Mónica de Miranda, portuguesa de origem angolana, iniciou o projeto “Pós-Arquivo” em 2009, quando se mudou para Lisboa depois de quase 15 anos a viver em Londres.
A exposição “Contos de Lisboa”, que fica patente no Arquivo Municipal Fotográfico até 16 de maio, é uma parte desse projeto, que reúne fotografias, documentos, áudios e vídeos, e está em construção, sendo possível aceder-lhe ‘online’, em www.postarchive.org.
A Estrada Militar — “uma antiga fortaleza usada para defender Lisboa contra as invasões francesas e inglesas e que ficou ao abandono” -, assim como a tomada de “consciência da sua existência” por parte da artista, “foi o que originou o projeto”.
Mónica Miranda descobriu que, “ao longo dessa estrada, onde ainda há fortes militares, estão situados quase todos os bairros [da periferia de Lisboa] de génese ilegal”.
A artista, em declarações à agência Lusa, numa visita à exposição, recordou que, “na década de 1970, e até à de 1990, [a partir da] altura das independências em África, os imigrantes africanos que chegavam, até para construir a própria cidade de Lisboa, foram ocupando esses terrenos e foram surgindo bairros de génese ilegal, desde a Cova da Moura [Amadora] e 6 de Maio [Amadora] ao Fim do Mundo [Cascais] e à Azinhaga dos Besouros [Amadora]”.
Mónica de Miranda trabalha entre Lisboa e África, e esse “outro território dentro da cidade, um território que está deslocado, que é uma Europa fora da Europa”, sempre a fascinou.
“São territórios que estão às margens da cidade, mas de certa forma a cidade é construída porque há essas margens que acolhem essas pessoas que dão apoio a essa cidade”, referiu.
Para a artista, a Estrada Militar “está carregada de histórias” sobre como se lida “com o urbanismo e as suas memórias” e “a ligação do território a factos históricos que ligam Portugal ao seu passado colonial”.
Durante dez anos, a artista foi “acompanhando as transformações ao longo dessa estrada militar” e, passado uma década, “essas margens estão em transformação também”.
Lisboa “está a crescer, o próprio centro está a redefinir-se, e está a tocar nas margens, nas antigas margens, e está a provocar outro tipo de tensões à volta desses lugares, onde temos ouvido falar de demolições”.
Em “Contos de Lisboa”, a primeira peça é “um filme sem muitas preocupações estéticas”, um ‘road movie’ na Estrada Militar, “que é mais um registo de uma viagem num carro”, com Mónica de Miranda ao volante e três ocupantes, residentes nos bairros.
O vídeo tem “dois tempos”. Um dos tempos é o de agora, através dos testemunhos dos ocupantes dos carros, “das experiências à volta da Estrada Militar”, como a de “um poeta angolano, que vivia numa das casas de Mira Loures [bairro em Loures], que um dia ficou doente, foi ao hospital e quando voltou a sua casa estava demolida”.
“Fala-se em primeira pessoa de toda a resistência e de todos os problemas que há à volta. Não é um olhar de quem está a ver de fora, mas de quem está a ver de dentro. No entanto, nós estamos a ver de fora, mas quem está a falar está a falar de dentro. E é um bocado o que a exposição quer fazer”, explicou a artista.
O segundo tempo é o do passado, com excertos de textos de um manual de História de Portugal sobre o que era a Estrada Militar no século XIX, no formato de legendas.
“Contrapomos dois tempos que nos fazem questionar se o presente que nós vivemos agora está relacionado com esse passado e se ainda tem implicações. Neste momento estamos a construir fortes que não deixam entrar imigrantes e africanos na cidade, então contrapus com as legendas, que as pessoas estão à espera que seja uma tradução do que se está a dizer noutra língua, mas não”, justificou.
Ao lado do vídeo está exposto “um quilómetro de fotografias” que foi captando numa caminhada num pedaço da Estrada Militar, “que se chama ‘Estrada Militar'”.
