Há muito que a Califórnia habita os sonhos dos melómanos. Das praias a roçar o Pacífico infinito até à sensação de que naquelas cidades poderemos ser tudo e muito mais, liberdade rugindo pela estrada e pelas montanhas do Big Sur até desaguar numa onda maravilhosa que se surfa, são inúmeros os exemplos de artistas que levaram a Califórnia consigo para o mundo inteiro. Assim de repente: os Beach Boys, meninos bonitos que amavam pranchas, raparigas e carros, e que depois amaram também o psicadelismo; esse mesmo psicadelismo que no final dos anos 60 transformou para sempre as sociedades ocidentais; o som e a fúria do thrash metal, que prometeu uma revolução pela mão dos Metallica e Exodus; o punk para skaters dos Offspring e NOFX; o rock do deserto de nomes como Kyuss e Sleep, e posteriormente Queens of the Stone Age; e o hip-hop com genica gangster e sabor a funk inventado por um senhor chamado Dr. Dre, que colocou Compton no mapa. E estes são só alguns exemplos...
Todas estas influências, e muitas outras mais, caíram de cabeça nas cabeças (perdoe-se a expressão) dos Allah-Las, banda que é ela própria formada por um grupo de melómanos. Alguns dos seus membros conhecem-se desde os tempos de liceu, mas foi numa loja de discos – mais concretamente, na Amoeba Music, em Los Angeles – onde trabalharam que decidiram começar, eles próprios, a fazer música. Uma música que bebe muito do surf rock e do psicadelismo, mas que rejeita quaisquer rótulos. Há um, no entanto, que se lhes cola: o de música para um verão eterno, como a própria Califórnia o parece viver.
Autores de três discos bem recebidos pelo público e pela crítica (“Allah-Las”, 2012; “Worship the Sun”, 2014; “Calico Review”, 2016), os Allah-Las já se firmaram como uma banda a ter em conta no que concerne ao rock n' roll do século XXI. Mesmo que o nome, numa era de tensões teológicas, já lhes tenha valido alguns dissabores. Um concerto na Turquia chegou mesmo a ser cancelado, e são muitos os e-mails que receberam já de muçulmanos ofendidos com o mesmo. Não era esse, evidentemente, o seu objetivo: «São só palavras que se juntaram. Não quisemos ofender ninguém, e sim mostrar respeito. O Pedrum [Siadatium, guitarrista da banda] é iraniano e a família dele é muçulmana. Temos o máximo respeito por todos», explica-nos o baterista Matthew Correia, ao telefone a partir de Los Angeles.
Na quarta-feira, os Allah-Las regressarão a Portugal após terem feito parte do cartaz do festival de Paredes de Coura, em 2015. O palco a recebê-los será o do Musicbox, em Lisboa (bilhetes a 20€). O que, por si só, já promete um concerto diferente daquele. "Vamos tocar canções que não temos andado a tocar, com arranjos novos. Estivemos na Austrália e na Indonésia e andámos a experimentar coisas diferentes. Esperem por mudanças", explica, sobretudo ao nível do alinhamento, que costuma variar de festivais para salas fechadas como o é a lisboeta. Este será o primeiro concerto da nova digressão europeia dos Allah-Las, que agora terão o tempo que não tiveram em 2015 para conhecer melhor o país – sendo que o “Correia” de Matthew não é de Portugal, mas sim de Cabo Verde, onde nasceu o seu pai.
O mote será “Calico Review”, álbum onde mostraram uma evolução digna na sua sonoridade, sem no entanto fugir à matriz. E gravado num local de respeito: o Valentine Recording Studio, em Los Angeles, por onde passaram nomes como os Beach Boys e Frank Zappa. Houve alguma pressão para fazer tão bem quanto esses artistas históricos? "Não, ninguém pensa nisso quando estás em estúdio", salienta. "E há muito tempo que este estúdio não era utilizado. Não tinha qualquer estigma. Sentimo-nos como se estivéssemos num sítio totalmente novo, um sentimento positivo e não de ansiedade. É um espaço amoroso".
