PARTE 1

O DESTINO

Onde se relata um episódio em que já se adivinha tudo o que depois se vai passar.

LEONOR PARDA

Leonor Parda, mulher de virtude, lera cedo a notícia do que havia de se passar, dando conta a duas ou três vizinhas do recado dos búzios que lançara.

Como é de regra sempre, e tem de ser, só depois de a história ter mesmo acontecido é que correu a notícia do que a mulher lá tinha visto. E, valha o que também sempre é, com abundantes aconchegos de cada contador.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Mas não que fosse a realidade que o pedisse.

A adivinhação batia, desta vez, tão certo com o dia, a hora e o palavreado, que arrepiava só de ouvir.

Como cada um, a querer, o confirmará por si no que adiante, sem enfeitar, se vai dizer.

Que aqui só se contam factos. Aí vão eles.

ANDRÉ VICENTE

André Vicente era criado de casa do barão do Alvito.

Subia numa corrida, a duas e duas, as escadinhas da praia para Alfama pelo caminho largo que entrava pela Porta Nova do Mar.

Atravessou a muralha evitando as galinhas que debicavam cascas e lixo entre as paredes tombadas das casas que ali haviam sido em tempos pertença do Convento de Jesus.

O fato justo não ajudava a pressa que o amo lhe pusera, como sempre, no encargo.

Era de crescer.

Apertava‐lhe o corpo no gibão e nas calças que lhe tinham dado fazia muito tempo.

Mas ele compensava com empenho esse de menos, apostando no fôlego e no brio do ter sido eleito por D. Fernão da Silveira, o filho mais velho do barão, para este serviço de segredo.

E esta vaidade de escolhido tirava‐lhe peso ao corpo.

Já veremos que lho havia de passar para a alma, mas cada coisa a seu tempo.

OS BÚZIOS

Virou logo ao primeiro beco, perguntou pela casa da Leonor Parda a um que cosia redes e lá foi pela indicação, acompanhado por olhos de vizinhos e evitando porcarias, até à porta apontada.

Era uma choça de pedras mal compostas, como as outras pela rua estreita e triste.

Livro: "A Nora e os Alcatruzes"

Autor: João Corrêa Nunes

Editora: Clube do Autor

Data de Lançamento: 7 de junho de 2023

Preço: € 18,00

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Atravessou num pulo fácil o rego de água suja que escorregava viscoso na lama da valeta.

Espreitou a dizer pelo que vinha e a mulher que o encarou, sabendo‐o de transportar recados, foi‐se ao assunto não se apoquentando com cumprimentos.

Que entrasse.

Habituou‐se devagar ao bafio gordo e ao escuro e ficou, sem escolha, em pé, enquanto a outra se enrodilhava no chão no meio de uns panos a que ele ia percebendo cores envelhecidas.

Um sussurro cresceu desprendendo, aqui e ali, uma ou outra fala mais de crente, com o corpo a abanar o tremor que se lhe soltava em guinchos curtos.

Saíram‐lhe da mão os búzios que, lançados ao pano num estremeço, deram o que tinha de ser, sem interromper a lengalenga entaramelada. Quedo e calado, o rapazinho esbugalhava na cena quantos sentidos tinha mais o medo, medindo cada salto das conchas e pesando no estômago o destino que elas escreviam.