Quando visitamos um museu e nos maravilhamos com as peças que representam o aspecto físico da cultura universal, esquecemos muitas vezes como é que chegaram aquelas salas. Amiúde, esses símbolos da grandeza do Homem têm atrás de si um rastro de roubos, decepções e interesses comerciais que revelam como os homens podem ser arrogantes, desonestos e injustos. Em muitos casos, estas malfeitorias estão agora a ser postas em causa.

Comecemos pelos aspectos históricos. Alguns exemplos ilustram as dezenas, se não centenas, de situações de pilhagem artística que ocorreram no passado.

O fantástico busto da rainha Nefertiti, mulher do faraó Akhenaton, que terá sido moldada cerca de 1345 a.C. em Amarna, no Egipto, está exposto no Neues Museum, em Berlim. Foi descoberto em 1912, numa cave cheia de lixo, por uma equipa arqueológica alemã chefiada pelo cientista Ludwig Borchardt e mostrada ao público pela primeira vez em 1924. Num documento desse ano, Borchardt explica que levou o busto para Berlin com a intenção de o preservar para apreciação universal.

Em 1912, o Egipto pertencia oficialmente ao Império Otomano, mas era controlado de facto pelos ingleses desde 1882 e visitado por várias expedições arqueológicas europeias. Tinha sido “colonizado” pelos franceses aquando das invasões napoleónicas, em 1798-1801 e, embora tivesse um rei nominal, era de facto uma terra usada pelos europeus para os seus interesses comerciais; o canal de Suez foi aberto pelos franceses entre 1859 e 1869, para encurtar a circunavegação da África e reduzir brutalmente os custos de transporte dos produtos que os europeus negociavam no Oriente.

Isto para dizer que Borchardt convenceu facilmente o responsável egípcio pelo controlo das descobertas arqueológicas europeias - na realidade, de as negociar  - de que o busto não tinha qualquer valor.

Outro exemplo, a famosa Rosetta Stone, um fragmento de pedra datado do século II a.C. com inscrições em demótico, grego antigo e hieróglifos egípcios. Descoberta pelas tropas de Napoleão em 1799, permitiu ao cientista Champollion decifrar os hieróglifos, um avanço notável, pois até aí ninguém o tinha conseguido. Quando os ingleses derrotaram os franceses, o Tratado de Alexandria permitiu-lhes levar a Pedra para o British Museum, onde se encontra desde 1802.

Ainda outra história, os chamados “Bronzes de Benin”. Foram encontrados na Nigéria em 1897 e são cerca de cinco mil, entre esculturas e marfins. A expedição inglesa, chefiada pelo explorador James Robert Phillips, foi massacrada pelos locais. Em represália, o Governo de Sua Majestade enviou uma força militar que voltou com o tesouro, hoje espalhado por 131 instituições em 20 países, como resultado de várias trocas e acordos.

Os Bronzes de Benin
Os Bronzes de Benin créditos: AFP or licensors
Os Bronzes de Benin
Os Bronzes de Benin créditos: AFP or licensors

Só mais uma: os frisos do Partenon. A Grécia fez parte do Império Otomano durante quatro séculos até que, em 1821, iniciou uma revolta que levaria à sua independência, em 1832. A luta dos gregos foi uma “cause célèbre” por toda a Europa e muitos europeus juntaram-se a título pessoal à revolta; o mais famoso terá sido Lord Byron, que morreu a combater em 1824. Mas os governos europeus também tinham interesse na derrota dos Otomanos (que se consumaria definitivamente na I Grande Guerra) e ajudaram os revoltosos com material e apoio logístico. No final da guerra, a Grécia tornou-se teoricamente independente, mas de facto na mão dos ingleses, o que permitiu ao seu embaixador, Lorde Elgin, extrair uma parte do friso do Partenon, além de outras preciosidades, e empacotá-los para o British Museum, onde ainda se encontram.

A desculpa de Elgin, como nos outros casos, foi a mesma de sempre: aquelas maravilhas precisavam de estar num lugar seguro - isto é, longe de zonas sem governo estável e em conflito permanente ou risco latente - onde pudessem ser apreciadas e estudadas por uma audiência “civilizada”. Por outras palavras; são património mundial, por isso devem ser salvaguardadas pelos donos do mundo.

Estes são apenas três casos, talvez os mais conhecidos; na realidade houve centenas, e os dez mais importantes podem ser apreciados aqui. Nem todos implicaram saques, deve dizer-se, basta pensar no obelisco egípcio em Paris, na Praça da Concórdia.

A compra legal de património artístico é o segundo aspecto a considerar no mercado de arte mundial.

Terminado o período imperialista, expansionista e colonialista protagonizado pela Europa, que podemos datar do final da II Guerra Mundial, deixou de ser possível - por razões mais estratégicas do que éticas - saquear a torto e a direito as regiões mais remotas, pois todas elas passaram a ter governos e aparelhos de Estado que, mais ou menos, tentavam controlar as suas preciosidades.

