experimentar não ser dois.

O Mariano está lá fora no pátio e ouvimo-lo gritar, finge que está em perigo, diz socorro socorro com voz de adulto e a minha mãe responde: Não se preocupem, quer chamar a atenção, ele está bem.

Os intrusos são dois e fazem com que a nossa casa pareça ainda mais pequena, todos a achamos agora uma arrecadação ou um armazém, o quarto de arrumos dos detergentes e das vassouras.

Vem aí a polícia, berra o Mariano lá de fora, atirando um petardo ao chão.

Os dois tipos tiram apontamentos, fazem perguntas à minha mãe sobre o estado do imóvel, assim que se vão embora o meu pai deita-se a custo de lado e começa a ressonar, eu ponho-me a comer uma cenoura crua e a minha mãe olha da soleira para o Mariano: És um patife, grita-lhe, aquelas pessoas eram do município, vou dar-te pão seco ao jantar.

Duas semanas depois, a nova diretora telefona à minha mãe, a lista para a atribuição é, como sabemos, longa e o nosso processo esteve muito tempo parado, mas ela quer que abandonemos aquele lugar, é demasiado pequeno para nós, arranjou-nos uma casa, que não pode atribuir-nos oficialmente, mas que pode confiar ao nosso cuidado e, com um documento assinado por ela, poderemos lá viver até nova ordem.

A minha mãe fotocopia dezenas de vezes esse pedaço de papel e leva-o a todos os gabinetes competentes, aos correios, ao banco, às finanças, guarda-o na carteira e pendura-o na parede, conserva-o junto dos nossos bilhetes de identidade e das caixinhas com os primeiros dentes de leite caídos.

Eu e o Mariano dizemos adeus ao nosso quadrado de cimento com temor e angústia.

A nossa nova residência fica num bairro para quem tem dinheiro, estamos em Corso Trieste perto dos escritórios e dos bancos, podemos ir a pé a Villa Torlonia e Villa Ada, em dez minutos pomo-nos na discoteca Piper, o bairro ao nosso lado é Parioli, o mais rico da cidade, naquele prédio com dois pátios interiores e seis pisos o município só possui aquela casa, a que agora está ao nosso cuidado.

Assim, com os nossos caixotes, as bugigangas, os copos de iogurte usados como vasos para os catos, os frascos de vidro dos feijões como porta-escovas, as cruzetas para a roupa feitas com fita adesiva e cartão, e as cuecas amontoadas no fundo de grandes sacos do lixo, tomamos posse daquela habitação.

Tem três quartos, uma cozinha, uma salinha de estar, tem uma entrada a sério, com escadas a sério, uma porta a sério e uma banheira a sério, bicos de fogão a sério, estores a sério.

Eu e o Mariano pousamos dois sacos de plástico, com os nossos brinquedos desengonçados, ao centro do nosso quarto, parece-nos demasiado grande para nós, é quase aterrador.

Durmo mal a partir do momento em que lá vivemos, obrigo o meu irmão a manter a luz acesa e acordo a meio da noite com incrível pontualidade para dar por mim atormentada por um pesadelo que nunca recordo bem, só sei que normalmente estou a cair e ninguém me ampara.

À noite deixo de ouvir a respiração pesada do meu pai ou os gémeos a chorar, só vejo o Mariano a levantar-se e a ir à janela, para ver a rua lá em baixo.

Os moradores de cima começam a queixar-se porque os gémeos nunca dormem, porque eu e o Mariano andamos demasiado depressa, porque a minha mãe põe o rádio aos altos berros enquanto lava a louça, porque o meu pai pragueja todas as manhãs, faz descer à terra todos os santos em vez de dizer que belo dia.

No novo prédio existe o condomínio, existe quem o administra, existem reuniões nas quais não somos aceites porque a casa não é realmente nossa, não a comprámos, ainda nada nos pertence, ao contrário dos outros.

O pátio está cheio de rosas — amarelas, vermelhas e cor de salmão — e de plantas de fruto, só que nós não podemos tocar-lhes, ninguém pode, todas as quartas-feiras vem um jardineiro borrifá-las com uma coisa fedorenta.

Na primeira tarde em que eu e o Mariano nos pomos a brincar debaixo das janelas de casa, chove em cima de nós, lá do alto, um balde de água: uma senhora não aprecia que se faça uma algazarra daquelas.

