capítulo 1

Mais tarde, ninguém se lembrará de ter visto a senhora embarcar no voo no Aeroporto de Hobart.

Na sua aparência, nada há que suscite sequer um arquear de sobrancelhas, quanto mais que justifique o soar de algum alarme. A senhora não está embriagada, nem se mostra beligerante, nem é famosa.

Não está lesionada, como o hipster de óculos com o braço ao peito envolvido em gaze branca e a mão permanentemente junto ao coração, como que a professar o seu amor ou a sua honestidade. A senhora não parece ter os nervos em franja, como a jovem mãe suada que se esforça por controlar um bebé que ameaça escorregar-lhe dos braços, uma criança pequena e furiosa e demasiada bagagem de mão.

Não é frágil, como o casal idoso e encurvado, agasalhado por várias e grossas camadas de roupa, como se se preparasse para se juntar ao capitão Scott na expedição à Antártida.

Não vai irritada, como as várias pessoas de meia-idade com várias coisas de meia-idade em mente, ou como o único menor não acompanhado do voo: um rapaz de seis anos obrigado a faltar à festa de laser-tag do amigo porque o acordo de guarda partilhada dos pais requer que esteja naquele voo para Sydney todas as sextas-feiras à tarde.

A senhora não é tagarela, como o casal tão desejoso de partilhar pormenores das férias de que regressam que é impossível não ficar a pensar se estarão a trabalhar numa qualquer iniciativa secreta do Governo para estimular o turismo na Tasmânia.

Não está extremamente grávida, como a mulher extremamente grávida.

Não é extremamente alta, como o tipo extremamente alto.

A senhora não treme de medo de voar, ou por ter tomado demasiado café ou anfetaminas (esperemos que não seja isso), como a adolescente irrequieta que traz uma camisola com capuz demasiado grande por cima de uns calções muito curtos, o que dá a impressão de que não vestiu calças, e alguém diz que é aquela cantora que anda com aquele ator, mas outra pessoa diz que não, sei de quem estás a falar, mas não é ela.

Também não lhe brilham os olhos como aos recém-casados de olhos brilhantes que voam para a sua lua de mel em Sydney ainda com as roupas com que casaram, que miúdos loucos, provocando ondas de boa vontade por onde passam e suscitando até uma proposta impensada de um casal que se oferece para lhes ceder os lugares em classe executiva, que tanto a noiva como o noivo recusam, educada mas firmemente, para grande alívio do casal.

A senhora não é, não está, não tem nada que alguém vá recordar mais tarde.

O voo está atrasado. Apenas meia hora. Há sobrolhos franzidos e suspiros, mas, na sua maioria, os passageiros estão dispostos a aceitar a inconveniência. Assim é viajar, nos tempos de hoje.

Pelo menos não foi cancelado. «Ainda», dizem os pessimistas.

Ouve-se um anúncio pelo sistema de som: os passageiros que requeiram assistência especial são convidados a embarcar.

«Eu não disse?» Os otimistas levantam-se de um pulo e põem as mochilas aos ombros.

Patrícia Reis junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 27 de fevereiro, uma quinta-feirapelas 21h00. Consigo traz "A Desobediente - Biografia de Maria Teresa Horta", publicada pela Contraponto.

Para se inscrever basta preencher o formulário que se encontra neste link. No dia do encontro vai receber, através do WhatsApp — no nosso canal —, todas as instruções para se juntar à conversa. Se ainda não aderiu, pode fazê-lo aqui. Quando entrar no canal, deve carregar em "seguir", no canto superior direito, e ativar as notificações (no ícone do sino).

Mais do que uma narrativa biográfica, "esta obra é uma conversa íntima, em vários momentos sussurrada ao ouvido, com uma mulher, poetisa, mãe, ativista política e uma das vozes mais influentes e inquebrantáveis de Portugal", lê-se na sinopse do livro.

Saiba mais neste artigo.

