Entre o bisturi e a caneta, João Luís Barreto Guimarães escolheu os dois. O médico-cirurgião no Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia tem vindo a compatibilizar — mas com diferentes graus de dificuldade, como veio a admitir — o seu trabalho técnico com o criativo, numa carreira literária que já se estende para além de três décadas.

“Há Violinos na Tribo”, lançado em 1989, marcou a sua estreia literária, na altura com 22 anos. Desde então, publicou outros 10 livros de poesia (além de uma antologia e duas reuniões de obra poética), o último dos quais, “Movimento” (Quetzal), saiu já durante a pandemia, em outubro do ano passado.

Por entre os seus lançamentos — vários deles traduzidos em várias línguas — “Mediterrâneo” (Quetzal), publicado em março de 2016, valeu-lhe dois galardões: o Prémio de Poesia António Ramos Rosa em 2017 e o Willow Run Poetry Book Award 2020, nos EUA, na sua tradução para inglês. Já "Nómada," saído a maio de 2018, venceu o Prémio Livro de Poesia do Ano Bertrand e o Prémio Literário Armando da Silva Carvalho de 2020.

O 12º volume, esse, não sabe quando irá sair, não só porque este período que vivemos não é fecundo para a sua produção literária, como também admite que tem vindo a tornar-se cada vez mais exigente, o que pode obrigar a um maior espaçamento entre lançamentos. A esse propósito, recorda uma das suas maiores inspirações, a polaca Wisława Szymborska que, com sensivelmente a mesma idade que a sua, demorou 10 anos a publicar o livro seguinte.

Entre publicações, João Luís Barreto Guimarães tem-se mantido obviamente ocupado. Não só porque ainda acumula a função de tradutor — “Afectuosamente”, livro de poemas da canadiana Margaret Atwood editado por cá pela Bertrand em julho, foi por si passado a português — mas porque a sua rotina, passada entre consultórios e salas de operações, agravou-se com a pandemia.

Como ocorreu a tantos profissionais de saúde do país, Barreto Guimarães viu os seus turnos duplicarem e o risco de infeção à espreita, apesar de não se encontrar na primeira linha de combate. Tais condições, físicas e mentais, foram inibidoras da pulsão criativa, não são só porque não tinha acesso ao seu caderno de notas onde cada pensamento fugaz fica registado, como também “a cabeça esteve muito preenchida com uma determinada linguagem técnica” que não dava azo a imagens poéticas.

Mas é exactamente essa ponte entre o mundo da medicina e o da poesia que pretende construir com a cadeira que vai lecionar a partir de setembro no mestrado integrado de Medicina do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto. Intitulada “Introdução à Poesia (para estudantes de Medicina)”, será integrada no 1.º semestre do 2.º ano do curso, com um plano de 14 aulas de duas horas.

Apesar de alguns dos seus poemas versarem sobre a medicina ou os doentes, João Luís Barreto Guimarães pretende resistir ao seu uso. Ao invés, o agora docente prefere percorrer pelo cânone ocidental e “escolher poemas que falem da poesia, tentando que sejam poemas sobre doenças”.

Com isto, espera não só que os seus alunos carreguem o gosto pela poesia para fora das aulas, como também que o seu contacto com o que chama “uma linguagem de fragilidade” os faça encarar a relação com os doentes de forma mais empática. A subjetividade da poesia, defende ainda, pode permitir que se pense no diagnóstico de patologias de uma forma menos óbvia e que se tenha consciência que os doentes muitas vezes não expressam realmente o que estão a sentir. Porque não sabem, ou porque não querem.

"O que é que têm estes poemas em particular? São uma janela para a alma de quem os escreveu"

"O médico que só sabe de Medicina, nem de Medicina sabe". A frase é de Abel Salazar, a figura que dá nome ao Instituto onde vai lecionar o curso de Introdução à Poesia a partir de setembro. O que é que um médico pode aprender com a poesia?

A questão aqui é: que tipo de perspetiva é que um aluno de medicina, praticamente no início do seu curso, pode vir a ter de um conjunto de poemas que irão ser apresentados, no que diz respeito concretamente à construção da relação médico-doente e à perspectiva que o jovem estudante, um dia médico, poderá ter do doente? A medicina é uma ciência que, não sendo exata, deverá conduzir a um diagnóstico e a um tratamento rigorosos, e ao melhor resultado terapêutico possível. Muitas vezes não é possível evitar a morte, mas deve haver esse objetivo. Um aluno nessas disciplinas aprende um conjunto de sinais, sintomas e queixas que, no conjunto, constituem síndromes e doenças para as quais há tratamentos. Essa objetividade deve estar presente na formação das cadeiras clínicas. Mas nessa construção dessa relação médico-doente, o doente só vai dizer aquilo que o médico souber perguntar e aquilo que ele quiser dizer.