O Mariano grita-lhe: Parvalhona!

E ela diz que vai chamar a polícia.

A minha mãe berra connosco dessa vez e diz ao Mariano para parar de gritar, são pessoas que estavam lá antes de nós e não pode ser como na casa antiga, temos de nos adaptar à vida dos outros, ser respeitadores.

Temos dificuldade em fazer compras no bairro, é tudo demasiado caro, entrámos para a escola a meio do ano e, segundo as professoras, estamos tão atrasados que vamos ter de repetir, o meu irmão não para de ser expulso das aulas e eu reduzi para metade as minhas palavras, respondo com frases truncadas, escrevo com uma caligrafia trémula e invejo imenso os o e os m de todas as outras meninas.

A única amiga da minha mãe ali é a porteira, uma senhora de origem siciliana baixinha e não muito loquaz, embora rápida e esmerada nas limpezas, ouve os queixumes de todos, as suas vicissitudes, os seus aborrecimentos e nunca conta os seus, mantém em ordem o correio que vai chegando e tem uma vitrina para as chaves das casas e das caves e de todas as fechaduras do prédio, não têm nenhum nome a distingui-las, só ela sabe qual abre o quê, é o seu segredo.

A porteira chama-se Nunzia e tem uma filha, a Roberta, que anda de cadeira de rodas como o meu pai, embora não tenha caído, nasceu assim e não fala bem e a sua cabeça balouça muitas vezes e o seu olhar torna-se vago como se ela não estivesse ali.
Ao regressar da escola, demoro-me sempre no pátio e, se ninguém estiver a ver-me, ponho a pasta no chão e vou à fonte que há no centro, é branca e suja, mas tem seis peixes vermelhos que vão rodando em círculo nas águas. Passo várias horas com a mão imersa a tentar acariciá-los e eles esgueiram-se e fogem para depois se aproximarem e eu vou mexendo e mexendo, apanho com as mãos em concha os raminhos que pousam à tona.

Parece-me uma brincadeira incapaz de causar incómodo a quem quer que seja, eu e os peixes não fazemos barulho e ainda
por cima eu faço-lhes companhia, não deito muita água cá para fora, nunca a bebo.

Há um ponto no jardim do condomínio onde o sol bate mesmo no inverno, é um canto do qual, erguendo os olhos, se vê um pedacinho de céu, o triângulo exato para nos esquecermos de que estamos em plena cidade, e é aí que a Nunzia instala a sua filha Roberta com a cadeira, pois agrada-lhe a luz. A casa delas, perto do cubículo, é a mais pequena do prédio e por sorte tem poucos degraus, embora pouco ar também.

A Roberta é uma rapariga silenciosa, gorgoleja por vezes, lambe os lábios, profere palavras alongadas e pergunta coisas que só a mãe compreende, embora consiga dar a entender sem problemas que quer estar ali ao sol.

Eu reparo que muitas pessoas do condomínio passam sem a cumprimentar, também olham de esguelha para mim e seguem a direito, não têm olhos para os peixes, ao que eu digo: Olá.

Em voz alta, a todas elas, para ver o que fazem, se respondem ou não, umas resmungam um bom-dia ou boa-tarde, outras nada de nada, não se dão ao trabalho de me responder.

Há uma mulher alemã que, com severidade, nos perscruta da sua janela e, quando desce ao pátio, vai andando de um lado para o outro, sorri às outras senhoras, mas não a nós, olha para mim e depois leva as mãos às ancas, volta para trás, vai ter com a porteira, queixa-se e regressa, um dia vejo-a de rosto rubro — ela exército, eu bandida — a atirar-se a mim e a arrancar-me as mãos de dentro de água.

Já chega, estás a estragar isso, berra num tom agudo, tem olhos azul-claros e têmporas largas.

O gesto assusta os peixes que redemoinham no seu caldeirão, as caudas direitas, os olhos desesperados, Roberta enerva-se e bate com os pés, a alemã agarra-me pelo pulso e empurra-me para a entrada das escadas, as que vão dar a minha casa.

Vai-te lá embora, ordena toda acalorada, e eu subo, transponho os degraus dois a dois à procura da minha mãe.

Descubro-a com um gémeo ao colo e o outro de pernas nuas em cima da mesa, mexe tanto o rabo que parece estar a dançar.