Ao embarcar, a senhora não se detém para dar uma, duas, três pancadinhas na lateral do avião a fim de invocar a boa sorte, nem para namoriscar com um dos assistentes de bordo, nem sequer para passar o dedo freneticamente pelo ecrã do telemóvel por o seu bilhete de avião ter desaparecido como que por artes mágicas, ainda agora aqui estava, porque é que isto acontece sempre?

A senhora não é solícita, como os passageiros que ajudam pais e cônjuges a encontrar bilhetes de avião desaparecidos, nem como o homem de ombros quadrados, maxilar igualmente quadrado e cabelo grisalho, com um corte militar, que, aparentemente sem esforço algum, iça malas para os compartimentos por cima dos assentos à medida que vai avançando pelo corredor, sem sequer precisar de abrandar.

Depois de todos os passageiros terem embarcado e estarem sentados e com os cintos de segurança colocados, o piloto apresenta-se e explica que há «uma pequena questão mecânica a resolver» e que «os passageiros compreenderão que a segurança é a maior prioridade». A tripulação da cabina, indica ele, apenas com um laivo de um sorriso na voz grave e fiável, também só agora se inteira da situação. (Portanto, deixem-nos em paz.) Agradece a «toda a malta» por ser paciente e pede que se instalem e descontraiam, pois deverão levantar voo dentro de quinze minutos.

Passados os quinze minutos, não levantaram voo.

O avião mantém-se no asfalto, sem o menor movimento, durante noventa e dois horrendos minutos. O que é apenas e só um pouco mais do que o tempo previsto para o voo.

Por fim, até os otimistas deixam de dizer: «De certeza que ainda chegamos a tempo!»

Todos estão descontentes: tanto os otimistas como os pessimistas.

Durante este tempo, a senhora não carrega no seu botão de chamar um assistente de bordo para partilhar que tem um voo de conexão, uma reserva para jantar, uma enxaqueca ou desagrado por espaços confinados, ou uma filha adulta muito ocupada e com três filhos que já vai a caminho do aeroporto de Sydney para a ir buscar, e que há de fazer agora?

Não atira a cabeça para trás e berra durante vinte agonizantes minutos, como o bebé, que, na verdade, se limita a manifestar os sentimentos de todos os passageiros.

Não pede que alguém faça o bebé calar-se, como três passageiros que parecem ter conseguido chegar à meia-idade com a crença de que os bebés param de chorar a pedido.

Não pergunta educadamente se já pode sair do avião, como o menor não acompanhado, que chega ao seu limite ao fim de quarenta minutos de atraso e pensa que, afinal, talvez ainda dê para ir à festa de laser-tag.

Não exige ser autorizada a desembarcar, juntamente com a sua bagagem despachada, como a mulher de macacão com um padrão de leopardo que tem sítios onde precisa de estar, que nunca mais voltará a voar com esta companhia aérea, mas que por fim deixa que a apaziguem e em seguida se automedica com tanta eficácia que adormece profundamente.

Não grita de súbito, em desespero, «Oh, mas será que ninguém é capaz de fazer alguma coisa?», como a mulher de rosto corado e cabelos no ar que está sentada duas filas atrás do bebé a chorar. Não se percebe bem se quer que se faça alguma coisa em relação ao atraso, ao bebé a chorar ou ao estado do planeta, mas é neste momento que o homem do maxilar quadrado se levanta do assento para oferecer ao bebé um porta-chaves enorme e bastante ruidoso. Primeiro demonstra que carregar num determinado botão de uma das chaves faz com que uma luz vermelha se acenda, e o bebé fica estupefacto, num silêncio encantado, para grande alívio lacrimoso da mãe, e de toda a gente.

Não há altura alguma em que a senhora faça um telefonema exibicionista para se queixar, numa voz amargurada, usando expressões como «enfiada num avião», «continuo aqui», «não consigo apanhar o voo de conexão, nem pensar», «vai andando sem mim, pronto», «temos de marcar para outra data», «vou ter de cancelar», «não há nada que eu possa fazer», «eu sei! É inacreditável».

Ninguém se lembrará de ter ouvido a senhora proferir uma palavra que fosse durante o atraso.