Em que sentido?

Por exemplo, nos síndromes psiquiátricos sabe-se que muitas vezes o doente não quer dizer tudo. Há outro tipo de patologias em que [nem tudo é revelado], por razões mais de pudor ou porque os doentes não têm facilidade em exprimir numa primeira abordagem certas coisas. Ora, o médico vai, ao longo da sua carreira e depois no âmbito da sua própria especialidade, desenvolvendo uma certa capacidade de ver para lá daquilo que o doente mostra e daquilo que é dito. O que é que têm estes poemas em particular? São uma janela para a alma de quem os escreveu. Ou seja, num momento de intimidade, de fraqueza, de confissão ou de entrega, estes poetas, quer enquanto doentes, quer imaginando-se doentes, quer enquanto familiares de pessoas doentes, escreveram determinados poemas que, de certa forma, mostram uma perspectiva mais confessional e mais interna. O interior de um conjunto de patologias que, servindo de exemplo, pode ser interessante para os alunos conhecerem esse lado mais oculto e, vamos dizer assim, mais subjetivo, do que aquilo que objetivamente eles dizem.

Um doente pode dizer que tem uma dor, mas esta tem de ser quantificada e o caráter de quantificação não é a mesma coisa que uma tumefação, que pode ser medida, pode ter quatro centímetros, pode ser superficial, pode ser profunda, pode ser dolorosa ao toque ou não, pode ter aumentado muito ou ser estável. Isso é um sinal clínico. Um sintoma ou uma queixa normalmente têm um cariz muito subjetivo e o médico tem de aprender a objetivar isso. A poesia além de apresentar o lado de lá da doença — porque é o lado da "alma do doente" — utiliza uma linguagem diferente e uma perspectiva claramente mais subjetiva do que a objetiva e é interessante treinar os estudantes nisso.

E onde é que essa subjetividade pode ajudar?

A poesia é uma linguagem de fragilidade. Mesmo quando é uma linguagem de resistência e aparenta ser forte, é normalmente a linguagem não do vencedor, mas do derrotado. Há um potencial de estes jovens alunos, quando escutarem e lerem estas vozes, desenvolverem neles características de compaixão. Aqui é-lhes apresentado alguém — talvez não com um rosto, mas com um nome —, o que é seguramente algo que uma tabela de um livro de texto onde se descreve objetivamente uma doença não tem.

Quando estudamos um determinado síndrome, o que temos é uma lista de sinais daquilo que é expectável que a maior parte dos doentes que têm aquela patologia venha a ter. Mas não temos ali um nome, não temos ali um senhor ou uma senhora com aquela doença ou aquela patologia. Num poema há uma persona, que normalmente é identificável, sendo que o poema pode ser mais ou menos biográfico. É portanto do conjunto destas três características — humanismo, empatia, compaixão — que temos a possibilidade de uma mais-valia na formação precoce destes estudantes.

No fundo, a literatura, mas mais em concreto a poesia, ajuda a colocar-nos no papel do outro?

Normalmente os próprios poemas — e nisso vou ter de ter algum cuidado na escolha desses poemas, vou necessitar de alguma inteligência nessa seleção e ir aprimorando a escolha de aula para aula e de ano para ano — são já uma voz. É já o outro que fala. Portanto, aquilo é uma autoestrada direta para a intimidade de outra pessoa, que não falou concretamente para aquele médico, mas para um público. E depois a poesia é uma arte que tem vários extratos e que vive muito dessa charada da interpretação. Permite ajudar a interpretar, que é uma coisa que o médico tem de ter ao longo da vida e tem que o fazer muito rapidamente. Por exemplo, num serviço de urgência vai ser pedido que em apenas uma hora atenda a um conjunto vasto de doentes e, portanto, a capacidade de ir ao osso e de aprimorar a pergunta, perceber rapidamente o que é essencial e o que é acessório, também passa muito pela capacidade de interpretação e isso é uma coisa que vai ser "treinada" neste conjunto de aulas. Obviamente que são apenas 14 aulas, 28 horas ao todo, mas eu espero que suscite curiosidade, que deposite sementes e desperte vontade para depois, fora do âmbito da cadeira, se continue com este gosto pela poesia e pela literatura.

"Nós, quando falamos dos doentes, temos tendência a imaginar um doente ideal, que é nem mais nem menos aquele que nós seríamos se ou quando fomos doentes"

Fala de interpretar por um lado os sintomas, por outro poemas. Podemos incluir aqui a interpretação da própria forma como o outro se relaciona connosco? 