Mã, digo-lhe, toda suada após a corrida pelas escadas. A alemã berrou comigo por causa da fonte, diz que estou a estragá-la.

Já te expliquei várias vezes que não podes brincar no pátio, não é como na casa antiga, a fonte está lá só para decorar, percebes Não é para brincar, é para embelezar o prédio, é como um laço.

Eu estava calada a olhar para os peixes, o que fazem estes idiotas com um sítio bonito mas que ninguém pode tocar?, respondo eu.

E o que fazem com os colares e com as rendas? Nada, as pessoas não fazem nada com nada, põem-se bonitas e pronto.

Nos dias seguintes, passo junto da fonte olhando para ela como para um amante perdido, até os peixes são joias e as rosas
são ouropéis e ninguém quer saber deles.

Não tardo a notar que a Roberta já não está no seu lugar, embora os dias estejam soalheiros, nunca mais veio para o jardim e até a minha mãe se apercebe disso e vai então perguntar porquê.

Descobre que tinha sido um pedido da alemã, dissera à porteira que a sua filha ali a babar-se não era um bom espetáculo, que já lá andavam os outros — eu e a minha família —, mais ninguém compraria casa ali, estávamos a desvalorizar o imóvel.

A minha mãe põe-se então à espera dela, leva-me a mim e aos gémeos e ao Mariano lá para baixo e manda-nos encostar ao muro, tirar as camisolas e tira-a ela também, fica de sutiã apoiada no muro como uma condenada ao fuzilamento e, assim que a alemã aparece com o marido, ela diz-lhes: Se não deixarem a rapariga vir para o jardim, nós ficaremos aqui, todos os dias, eu e os meus filhos, sem roupa, a protestar.

Diz isto aos gritos e as pessoas assomam às janelas viradas para o interior e a alemã permanece imóvel, pau-de-virar-tripas, bengaleiro, até que diz: Vou chamar a polícia.

Pode chamar, nós não saímos daqui. Como é que se recusa a uma menina que possa estar ao sol? Uma menina que não é capaz de andar. Direi isso mesmo à polícia e, se nos expulsarem, voltaremos, não faz ideia do quão casmurra eu consigo ser quando quero, é que não faz mesmo ideia.

O marido da alemã intervém enquanto elas berram e nós estamos para ali seminus e colados à parede, o Mariano pôs-se de cuecas, eu levantei a saia.

Estamos prontos para a revolução.

Está a ver estes portões?, pergunta o marido da alemã, que é certamente uma dezena de anos mais velho do que ela. Fomos nós que voltámos a pô-los depois da guerra, uma vez que os fascistas os tinham roubado, este prédio tem história, realça com pacatez e uma ira ainda maior e talvez seja essa sua calma venenosa o que enfurece ainda mais a minha mãe.

E quem são os fascistas agora, hã? Vocês querem saber dos portões e não das crianças, não as deixam brincar, nem um cumprimento nem um afago, não as deixam sequer estar sentadas a um canto, mas que género de pessoas são vocês? Eu quase apanhei SIDA para que os meus filhos brincassem.

A mulher do cabelo ruivo bate com uma mão no peito e faz o gesto de uma seringa no braço.

Eles não sabem o que responder, ficam calados.

Nós, ao sinal combinado, voltamos a vestir-nos e seguimos a Antonia até casa em fila indiana, ela afirma que havemos de voltar. E voltamos mesmo, todas as tardes depois das aulas, para nos armarmos em indecorosos no pátio, até que a Roberta recupere o
lugar no seu canto soalheiro.

É preciso insistir, para se conseguir, se insistirmos uma e outra vez, não há nada que nos pare, explica a minha mãe ao Mariano, reparando na Roberta com o seu babete turco a agitar as mãos no ar e a girar os pulsos, parece feliz.

A nossa mãe parece a heroína de uma banda desenhada, a Anna Magnani no cinema, a vociferar, a não se render, a calar toda a gente.

Eu e o Mariano ficamos ali no corredor que vai dar aos quartos, de calças curtas e barrigas das pernas enrijecidas, a fixar o nosso medo nos olhos: não ser como a Antonia, nunca chegar para as encomendas, não vencer nenhuma batalha.

* Todos os nomes foram mantidos como no original italiano, incluindo aqueles cuja grafia é muito próxima da portuguesa, casos de Antonia, mas também de Agata, Iris, Massimo ou Sergio, entre outros. (N. do T.)