Ao contrário do homem elegantemente vestido, que diz: «Não, não, querida, vai ser apertado, mas tenho a certeza de que vou chegar a tempo»; embora se perceba, pela forma angustiada como bate com o telefone na testa, que não vai nada chegar a tempo, nem pensar.

Ao contrário das duas amigas de vinte e poucos anos que tinham estado a beber prosecco no bar do aeroporto sem nada comerem, o que leva a que vários passageiros por perto fiquem a saber os pormenores íntimos dos sentimentos complexos que têm em relação a «Poppy»: uma amiga mútua que não é tão simpática como gostaria que todos a julgassem.

Ao contrário dos dois homens de trinta e poucos anos que não se conheciam, mas que encetam uma conversa impressionantemente audível e extraordinariamente enfadonha sobre batidos proteicos.

A senhora viaja sozinha.

Não tem familiares que a incomodem simplesmente por existirem, como a família de quatro que vai sentada em pares do mesmo sexo: a mãe com a filha jovem, o pai com o filho jovem, todos a fumegarem de raiva depois de uma discussão agitada em torno de um carregador de telemóvel.

A senhora vai num lugar junto ao corredor, o 4D. Tem sorte: apesar de o voo ir relativamente cheio, conseguiu ficar com um lugar vago entre si e o homem que vai à janela. Mais tarde, vários passageiros da classe económica recordarão ter reparado com certa inveja no lugar do meio, vago, mas não se lembrarão de ter reparado na senhora. Quando finalmente lhes é dada autorização para descolar, não é necessário pedir à senhora que por favor endireite o espaldar do assento, nem que por favor empurre a mala para debaixo do lugar diante do seu.

Também não bate palmas sarcásticas quando o avião finalmente começa a avançar para a pista de descolagem.

Durante o voo, a senhora não corta as unhas dos pés, nem passa fio dental entre os dentes.

Não dá uma palmada numa assistente de bordo.

Não grita insultos racistas. Não canta, balbucia ou arrasta as palavras.

Não acende descontraidamente um cigarro, como se estivesse em 1974.

Não realiza qualquer ato sexual com outro passageiro. Não se despe.

Não chora.

Não vomita.

Não tenta abrir a porta de emergência a meio do voo.

Não perde os sentidos.

Não morre.

(O setor aeronáutico sabe, por sofrida experiência, que tudo isto é possível.)

Uma coisa é certa: a senhora é uma senhora. Mais tarde, ninguém a descreverá como uma «mulher» ou um «indivíduo do sexo feminino». Obviamente, ninguém a descreverá como uma «menina».

Há incerteza em redor da sua idade. Porventura sessenta e poucos anos? Talvez na casa dos cinquenta. Sem dúvida com mais de setenta. Oitenta e picos? Da idade da tua mãe. Da idade da tua filha. Da idade da tua tia. Da tua chefe. Da tua professora da faculdade. O menor não acompanhado há de descrevê-la como «uma senhora muito velhinha». O casal de idosos há de descrevê-la como «uma senhora de meia-idade».

Talvez seja o cabelo grisalho o que a coloca tão determinante- mente na categoria de «senhora». É de um tom prateado e suave como a pelagem de um gatinho caro. Pelos ombros. Bem-arranjado. Bom cabelo. «Um grisalho bom.» Do género que até nos faz considerar deixar o nosso cabelo ficar grisalho! Um dia. Ainda não.

A senhora é pequena e delicada, mas não tão pequena e delicada que requeira desvelo. Não atrai sorrisos benevolentes, nem ofertas de assistência. Olhar para ela não nos faz pensar no quanto sentimos a falta da nossa avó. Olhar para ela não nos faz pensar no que quer que seja. Não dá para lhe adivinhar a profissão, a personalidade ou o signo astrológico. Ninguém se daria ao trabalho de tentar.

Não se diria que fosse invisível, não propriamente.

Talvez semitransparente.