Há poemas sobre isso tudo! Há várias antologias de poemas sobre medicina, ou relacionados com medicina. Nós, quando falamos dos doentes, temos tendência a imaginar como um doente ideal, que é nem mais nem menos aquele que nós seríamos se ou quando fomos doentes. Mas, na realidade, há doentes muito humildes e muito diretos que só não colaboram mais porque não podem, e depois há doentes muito fechados, até algo agressivos e arrogantes, mas que têm esse tipo de atitude como um pedido de ajuda para a resolução de um problema. Há doentes que lidam bem com as doenças que vão tendo e há doentes que lidam mal. E não lidam sempre da mesma maneira: numa altura da vida para uma determinada patologia podem ter uma capacidade maior de aceitar e noutra altura, noutro contexto, para outra patologia diferente, não ter. A dificuldade ou a facilidade com que o médico consegue entrar no outro para recolher a informação que é necessária para chegar a um determinado diagnóstico para depois, confrontando com os diagnósticos diferenciais, propor um tratamento, ao contrário do que as pessoas pensam, é muitas vezes extraordinariamente difícil. Esta capacidade de ir buscar ao outro aquilo que o outro por vezes não quer dizer, ou quer dizer mas não sabe que é importante... nalguns destes poemas aparece explícito. 

Até a própria descrição da reação do paciente acaba por ser interessante num conjunto de poemas como estes, porque é este tipo de hesitação sobre aceitar ou não aceitar, lutar ou não lutar contra uma determinada patologia. Muitas vezes há poemas que falam exatamente sobre isso, sobre essa aceitação. No caso de questões neoplásicas, por exemplo, de tumores e de cancros, há vários poemas que falam disso. Há personas poéticas que aceitam com mais ironia e mais sarcasmo, outras que rejeitam liminarmente e outras que aceitam com mais colaboração. Portanto, vamos ler sobre vários exemplos. A propósito de explicar como funciona um poema contemporâneo, o que é que acontece, o que é que é isso dos versos, as estrofes, a métrica, a rima, os sons, o tom... toda a oficina do poema. Mas não serão sempre poemas sobre patologia e doença, serão também temas sobre a vida em geral — algo que é o grande tema da poesia —, a vida, a morte, o amor, o divino...

A experiência humana, no fundo.

Sim, esse é o grande tema da poesia. Portanto, nem que não se falasse de doentes ou de doenças, estar-se-ia a falar do ser humano, que pode ser "potencialmente doente", por assim dizer.

João Luís Barreto Guimarães
João Luís Barreto Guimarães créditos: PEDRO SOARES BOTELHO / MADREMEDIA

Pretende incluir alguns exemplos médicos e não médicos? Na sua cabeça existe algum currículo essencial para introduzir um aspirante a médico à poesia?

Eu não vou escolher poemas que falem de determinadas doenças e falar desses poemas a propósito da poesia. Eu vou escolher poemas que falem da poesia, tentando que sejam poemas sobre doenças. Ou seja, a cadeira não é "Medicina Narrativa" nem é "As Patologias Vistas por Poetas". Não, nós vamos falar sobre poesia contemporânea e eu vou, tanto quanto possível, exemplificar a oficina do poema, escolhendo exemplos que tenham uma temática próxima daquela que é a de um curso de medicina. O nosso objetivo não é medicina. Para isso, eles têm cinco ou seis anos de curso para aprender essas patologias de uma forma muito rigorosa e objetiva.

O meu objetivo é a linguagem, e, em atalho de foice, falar e mostrar qual é a visão de poetas — porque vou única e exclusivamente utilizar poemas, sem ficção nem prosa, nem romances nem contos. Na primeira aula vamos falar de poemas líricos, poemas narrativos, poemas dramáticos e poemas pedagógicos e teremos para cada um destes quatro gêneros de poesia um poema contemporâneo. Um será do Jorge Sousa Braga, outro do Robert Frost, outro da Wisława Szymborska e outro do poeta inglês Simon Armitage, por exemplo. Os poemas serão muito contemporâneos, serão dos séculos XX ou XXI, os autores não serão todos autores já falecidos — nestes quatro que eu disse é 50-50 — e os quatro poemas tocam no assunto "Medicina e Cirurgia", mas vão ser apresentados para um curso de Introdução à Poesia. O foco é a poesia, eu estou interessado que eles tenham contacto com a linguagem poética.