Um amor que permeia, também, os temas da banda californiana, qual promessa de paz em tempos de Trump, que o baterista considera ser uma "má, triste e assustadora piada". E um amor que não se verga aos grandes interesses do capital, que por todo o mundo gentrificam comunidades inteiras e destroçam qualquer sentimento de pertença. Por diversas vezes, os membros dos Allah-Las se têm insurgido contra esta temática da gentrificação, algo que já se encontra a ser discutido também em Lisboa. E Matthew Correia arrisca algumas soluções. "Há que manter as coisas como elas são, não deixar que as grandes corporações ou empresas tomem conta do espaço. Deixar que aquelas pequenas mercearias de família, que estão lá desde sempre, se mantenham. Quando eu estive em Portugal não vi muitas lojas tipo Starbucks ou McDonald's, o que é bom", nota. Contrapomos com o facto de agora, quiçá, existirem mais: "Isso é triste. É o género de coisas que anda a fazer do mundo um lugar aborrecido. É fácil perceber que essa não é a forma certa de fazer as coisas; as pessoas querem viajar para sítios que não tenham esse tipo de superfícies. As pessoas que querem ver arte ou música interessantes não querem um lugar onde haja a mesma merda que existe no sítio de onde partiram. Querem algo de novo, de diferente, que mostre que há uma herança cultural", afirma.
A meta para qualquer artista que se preze será, nesse caso, tornar o mundo menos aborrecido. Entre risos, Matthew concorda: "Não quero estar a dizer aquilo que um artista deve fazer, mas tem que tentar com que o mundo seja visto de forma diferente. Independentemente do quão aborrecido, mundano, ou feio. Mostrar uma outra perspetiva, para melhor". Que é o que os Allah-Las têm feito, longe das etiquetas “rock”, “garage”, “indie” ou “psicadélico”, que sempre abominaram. É música, apenas e só – não precisa de ser encaixotada para ser apreciada. “Ela Navega”, presente no primeiro álbum da banda, ou o mimo que é “Roadside Memorial”, neste último álbum, parecem querer dar-lhes razão. "Os rótulos são coisas patetas", afirma, sem rodeios.
Explicamos a Matthew que, recentemente, houve um festival em Portugal – o Super Bock Super Rock – que contou com um dia dedicado ao hip-hop, merecendo diversas críticas por parte dos festivaleiros contra aquilo que dizem ser uma “traição” ao nome original. De novo, o adjetivo “pateta” volta à conversa. "É pateta esperar algo com base em apenas um nome. As pessoas usam rótulos para descrever aquilo que é um certo som. É uma forma de não pensares mais na música: há um rótulo e [essa música] é igual a isto ou aquilo", desabafa. "Em São Francisco, temos um festival de bluegrass [um tipo de música tradicional norte-americana, relacionada com o country], o Hardly Strictly Bluegrass, onde deixam tocar toda a gente. As regras mudaram desde que o festival se tornou maior. E ninguém quer saber que nome tem aquilo, é apenas um nome... Os rótulos estão sempre a mudar, não devias confiar neles ou chateares-te com isso", completa.
Melómano que é melómano não podia deixar de tentar partilhar as suas descobertas com o mundo, procurando mais “fiéis” para a sua causa. Daí que os Allah-Las, em conjunto com alguns amigos, tenham um podcast – o Reverberation Radio – onde mostram alguma da música que têm andado a escutar, de diversas origens e estilos. É mais divertido tocar numa banda, ou fazer o papel de curador? "Ambos. Não sei qual será o mais divertido... É muito divertido tocar numa banda – começas a respeitar muito mais aquilo que andaste a ouvir ao longo dos anos. Ao mesmo tempo, somos todos grandes fãs de música... Eu pessoalmente quero continuar a fazer música, a ouvir música, a fazer DJ sets e mixtapes para os amigos... É assim que a espalhas", diz. Pelo que, presumivelmente, os Allah-Las ainda andarão a espalhar a sua própria música por muitos e bons anos. Como bons melómanos.
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