A senhora não é impressionantemente bela, nem desastrosamente feia. Tem vestida uma blusa bonita, de um padrão verde e branco, enfiada na cintura de umas calças cinzentas de corte justo. Os seus sapatos são rasos, práticos. Não tem brincos, joias ou tatuagens invulgares. Usa apenas uns pequenos brincos de prata nas orelhas e uma pregadeira, também de prata, presa à gola da blusa, à qual leva a mão com frequência, como que para se assegurar de que continua ali.

Tudo isto para dizer que a senhora que mais tarde ficará conhecida como «a Senhora da Morte» do voo que partiu atrasado, às 15h20, de Hobart em direção a Sydney, não é merecedora de um segundo olhar, seja de quem for, nem de um só membro da tripulação, nem de um único passageiro. Pelo menos até fazer o que faz.

E, mesmo então, passa-se mais tempo do que seria de esperar até a primeira pessoa começar a gritar, até alguém começar a filmar, até que botões de chamada comecem a acender-se e a apitar por toda a cabina como se esta fosse uma máquina de flippers.

capítulo 2

Passaram-se quarenta e cinco minutos desde a descolagem e o ambiente a bordo é tranquilo, estoico, apenas um tudo-nada ressentido. O atraso, durante o qual o tempo abrandou e se alongou e se diluiu tanto que cada minuto durava toda a sua quota de sessenta segundos, ficou no passado. O tempo está novamente a correr ao seu ritmo habitual, veloz e invisível.

Um «lanche leve» de amêndoas, pretzels, tostas e um molho foi servida na cabina principal. Os cinco passageiros em classe executiva desfrutaram de uma «refeição ligeira» (todos escolheram frango) e de bastante vinho (todos escolheram pinot). Na cabina principal, a maior parte do lixo já foi recolhida e a maior parte dos tabuleiros já se encontra de novo na posição vertical. Tanto o bebé como a criança pequena dormem. A noiva também, enquanto o noivo vai clicando no seu telemóvel. O menor não acompanhado joga energeticamente no seu aparelho eletrónico. Os idosos que constituem o casal frágil debruçam as cabeças, cada um sobre as suas palavras-cruzadas. A tripulação vai conversando em voz baixa sobre os planos para o fim de semana e os turnos da semana seguinte.

Há quem use a casa de banho. Quem volte a calçar os sapatos. Quem masque pastilhas de menta. Quem aplique bálsamo labial.

Quem veja os próximos passos da viagem a desenrolar-se diante de si: ir buscar a mala à área de recolha de bagagem, fazer fila para um táxi, pedir um Uber, mandar uma mensagem de texto à pessoa que ficou de os ir buscar. Quem se veja a entrar em casa, ou num hotel ou Airbnb, largando as malas no chão com um baque pesado. «Mas que pesadelo», dirão aos companheiros, ou aos animais de estimação, ou às paredes, passando, ato contínuo, para o resto das suas vidas.

A senhora desaperta o cinto e levanta-se.

É uma senhora que se prepara para tirar qualquer coisa do compartimento superior. Ou uma senhora que se prepara para ir à casa de banho. Não tem qualquer importância, não é causa alguma para preocupação, interesse, perigo.

Inclina a cabeça e pressiona com um dedo a pregadeira minúscula que traz na blusa.

Avança para o corredor e não se mexe mais. Uma pessoa repara nela.

Essa pessoa é um engenheiro civil de quarenta e dois anos, com azia e dores de cabeça.

Livro: "A Qualquer Momento"

Autor: Liane Moriarty

Editora: ASA

Data de Lançamento: 18 de fevereiro de 2025

Preço: € 21,50

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Leopold Vodnik, nunca Leopold, só Leo, para todos exceto a avó materna, que já morreu, e um velho amigo da universidade que há muito não faz parte da sua vida, está sentado no lugar 4C, mesmo do outro lado do corredor.

Trata-se da primeira fila da cabina principal. Diante deles têm uma parede que declara Exclusivo para a classe executiva a partir daqui. Há uma cortina discretamente fechada no corredor, para esconder o estilo de vida luxuoso que se oferece a tão curta distância de onde eles se encontram.