Confissão a Hipócrates de Cós

Lembro-me daquela vez em que tratei
um carpinteiro. Sobre a mesa de operar nada
mais que o habitual –
quem nos visse a trabalhar (à
minha colega e a mim) diria
que a dança técnica seguia na perfeição
(os dedos da
mão doente tanta vez tão maltratados:
eram mais os que faltavam do que os dedos
por ceifar)
nunca mais aquela mão havia de pedir boleia
celebrar uma vitória
cursar com o dedo do meio.
Debaixo da mesa porém dava-se o
que vou contar: o
joelho dela ficou por entre
os meus joelhos e (escutem:)
tenho a certeza
(bem sei que foi um instante mas tenho
quase a certeza) algo em mim parecia vivo
(o lume daquele instante ainda hoje o sinto)
perdidos vão tantos anos ainda arde
a sua ausência como o rapaz diz que sente (e
acreditem que acredito:)
a ponta dos dedos ceifados.

de "Mediterrâneo" (2016)

Está a pensar em usar os seus próprios poemas? A sua obra, apesar de mais focada no quotidiano, tem algumas incursões pela medicina. O "Confissão a Hipócrates de Cós", o momento-chave descrito no poema, na minha interpretação, é essa humanidade a despontar no momento em que se exige frieza mecânica.

Eu vou tentar resistir àquilo que seria mais fácil para mim, que era utilizar bastantes poemas meus para exemplificar todos aqueles instrumentos poéticos de que falei. Se eu perceber que há interesse e curiosidade da parte dos alunos para que se fale dos meus poemas, poderei ir introduzindo. Mas vou partir tanto quanto possível sempre de outros poetas, até porque com isto vamos não só percorrer o cânone em 28 horas — uma parte substancial do cânone de poemas do século XX e do século XXI, europeus e americanos —, como também vai ser uma oportunidade de conhecer os autores. Quando eu apresento um poema, apresento um slide com o rosto do poeta e uma biografia mínima. Interessa-me que, quando mostrar um poema do William Carlos Williams, do [Konstantínos] Kaváfis, do Robert Lowell, do Philip Larkin, do Miguel Torga ou de quem seja, se possa aproveitar para falar da linguagem poética com os alunos.

Quero tomar aquela oportunidade para lhes falar da poesia ou do poema em si, mas também para mostrar que há um poeta que viveu no século passado na América chamado William Carlos Williams que era pediatra e que, por curiosidade, foi o pediatra do Allen Ginsberg e que escreveu aquele poema que nós estamos agora ali a mostrar e a discutir na aula. Para crescer neles alguma curiosidade em saber que esse poeta existiu e que até por exemplo inspirou um filme contemporâneo chamado “Patterson”. E que os poemas do filme foram escritos por outro poeta chamado Ron Padgett... A cultura constrói-se assim, por anexação, por saltar de um género artístico para outro, de um país para o outro, de um nome para o outro. Vai-se puxando o fio de Ariadne e vai se vendo onde é que a coisa vai levar.

O exemplo de William Carlos Williams é interessante porque, como referiu, e tal como o João, foi médico e poeta. No seu caso, o que veio primeiro: a caneta ou o bisturi?

Eu comecei a escrever antes de entrar no curso e, se incluirmos o internato geral, antes de entrar na especialidade, já tinha três livros publicados. Ou seja, no meu caso, a  poesia antecedeu a medicina.

E como é que os foi compatibilizando?

Não tão bem como agora. Inicialmente, quando necessitava de bastante tempo para estudar, só conseguia escrever e dedicar-me à literatura à custa de roubar tempo ao estudo e isso obviamente tinha consequências quantificáveis, porque o tempo não é elástico! Depois houve uma fase em que, tendo já completado o curso de medicina, aproveitei uma vantagem que a poesia tem e que é que, enquanto que uma cadeira decorre num ano letivo, tem um semestre e uma data específica para ser realizada — ou seja, não é adiável —, a poesia é uma arte que o poeta gere a seu próprio prazer. Se quiser estar dois anos sem publicar um livro, está, mas se quiser estar seis anos sem publicar um livro — como eu cheguei a estar — também está. Um poema pode acontecer por fragmentos e um livro pode ser construído num intervalo de tempo bastante grande. Portanto, nessa guerra entre a medicina e a poesia, houve alturas em que a poesia teve de se atrasar para que eu não falhasse com o que estava pré-determinado na minha formação. Agora que a formação está completa, a poesia foi progressivamente — e nesta última década isso foi muito visível — ganhando mais espaço e portanto aconteceram mais poemas e mais livros. E agora tenho as coisas compatibilizadas por períodos do dia: de manhã até ao início da tarde, com algumas tardes e alguns fins de semana, dedico-me à cirurgia, e à tarde, e por vezes um bocado à noite, dedico-me à leitura e à escrita.