Mas essa autodeterminação ou independência não eliminou dois aspectos importantes: as diferenças de rendimento e a corrupção. Para continuar o exemplo já citado, o Benin  passou a chamar-se Nigéria e a ter uma governação “moderna” reconhecida internacionalmente, mas continuou a ser um país pobre e corrupto. Dois casos ilustram esta situação:

A mastaba egípcia completa exposta no Metropolitan Museum of Art de Nova Iorque, ou a igreja românica, com claustro e tudo, foram negócios legais, se considerarmos que é legal comprar património público de um país e levá-lo para outro. Casos de monumentos são raros, mas peças de arte mais portáteis, como esculturas, pinturas e outros artefactos, são comuns.

E chegamos à vertente mais emocionante desta narrativa constrangedora: o mercado de peças roubadas, ilegais na aquisição local e legais na venda posterior a museus e colecionadores.

Há especialistas internacionais em obter obras de arte “exóticas” - esculturas de templos indianos, é, por exemplo, bastante típico - e depois, através de um processo tortuoso, branquearem a origem. Hoje em dia são principalmente os museus norte-americanos que têm fundos para enriquecer as suas colecções, mas um pouco por todo o mundo desenvolvido estas instituições estão sempre atentas a uma oportunidade. Os particulares multimilionários também compram, mas são menos exigentes quanto à autenticidade e legalidade do percurso algo que nos museus e instituições semelhantes é. em regra, parte do processo do aquisição com a verificação da origem e do percurso das peças.  No caso dos particulares, como não fazem tenções de exibir publicamente as peças, depende mais da sua ética do que outra coisa a origem mais ou menos duvidosa.

Malcom Gladwell conta no seu livro “Blink” que o Museu Getty, de Los Angeles, recebeu a proposta de comprar uma escultura grega de rara beleza. Fizeram-se os testes: o mármore era da época certa, os restos de pigmento correspondiam às fórmulas da Grécia clássica. Quanto à origem, começava na Suíça, algures entre as duas guerras, na posse de um colecionador judeu, provavelmente fugido ao nazismo. O museu comprou. Para encurtar uma longa história, logo se provou de que se tratava de uma falsificação, tão boa que o escultor pirata tinha usado uma pedra obtida numa escavação (portanto com a datação por carbono certa).

Mas o mais comum - calcula-se, porque não se sabe - são as peças surripiadas na origem, graças à conivência local, porque boas falsificações, do tipo da que Gladwell conta, não são fáceis de produzir.

"Uma história típica é a de Subhash Kapoor, um negociante de arte e antiguidades sediado em Nova Iorque, que durante anos vendeu a museus de todo o mundo peças indianas seculares. Em 2008, negociou um “Shiva dançante” do século XI com a Galeria Nacional da Austrália, por 5,6 milhões de dólares. A peça tinha desaparecido de um templo de Tamil Nadu algum tempo antes. Também vendeu treze peças à Galeria de Arte da Universidade de Yale.

Antes da sua prisão, em 2011, era considerado pelos negociantes de arte novaiorquinos pela sua capacidade de aparecer com peças da melhor qualidade. Na realidade tinha contrabandeado mais de 2.600 objectos,no valor de mais de 143 milhões de dólares, através de uma cadeia internacional de contactos no Afeganistão, Camboja, Índia, Paquistão, Nepal e Tailândia.

Foi extraditado para a Índia e em novembro de 2022 recebeu condenação a 10 anos de prisão.

Kapoor teve azar, mas, embora sem estatísticas que o comprovem, por cada Kappor com azar deve haver dúzias que kappors que nunca são apanhados, sobretudo se venderem a particulares. Ao que se ouve por aí, esculturas orientais e africanas são a “créme-de-la-créme” para os milionários que gostam de impressionar os amigos.

Convém não confundir estes "especialistas" com vulgares ladrões que roubam museus e colecionadores. É evidente que uma peça roubada de grande valor é facilmente identificável e difícil de vender porque o comprador não a pode mostrar a ninguém. O maior roubo puro e duro registado até à data foi de treze quadros do Museu Isabella Stewart Gardner, em Boston, no valor  de 300 milhões de dólares (valor à época, em 1990). Até hoje não se encontrou nenhum desses quadros. Se quer saber quais os maiores roubos da História, que incluem, surpreendentemente, a Mona Lisa de Leonardo e obras de Modigliani, Léger, Picasso e Georges Braque, veja aqui.

Voltando ao mercado da Arte propriamente dito: há poucos anos - os museus começaram a devolver várias peças aos donos, sejam eles indivíduos ou países. Os alemães, por exemplo, estão numa campanha de encontrar os herdeiros dos judeus expoliados pelos nazis. O Metropolitan Museum of Art de Nova Iorque, vulgo Met, devolveu algumas peças à Grécia e à Turquia,15 delas vendidas por Kapoor.

Mas há devoluções que nunca irão acontecer. Embora a Grécia já não seja uma terra desgovernada e até pertença à UE, os ingleses recusam-se a entregar os frisos do Partenon, que permanece terrivelmente desfigurado. Recentemente, até tiveram a arrogância de propor emprestá-los aos gregos. E os alemães podem querer reparar os danos que causaram ao património dos judeus, mas não se pronunciam sobre o busto de Nefertiti, que os egipcios andam a reclamar desde a década de 1920.