Leo tem ar de quem viaja em classe executiva. É um homem de pele morena e constituição média, com um nariz grande, imponente, e uma testa alta que acaba abruptamente numa melena à cientista louco de cabelo escuro e encaracolado, com uns quantos fios brancos. Uma das irmãs enviou-lhe recentemente um artigo sobre ter sido descoberto o gene da «síndroma do cabelo impossível de pentear».

Traz uma camisa de linho azul com as mangas enroladas até aos cotovelos, umas calças de sarja cinzenta e umas botas de camurça. A mulher diz que ele se veste melhor do que ela. (O que não é difícil. Neve veste-se da maneira descuidada e desirmanada típica de um sobrevivente a um desastre natural.)

Leo passou o voo todo a chupar pastilhas para a acidez do estômago, a massajar a testa com as pontas dos dedos e a ver as horas vezes sem conta.

Já não há hipótese. Tem de enfrentar os factos. O musical da escola da filha de onze anos vai começar dentro de cinco minutos. E ele não estará lá porque está aqui: no céu, a trinta e cinco mil pés de altitude.

«É claro que estarei de volta mais do que a tempo para assistir a’O Rei Leão», dissera ele à mulher ao mencionar pela primeira vez a possibilidade de ir a Hobart para acompanhar a mãe a uma consulta com um especialista.

«A menos que o teu voo se atrase», replicara Neve.

«Não há de se atrasar», dissera Leo.

«Bate na madeira», respondera Neve, sem bater realmente na madeira.

De certa forma, parece que o atraso é culpa dela. Porque haveria sequer de mencionar aquela possibilidade? Supõe-se que o pessimista da relação seja ele.

E quem poderia ter previsto um atraso de duas horas?

Neve, aparentemente.

Leo volta a ver as horas. Neste momento, devia estar a tremer de frio no átrio da escola da filha, a ralhar em voz baixa com o filho adolescente para que guardasse o telemóvel e apoiasse a irmã, a trocar comentários bem-humorados acerca do ar condicionado ártico com os outros pais, a sussurrar à mulher que por favor lhe recordasse o nome do pai de Samira, a dizer ao pai de Samira que tinham mesmo de tomar a tal cerveja em breve, coisa que ambos sabem que nunca acontecerá porque: é a vida.

Sente a cabeça a latejar de remorsos. As luzes estão a apagar-se agora. O pano está a ser levantado agora. Inclina-se tão para a frente no seu lugar que fica praticamente na posição recomendada em caso de impacto.

Não há ninguém que possa culpar, para além de si mesmo. Ninguém lhe pediu que fizesse aquilo. A mãe dissera-lhe, por favor, Leo, não gastes dinheiro num voo só por um dia. As irmãs não tinham ficado agradecidas por ele ter assumido aquele dever familiar. Pelo contrário. Tinham-no acusado de se armar em mártir, no grupo de WhatsApp da família.

Mas ele tinha tido um estranho e forte pressentimento de que algo na saúde da mãe não estava bem e que ele devia estar presente para ouvir o que o especialista dissesse.

Quando o pai adoecera, dois anos antes, ele andara distraído. Acabava de começar no emprego que tem agora, que o consumia por completo. Continua a consumir. Não sabe como fazer para que deixe de o consumir.

E depois: o toque estridente do telefone a arrancá-lo ao sono às cinco da manhã e a voz da mãe, tão alta, segura e desperta: «Tu e as tuas irmãs precisam de se meter num avião imediatamente.» Ela, a adulta, ele, o miúdo meio-adormecido, a balbuciar: «O quê, mãe, o quê, porquê?» Ainda não tinha sequer assimilado o facto de o pai estar gravemente doente, quanto mais que pudesse morrer, coisa que aconteceu nesse dia, enquanto Leo e as irmãs esperavam junto à cinta rolante pela mala da irmã do meio: ela tinha despachado uma mala.

Desde então, tem tido a impressão de que, se simplesmente tivesse prestado mais atenção, se não estivesse tão focado no trabalho, talvez tivesse salvado o pai. É o filho mais velho. O único varão. Está determinado a fazer tudo certo com a mãe.