Li que, apesar de criar um sujeito poético, muito do que escreve acaba por ser autobiográfico. O que vem registado num poema como o "Confissão a Hipócrates de Cós" é um reflexo da poesia entrar de rompante no seu local de trabalho? Ou o local de trabalho às vezes a influir para dentro da sua poesia?

Quando acontece essa mistura, é uma mistura franca. Não posso dizer que até agora tenha sido muito frequente, porque nunca fiz muita questão de escrever sobre temáticas médico-cirúrgicas. Mas quando elas se impuseram, os poemas surgiram e há vários. Estou-me a recordar de um chamado "O cheiro do corredor", outro chamado "História clínica", o "Botox®", a "Balada dos maus pensamentos", outro chamado "Aula de anatomia do Professor Karl Breuing". Parecem muitos, mas numa obra que tem 11 livros e mais de 350 poemas, não devem ser mais de dez, se tantos.

Agora, o que eu escrevo muito é sobre os colegas, a partilha e o exercício do poder e do pequeno poder em ambientes de trabalho, nomeadamente serviços, repartições, enfermarias, hospitais... Nós não estamos aí a falar exatamente sobre a doença e os doentes, mas sim sobre o ecossistema e o conjunto de profissionais que, neste caso concreto, acabam por trabalhar no hospital, sendo que os poemas são de tal forma universais que podem ser adaptados a outras repartições e outros departamentos. Podem perfeitamente ser aplicáveis a tribunais ou a escolas ou a fábricas, escritórios ou gabinetes de advogados. Nomeadamente, um dos personagens que tem visitado muito a minha poesia é o senhor Lopes. Aquilo que eu tiro do quotidiano não é apenas o que resulta do exercício da profissão, mas, por exemplo, da profissão em si. E nesse aspecto, o local de trabalho é particularmente... não sei se diga inspirador, porque não o é, mas é capaz de gerar versos. É fecundo.

"Este não foi um ano em que tivesse escrito muito, contrariamente àquilo que é habitual, desde logo porque as mãos, andando por lá com luvas, não estão acessíveis para mexer em blocos e canetas. Portanto, quanto àquele primeiro momento das ideias, muitas deixei perder por falta de sítio onde as registar"

Um dos primeiros poemas que referiu, o "Cheiro do Corredor", retrata o nervosismo de quem aguarda resultados de análises. Apesar de ter sido escrito muito antes, tal tema remete-nos para a atual pandemia. Sendo médico, como foi a experiência de trabalhar na frente de combate à Covid-19?

Devido à minha idade e a uma outra comorbilidade, fui destacado não para a primeira linha, mas para a segunda. No entanto, não tive menos trabalho por isso, porque os colegas mais novos do meu serviço que foram destacados para a primeira linha deixaram necessariamente espaço a tarefas — desde blocos operatórios a equipas de serviço de urgência, um ou outro período de enfermaria e de consulta — que tiveram de ser preenchidas pelos mais velhos que ficaram na retaguarda. Uma coisa que as pessoas não imaginam é que, embora haja sítios específicos para internar os doentes Covid-19, num espaço tão pequeno que é um hospital — comparado com aquilo que é o espaço de uma vila ou de uma cidade —, acaba por ser um espaço comum. Não é pelo facto de as pessoas não estarem na primeira linha que não estão de modo algum sujeitas aos mesmos riscos, não na mesma quantidade, mas do mesmo tipo. 

Este não foi um ano em que tivesse escrito muito, contrariamente àquilo que é habitual, desde logo porque as mãos, andando por lá com luvas, não estão acessíveis para mexer em blocos e canetas. Portanto, quanto àquele primeiro momento das ideias, muitas deixei perder por falta de sítio onde as registar. E em segundo lugar, porque a cabeça esteve muito preenchida com uma determinada linguagem técnica. Neste ano que passou, 2020, foi particularmente difícil fazer diária e constantemente aquela transição para uma linguagem mais poética. Isto também porque eu não gosto do tema da pandemia, não me apela particularmente do ponto de vista poético. Eu tenho a certeza que vão surgir trabalhos e obras à volta deste tema — o aspecto que literariamente me parece mais forte é a questão do isolamento e do confinamento. Acho que é um tema que vai ser bastante abordado, quer pelo cinema, quer pelo teatro, e por alguma ficção literária. Mas não sei se pela poesia.

Porquê?

Ainda há dias estava a folhear o último número de uma revista de poesia inglesa, chamada Modern Poetry in Translation — cujo título é exactamente "Clean Hands" ("Mãos Limpas") e que é dedicado ao tema da pandemia. Não fiquei particularmente entusiasmado com nenhum dos poemas que li nem com nenhuma solução ou com as imagens nesta revista. Não acho que o tema seja particularmente interessante. Mas vai haver um reverso interessante que é o regresso à normalidade, e aí já volta a ser um tema da poesia. 