Ao longo dos últimos dez anos, vários dos bairros foram sendo destruídos e, nesta peça, a artista quis “mostrar a violência do que é estar a residir ao lado de uma demolição”.
“Há casas erguidas ao lado de casas demolidas e isto já está acontecer há dez anos e é uma forma de resistência”, afirmou Mónica de Miranda, salientando tratar-se de “casas sólidas construídas pelas próprias mãos” dos moradores.
Enquanto artista que usa muito a fotografia, mas vem da escultura, o interesse de Mónica de Miranda é registar o que está à sua volta e não apenas o que tem à frente, “e escavar para além da imagem que se vê”, “tentar ir além dessas fachadas, do que se designa como bairros problemáticos”.
Esse trabalho de ‘arqueologia’, “escavar e tentar entender para além do que se vê, como um arqueólogo a tentar entender esses lugares”, está refletido no conjunto de fotografias de objetos que resgatou de casas demolidas em alguns dos bairros.
“A minha intenção aqui foi realmente entrar nesse interior e ver o que é que ficou para trás, porque houve uma pressa de sair”. E essa ‘pressa de sair’ é notória com o ‘resgate’ de “documentos pessoais, manuais de estudo, receitas de culinária, sapatos de festa, malas de viagem, trabalhos de casa de crianças, fitas de memória de família”.
Estes objetos, entre os quais está um “manual de estudos de economia política”, também despem quem os vê “dos estereótipos de olhar só para o lugar como um lugar nas margens”.
“Eles despem-nos dos estereótipos, e chegamos realmente a vivências de estar, de pertencer”, afirmou.
Os objetos foram recolhidos em cinco casas e Mónica de Miranda ‘deu as casas’ a outros escritores, africanos ou portugueses descendentes de africanos — Djaimilia Pereira de Almeida, Kalaf Epalanga, Yara Monteiro, Ondjaki e Telma Tvon –, que “tiveram abertura para fazerem um conto à volta da casa”.
Os contos, “uns mais reais e outros mais imaginados”, são narrados por atores e ouvidos através de ‘headphones’ disponíveis na exposição.
Na segunda sala de “Contos de Lisboa” estão fotografias onde “passado e presente se cruzam”.
Numa delas, captada no bairro 6 de Maio, Mónica de Miranda usou como cenário um mural interior, que ficou a descoberto na demolição de uma casa, e que retrata uma paisagem africana, para fotografar uma mulher vestida com padrão de camuflado militar.
“Estes murais são quase uma forma de se criar um outro território fora do seu território e pintar o que ficou para trás, essa memória de África”, referiu. Ao lado, uma imagem “do arquivo de Amílcar Cabral, [da presença] das mulheres na luta armada de libertação para a independência”.
A imagem remete para mulheres, mães solteiras, que vivem nestes bairros e “estão a lutar duas vezes”.
“Vieram para uma terra prometida à procura de melhores situações depois das independências. No entanto estão presas num território em que têm de lutar ainda mais, até por um espaço para pertencer e por uma casa para habitar”, referiu.
À foto que tirou no bairro Terras da Costa chamou “Twin Towers”. “É uma ironia. As gémeas [que foram fotografadas], de certa forma, contrapõem o passado e o presente. Elas são representações dessa dualidade, do que passou e do que é”.
“Aqui não estou a ‘dar-te’ o bairro. Elas estão a olhar para o bairro. Dou o que está à volta”, explicou à Lusa.
As casas voltam a estar em destaque na sala “Casa Portuguesa”: “A ideia era olhar para as casas dos bairros e erguer-lhes um estatuto de arquitetura, de visibilidade e de criatividade desses espaços, que são pensados sem planos, mas no entanto têm os planos que são os sonhos das pessoas que põem cada tijolo”.
A partir de fotografias do arquivo, Mónica de Miranda pediu a um arquiteto que fizesse desenhos das fachadas, e daí foram construídas as maquetes.
“Contos de Lisboa”, com curadoria de Bruno Leitão e Sofia Castro, estará patente de 18 de fevereiro a 16 de maio, no Arquivo Municipal Fotográfico de Lisboa.
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