De muito tinham valido os pressentimentos fortes e estranhos. O especialista dispensou-lhes cinco minutos e cobrou-lhes trezentos dólares para anunciar que a mãe de Leo estava de perfeita saúde.

Leo não está desapontado por a mãe estar saudável.

Claro que não.

Bem, para ser sincero, está um pouco irritado por a mãe estar saudável. Teria sido gratificante se lhe tivesse sido diagnosticado algo grave, mas curável.

E indolor, já agora. Ele gosta muito da mãe.

«Oh, pronto», disse Neve quando ele lhe telefonou a dizer que o voo estava atrasado. Nessa altura, ainda julgava que ia conseguir, que apenas chegaria um pouco tarde. Imaginava-se a correr até ao exterior do aeroporto, a passar à frente das pessoas na fila para o táxi – teria infringido o seu próprio código moral pela filha! Mas depois o avião manteve-se imóvel no asfalto, enquanto o piloto ia comunicando os seus enfurecedores e intermitentes «desculpem, malta», e Leo perdeu a cabeça.

«Não há nada que possas fazer.» Neve não lhe disse eu bem te disse. Nunca o fazia. Era a sua força. «A Bridie vai perceber.» Ele ouvia a voz da filha: «É bom que não seja o papá a dizer que vai chegar atrasado.»

Ele tinha passado semanas a ajudar Bridie a ensaiar. «É um papel pequeno, mas importante, papá», dissera-lhe ela num tom solene ao chegar a casa com o guião, e Leo tinha evitado o olhar de Neve, pois Bridie arrelia-se perante sorrisos parentais partilhados. Faz de «Zazu» (agora, agora mesmo). Zazu é um «calau elegante e peculiar» e a forma como Bridie incorporou imediatamente o papel foi milagrosa. Tem gestos! Gestos elegantes e peculiares! É a nova Meryl Streep. É mesmo objetivamente boa. Esqueçam o Mufasa. Esqueçam o Simba. O Zazu vai ser a estrela luminosa do espetáculo. Leo espera que Bridie receba uma ovação de pé. E ele vai perder isso.

É o tipo de erro que as pessoas lamentam no leito de morte.

Expira ruidosamente, recosta-se no assento e abre e fecha a fivela do cinto de segurança, torna a abri-la, torna a fechá-la. A mulher a seu lado levanta o olhar da revista e Leo une as mãos. Está a ser irritante. Aquilo é o tipo de coisa que o seu filho de catorze anos faria. Sente um aperto no coração ao pensar no filho. Há meses que lhe promete que farão aquela caminhada pelo lindíssimo parque nacional que adoram, no próximo domingo, mas é sempre «no próximo domingo» porque Leo tem de trabalhar ao fim de semana tantas vezes, e neste domingo terá de recuperar todo o tempo que perdeu hoje, o que, já agora, não faz dele um «viciado em trabalho», apenas um tipo empregado.

A sua chefe acredita que é importante alcançar um equilíbrio saudável entre o trabalho e a vida. «A família está sempre em primeiro lugar, Leo», disse ela, quando Leo mencionou que ia tirar o dia de hoje, mas um dos indicadores-chave do desempenho de Leo é a sua «taxa de utilização». Isto mede quantas horas cobráveis regista por semana, comparadas com as horas que trabalhou. Tem a taxa de utilização permanentemente na cabeça: é um mosquito a zumbir e ele não tem permissão para o matar. Por vezes, trabalha catorze horas num dia, mas só cobra oito. É complicado. A vida é complicada. Precisa apenas de dominar a arte da gestão do tempo. A chefe, que se interessa pelo tema, oferece-lhe recomendações de livros e podcasts, bem como dicas úteis. Há três anos que ele trabalha para Lilith, uma mulher impressionante e inspiradora numa profissão dominada por homens, e ele tenta aprender com ela como aprendeu com o primeiro chefe que teve, que lhe devolvia as plantas cobertas de tinta vermelha, o que o enlouquecia mas acabou por o tornar um engenheiro melhor. Recentemente, Lilith disse-lhe que o primeiro passo para melhorar a produtividade é uma «auditoria exaustiva do tempo», mas Leo ainda não teve tempo para a fazer.