Em que sentido?

A forma como voltaremos a olhar para detalhes da vida e do quotidiano, quanto aos quais estávamos demasiado acelerados e demasiado ansiosos, antes da pandemia, para reparar. Enquanto seres humanos cosmopolitas e urbanos, a pandemia obrigou-nos a ver com outros olhos, fomos levados a travar e desacelerar, foi-nos dado tempo para reparar. E reparar é parar duas vezes, é olhar com outra atenção. Eu acho que esse novo olhar sobre as coisas, pós-pandemia, é passível de gerar algumas imagens interessantes.

"Eu consigo utilizar a figura de estilo da ironia quando consigo estabelecer um certo distanciamento relativamente à situação. E neste caso ainda não sou capaz de fazê-lo"

Referiu-se numa outra entrevista quanto ao absurdo do mundo e que a melhor forma de reagir ao mesmo é através da ironia. Este não seria o momento ideal para um exercício poético, dado o pico de adversidades que ultrapassámos?

Eu vivi a coisa muito por dentro e, pelo menos neste momento, não consigo ter esse distanciamento. Acompanhei os boletins diários durante meses e meses a fio, ver aqueles mortos todos a somar abstratamente, de uns dias para os outros. Houve ali uma altura muito demorada e em que todos os dias morriam 200 e tal pessoas e alguém, acho que foi num editorial do Expresso, para tentar dar um rosto àquele número, foi buscar a imagem de um avião a cair diariamente. Aí as pessoas começam a pensar um bocado. Depois, quando percebemos qual é o escalão etário ali maioritariamente envolvido, alguém se lembra de dizer que é geração dos avós. Aí o espectador começa a ver a coisa de uma maneira ligeiramente diferente, porque imagina-se a ficar sem o avô ou a avó, ou até o pai ou a mãe, ou então imagina-se como passageiro daquele avião.

E onde é que isso se relaciona com o uso da ironia?

Eu consigo utilizar a figura de estilo da ironia quando consigo estabelecer um certo distanciamento relativamente à situação. E neste caso ainda não sou capaz de fazê-lo. Eu disse que não escrevi, mas é sempre impossível não escrever nada, mas só lá para o final deste ano é que vou voltar a esses registos para, com o distanciamento devido, perceber se há ali lugar ou não à ironia.

A ironia é um bocado a linguagem dos derrotados. Quando o derrotado utiliza a linguagem irónica, de alguma maneira quer resistir e ultrapassar essa adversidade e através da linguagem, através do poema, vencer, ou tentar vencer e ficar por cima. Ou seja, não utiliza a violência, as armas ou a agressão, mas utiliza a força da palavra. Nesta altura concreta desta patologia, aquilo que eminentemente senti foi compaixão, mais do que essa linguagem irónica.

Portanto, o momento presta-se mais à sensação do que a escalpelizar o momento?

Sim. Teria mais vontade de ser irónico com as atitudes de alguns políticos que nos governam do que propriamente sobre a patologia em si e da forma como ela afetou a população.

créditos: PEDRO SOARES BOTELHO / MADREMEDIA

Nos seus livros é frequente encontrar a menção de que os poemas foram escritos em diversos lugares, inclusivamente em várias cidades europeias. Dada a impossibilidade, ou forte restrição, de viajar com a pandemia, também foi para sim um bloqueador mental ao ato da escrita?

O que eu acho interessante nas cidades é o olhar de estranheza, o facto de criarem um olhar novo sobre as coisas. Normalmente, no meu caso, os poemas chegam-me pela leitura trazida pelos sentidos, nomeadamente a visão e audição dos absurdos que nesses mesmos sentidos detecto nas coisas da vida, no quotidiano. É evidente que, quando os olhos percorrem diariamente os mesmos lugares, de alguma forma criam um hábito de os percorrer de uma forma mais superficial, sem ir destapando e sem ir procurando segundos sentidos. Numa cidade estrangeira, nomeadamente naquelas que nunca tinha visitado, uma coisa tão comum como tomar um café ou passear numa rua ou conversar com alguém ou tomar um transporte público, pode ser geradora de um olhar novo, porque há uma atenção especial às coisas e os olhos não identificam nada como sendo rotina. Portanto, sim, faz-me falta a viagem e eu tentei colmatar isso lendo mais, porque apesar de tudo, houve possibilidade de ler e ir lendo mais poesia — em tradução ou noutras línguas — para tentar trazer outros contextos e outras ideias que de alguma forma me alimentassem.

"O Rilke dizia que os poemas são experiências e eu acho que sim. De uma forma ou de outra, por mais que os poetas escondam, eles normalmente partem de alguma coisa vivenciada. Nesse sentido, de alguma forma são biográficos ou têm um fundo biográfico"

É possível aceder a essa reserva mental de referências para escrever ou para si a poesia tem de ser experienciada?

É necessário o pensamento, que é despertado pela experiência e desenvolve-se pela imaginação. Mas é sempre um pouco imprevisível o que vai originar um poema. O [Rainer Maria] Rilke dizia que os poemas são experiências e eu acho que sim. De uma forma ou de outra, por mais que os poetas escondam, eles normalmente partem de alguma coisa vivenciada. Nesse sentido, os poemas de alguma forma são biográficos ou têm um fundo biográfico. Mas um poema também pode partir do pensamento de outro autor, de alguma coisa que eu leia.

Nós temos a percepção de que há um primeiro verso que é dado, como dizia o [Paul] Valéry, mas também temos a certeza que o resto do poema é conquistado arduamente, muitas vezes com muitos esquissos e com tentativa e erro até se transformar numa escultura de som que de alguma forma cristalize essa experiência ou a ideia dessa experiência. Às vezes o resultado final é uma leitura do que aconteceu e não é exatamente o que aconteceu, é o que nós imaginamos ou quisemos plasmar daquilo que aconteceu.

Tem um poema, o "História de uma tarde", onde assinala que para sinalizar a memória no tempo era necessário escrever um poema naquela tarde em concreto, porque senão esvair-se-ia no tempo.

E tem uma epígrafe, do Zbigniew Herbert, que tem um verso em que diz que "extrair significado é a primeira tarefa do poeta". E eu realmente escrevi esse poema, que abre a quarta parte do livro "Mediterrâneo" em que fica escrito exatamente isso, que é: se não se registar aquele momento ou aquela tarde atravessada, nem esse momento nem essa tarde terão acontecido porque se perdem para a nossa memória. Esse ato de escrever para guardar tem muito de preservação. Por alguma razão, o poeta entende que há qualquer coisa a preservar naquele momento. A Wisława Szymborska dizia que era "a vingança da mão mortal": a mão, sabendo que era mortal, vingava-se da sua própria mortalidade e, com a alegria de escrever, preservava aquele momento. Já o Tomas Tranströmer dizia que quem sabe escrever, esquece. Escreve e esquece. Ou seja, há o conceito de que a mente é um reservatório finito e limitado, onde cabe um conjunto de informações, como se fosse um vasilhame, em que não há espaço para tudo aquilo que gostaríamos de colocar cá dentro, mas porque temos de libertar espaço para apreender mais coisas. O poeta escreve e a partir desse momento, esquece.

Eu gosto dessa ideia, porque não sei nenhum dos meus poemas de cor. Na realidade, nem sei de onde vieram e sou surpreendido pelo ato da sua própria criação e depois trabalho-a com algum espanto de ter ali aquelas palavras. Há uma parte muito significativa do meu ato de escrever que dedico à revisão, e gosto particularmente de escrever poemas e nunca os rever na altura: volto um dia, uma semana ou um mês depois àquele poema e trabalho aquela matéria com a estranheza de me perguntar a mim próprio se aquilo saiu de mim e onde fui buscar aquilo. Se me surpreender, faço esse trabalho de revisão; se não, nem sequer dou uma segunda chance a esse poema e elimino-o. O Ezra Pound dizia que temos de ser os primeiros a ser surpreendidos pelo poema, temos obrigação de fazer de novo, algo novo. Se isso não acontecer, aquele poema não tem razão de existir enquanto habitante de um livro.

Leva mais de três décadas de vida literária. Vê-se a continuar a ser surpreendido pelos próprios poemas?

Muito honestamente, vejo que me possam acontecer duas coisas. Ou eu disponibilizo mais tempo para a poesia e consigo, graças a esse trabalho, manter este ritmo de produção de um livro a cada dois anos, ou então, se não conseguir fazer isso e não tiver essa disponibilidade de tempo, necessariamente o período de tempo entre livros novos vai alargar. Isto porque tenho de sentir que o livro seguinte tem uma qualidade e uma novidade que, de alguma forma e nalguns aspetos específicos, supera o anterior. O que eu noto é que estou cada vez mais exigente com os poemas que me acontecem e com as ideias que encerram, e não gostaria de me repetir. De maneira que prevejo que se vier a fazer um próximo livro — o que eu espero que aconteça — cada vez vai ser mais difícil fazê-lo mantendo aquilo que eu entendo que é a qualidade da obra que vou produzindo sucessivamente. Tem a ver única e exclusivamente com uma coisa, que é o meu grau de exigência comigo próprio. Não tem a ver com os leitores, com a crítica, tem a ver com eu surpreender-me e sentir que aquele livro tem uma razão de ser. A tarefa está a ficar cada vez mais difícil! (risos)

"As coisas demoram o tempo que demorarem. Se tiver um livro novo daqui a dois anos, é ótimo, mas se for daqui a três ou quatro é porque o meu nível de exigência assim o determinou"

Caso deixe de publicar, imaginar-se-ia sem as mãos sujas de tinta daqui para a frente?