Oli já nem parece ficar desiludido quando Leo lhe diz: «Se calhar fazemos a caminhada no próximo fim de semana.» Limita-se a responder com um polegar cínico voltado para cima, como se estivesse a lidar com um vendedor que falhasse constantemente as entregas prometidas.

A mulher no assento do meio pigarreia delicadamente e ele dá-se conta de que tem a perna esquerda a tremelicar para cima e para baixo como se tivesse sido eletrocutado. Pousa a mão na coxa para a parar.

Ouve a voz da sua mulher: Não entres nessa espiral, querido.

Ele nem tinha acreditado da primeira vez que ela lhe chamara querido. Na sensação doce desse momento.

Esboça um sorriso tenso na direção vaga da vizinha de assento, esperando que ela o interprete como um pedido tácito de desculpas, mas não como um convite para conversar.

Ela chama-se Sue e o marido, que vai à janela, chama-se Max.

Leo sabe isso e muito mais sobre eles, porque, durante o atraso na pista, não teve escolha senão ouvir o casal a fazer um número inacreditável de telefonemas: «Espera, a Sue quer falar contigo!», «Deixa-me passar-te outra vez ao Max!».

Max e Sue são um casal de meia-idade alegre e exuberante, que acaba de regressar de uma viagem de caravana pela Tasmânia. Foi o máximo! Sue é minúscula, de faces rosadas, olhos vivos e peito grande. Uma pulseira carregada de amuletos tilinta quando ela gesticula. Max, moreno e de cabelo branco, tem uma barriga grande, firme e orgulhosa. Parece o Pai Natal a voltar das férias de verão. Tem a masculinidade confiante dos capatazes com que Leo trabalha: homens fortes e ruidosos que sabem o que fazem e não têm a menor dificuldade em gerir o seu tempo.

Ao início, Sue tentou meter conversa com Leo, mas desistiu ao ver que ele respondia em monossílabos minimamente cordiais. Ele sabe que poderia ter-lhe revelado que ia faltar ao musical de Bridie, e sabe que ela e Max são do género que teria imediatamente oferecido tanto empatia como interesse (pela quantidade de telefonemas, percebeu que têm netos – «Eu e o avô mal podemos esperar por te ver!»), mas estava demasiado tenso e irritado para tagarelar.

Volta a ver as horas. Bridie está no palco, agora mesmo. Para de pensar nisso.

Tem o estômago a roncar. Está faminto. Recusou o «lanche leve» porque, que estupidez, não queria atrasar as coisas. Tinha ficado irracionalmente irritado com todas aquelas pessoas que petiscavam alegremente os frutos secos e os pretzels oferecidos. Queria que toda a gente se concentrasse em chegar a Sydney.

A senhora do outro lado do corredor solta o cinto de segurança.

Levanta-se.

Até agora, foi apenas uma figura turva na sua visão periférica. Se lhe tivessem pedido, teria sido capaz de a descrever como uma senhora baixa de cabelo grisalho, mas de forma alguma conseguiria reconhecê-la no meio de um alinhamento de senhoras baixas de cabelo grisalho.

Ela não se mexe.

O que estará a fazer?

Leo mantém educadamente o olhar fixo na bolsa presa à parede diante de si. Lê a primeira frase de um anúncio na contracapa da revista de bordo: De que está à espera? Reserve já o seu Cruzeiro Fluvial pelas Joias da Europa! «Vamos saber que estamos velhos quando aqueles cruzeiros fluviais começarem a parecer-nos interessantes», é o que Neve diz sempre. Leo não lhe confessou que a ideia de um cruzeiro fluvial já lhe parecia interessante.

A senhora de cabelo grisalho continua a não se mexer. Aquilo já dura há demasiado tempo. Parece que está em cima dele. Parece que está a querer irritá-lo.

Ele olha para baixo. Os sapatos dela são pequenos, castanhos, estão bem engraxados e têm os atacadores perfeitamente atados.

Numa voz baixa e nítida, ela diz: – Vou contar até três.