Não, eu vou continuar sempre a escrever. Posso é chegar à conclusão que ainda não tenho um conjunto de poemas de que goste para publicar. Mas ler e escrever, enquanto tiver capacidades físicas e mentais para isso, irei sempre fazê-lo. Aquilo que eu exijo dos outros autores não é menos do que exijo de mim, porque imagino que seja isso que os leitores exigem também. Eu não tenho uma visão romântica do poeta que produz uma boutade e assina por baixo e então esse verso deve ser admirado por causa da assinatura que tem. Eu sei que isto existe em Portugal, mas não tenho essa visão. O meu dever é com o desvelar deste quotidiano, transformá-lo numa linguagem que sei que é coloquial, é elíptica, é irónica, metonímica, melancólica, musical, tem todas essas características que a crítica diz, mas acima de tudo tem de ter novidade e originalidade. O meu compromisso é com aquilo que o Ezra Pound dizia “make it new” (“fá-lo novo”) e que o William Carlos Williams dizia “no ideas but in things” (“Nada de ideias exceto nas coisas”). É com essas “coisas”, com a descoberta de um sentido oculto nesse quotidiano concreto, uma poesia de proximidade com aquilo que são as nossas vidas, rente ao chão, mas apresentada a mim próprio com originalidade.

Este processo criativo e de revisão exige, em primeiro lugar, vida. É necessário que eu viva as situações, para que os primeiros versos destes poemas possam acontecer. E depois é preciso que tenha tempo, meses e anos suficientes, para trabalhá-los do ponto de vista daquilo que eu entendo que é o meu processo de revisão. E depois ainda uma tarefa tão ou mais difícil que esta que é a construção de um livro, a sequenciação dos poemas obedecendo a uma ideia, de maneira que aquela obra respire o ar do tempo — seja contemporânea num aqui e agora —, mas que sinta que está carregada de linguagem e originalidade.

E tal coisa não é fácil.

Isto demora o tempo que demorar. Eu não posso sentir uma pressão de espécie alguma para que isto aconteça. Posso dizer que tenho estado progressivamente mais atento ao percurso dos poetas que admiro nesta fase da vida em que me encontro. Wisława Szymborska, por exemplo, publicou um livro aos 53 anos e no livro seguinte tinha 63. Na altura da vida em que me encontro, ela fez um hiato de dez anos. Já o Philip Larkin, que é outra das minhas paixões, publicou apenas quatro livros na vida, separados de nove anos ou de dez anos entre eles. Portanto, as coisas demoram o tempo que demorarem. Se tiver um livro novo daqui a dois anos, é ótimo, mas se for daqui a três ou quatro é porque o meu nível de exigência assim o determinou.

Num dos seus poemas, refere-se à sua idade como "a idade surpreendente".

É aquela idade em que, como digo no poema, sentimos que estamos a meio de alguma coisa que ainda não sabemos qual é. Desde logo, porque não sabemos quando é que isto vai acabar, embora aos 53 anos seja fácil ter a noção de que mais de metade passou. O Billy Collins tem um verso que diz isso mesmo e depois arranca para descrever aquilo que são as suas expectativas.

É uma idade interessante porque, arriscaria a dizer, muitos de nós têm a ilusão de imaginar que, chegados a esta idade, algum tipo de equilíbrio pessoal, familiar, profissional, económico, o que seja, já estaria atingido. Mas quando começamos a conversar com os nossos amigos sobre o que é isso de virar os 50 anos e como é a vida de cada um, chegamos à conclusão que nem sequer uma coisa tão básica quanto a vida profissional está garantida. As pessoas têm lutas semanais, digladiam-se numa realidade às vezes absolutamente sanguínea por posições e postos. A ideia que os jovens têm aos 20 e muitos, 30, início dos 40 anos de que aos 50 e aos 60 chegará a estabilidade é, neste mundo do trabalho contemporâneo, tudo menos verdade. Esta coisa de estar a meio do nada e ter ou não a noção se o nosso valor é ou não reconhecido, daria para mais meia hora de conversa! (risos)