Há duas personagens fulcrais em "As Sombras de um Azinheira". João Aurélio, militante comunista do Alto Alentejo cuja família se opôs ao Estado Novo e pagou por isso, e Catarina, professora universitária criada já em liberdade e procurando um sentido para a sua vida. Um acontecimento une tanto quanto separa estas duas figuras: o 25 de Abril de 1974. A mulher do primeiro, mãe da segunda, morre a dar à luz na madrugada da Revolução dos Cravos, e opera um corte insanável entre pai e filha.
Este é um romance que pinta um díptico sobre a história do nosso país ao longo de 90 anos — 45 antes do 25 de Abril, 45 depois —, marcados pela sociedade que desesperava por uma revolução e a sociedade que aprendeu a viver com os seus frutos. Além de jurista, professor universitário, ex-ministro da Justiça, juiz conselheiro jubilado do Supremo Tribunal de Justiça e membro da comissão independente para investigar os abusos sexuais na Igreja Católica portuguesa, Álvaro Laborinho Lúcio afirmou-se na sociedade portuguesa pela firmeza das suas causas cívicas. Não é, então, de estranhar que, através da história de um pai e de uma filha, quisesse "ter uma participação, embora modesta, na celebração dos 50 anos do 25 de Abril", conta ao SAPO24 no âmbito do ciclo "O 25 de Abril (também) foi uma ficção".
E que contributos são esses? Para começar, uma reflexão sobre o Portugal de outrora e o Portugal de hoje. Mas o projeto, apesar de assumido pelo seu criador como não tendo natureza programática, fala até mais de futuro. É porque Catarina, a personagem órfã de mãe e abandonada pelo pai, é como que uma representação de todos nós, à procura de sentido após o 25 de Abril — que projeta as suas sombras sobre nós como as de uma azinheira.
Porque se a celebração da Revolução "deve manter-se, deve existir, é fundamental que exista", não pode "ficar por aí, nem podemos achar que o nosso compromisso com a data é apenas um compromisso na data". Por outras palavras, celebrar Abril é ir fazendo Abril.
Laborinho Lúcio, todavia, vai mais longe: é impossível pensar o futuro sem abordar o passado, mas os próximos 50 anos não podem ser vividos em função dos últimos 100. Tomando as dores da sua personagem, o escritor diz que esta "não quer é que o 25 de Abril tenha sido um espaço que apenas legitima a projeção da luta anterior no presente e no futuro". "A luta determinou um Portugal novo, e agora é preciso dar a quem é novo também a sua própria perspetiva, o seu ponto de vista, e não fazer com que os novos do pós-25 de Abril tenham de ser apenas seguidores daqueles que o construíram", avisa.
“As Sombras de uma Azinheira” divide a sua atenção entre duas personagens, João Aurélio e Catarina, pai e filha cuja relação tem um corte no dia 25 de Abril de 1974. Que temas procurou explorar a partir desta premissa?
Antes de mais nada, vale a pena talvez deixar duas palavras sobre a premissa ela própria, sobre o modo como eu, enquanto escritor me relaciono com o leitor. E aqui tem de haver aquilo que Umberto Eco designava pelo "pacto ficcional". Isto é, é importante que entre mim, autor, e quem ler o livro, se celebre um pacto em que todos estamos de acordo, em que o modo como eu descrevo o acontecimento que dá origem ao livro é aceite por todos. Ou seja, "vamos aceitar que isto pode ter acontecido". É evidente que estamos a falar de uma ficção, trata-se de um romance, mas este ponto de partida é essencial para que, a partir daqui, então, toda a verosimilhança seja garantida por mim e questionada criticamente pelo leitor. Agora, quanto à situação em si, não importa pôr a questão de saber se ela é verossímil ou não, ela é uma criação que o escritor propõe ao leitor e que o leitor aceita. E a partir daqui desenvolve-se a trama toda. Ora, o que eu propus como ponto de partida — desde logo assentando na ideia de que o que eu queria era escrever um romance e não necessariamente um ensaio — não era um livro com qualquer proselitismo de natureza política. O leitor pode perfeitamente aderir a qualquer das personagens, tem toda a liberdade para concluir o que entender. Eu dou-lhe uma narrativa ficcionada que tem como ponto central temático o 25 de Abril de 1974. Eu parto de um casal de militantes comunistas que viveram antes do 25 de Abril, por longo tempo, e que tinham dois sonhos: serem pais, o que tardava a acontecer, e ao mesmo tempo verem cair o regime contra o qual lutavam.
Eu parto de um casal de militantes comunistas que viveram antes do 25 de Abril, por longo tempo, e que tinham dois sonhos: serem pais, o que tardava a acontecer, e ao mesmo tempo verem cair o regime contra o qual lutavam.
Acontece que a mulher engravidou e, na noite de 24 para 25 de Abril, vai finalmente dar à luz. E quando se dirigem para a maternidade, dão-se conta, ouvindo no rádio, que alguma coisa estava a acontecer. Ouvem cantar o “Grândola Vila Morena”, o Adriano Correia de Oliveira e Zeca Afonso — coisa que não acontecia na emissora nacional de então — e, portanto, eles têm a ilusão de que vão realizar os dois sonhos ao mesmo tempo. O que acontece é que a mulher dá de facto à luz, mas morre no parto. E é aqui que se estabelece o pacto com o leitor, em que ele vai aceitar que, a partir do momento em que este acontecimento tem lugar, o João Aurélio, aquele que ia ser e foi pai, abandona tudo e volta para a sua aldeia, onde viveu grande parte da sua vida. Deixa qualquer ideia revolucionária, deixa a vida política, deixa o que quer que seja. A partir do momento que ele vai para lá, vai nos contar todo o Portugal 45 anos antes do 25 de Abril de 1974, que é exatamente a idade que ele tem na altura da revolução.
Fica em Lisboa o bebé que nasceu, a filha, que vai ficar a viver com a irmã do pai e o marido. Ela vai crescer a seguir ao 25 de Abril — numa família que se foi aburguesando progressivamente, o tio é um cardiologista famoso, e é aí que ela vai desenvolver todo o seu tempo durante 45 anos. O meu objetivo foi escrever um livro que fosse muito marcado pela aproximação aos 50 anos do 25 de Abril, mas que eu gostaria que pudesse ser publicado, e foi, nos 48 anos — para estabelecer exatamente uma simetria com os 48 anos anteriores ao 25 de Abril. Portanto, aquilo que temos, como tempo da trama, são 90 anos, 45 anos antes do 25 de Abril, 45 anos depois do 25 de Abril.
Referindo-se a essa ideia pacto literário, podemos encarar o livro de uma forma mais metafórica. Uma das leituras possíveis quanto a esta história é de que João Aurélio representa o passado do país e Catarina o Portugal contemporâneo. Mas sob este prisma, a mãe, Maria Antónia, não só é a revolução que se esgota quando se concretiza, como é a causa da cisão entre passado e presente. Esta é uma relação que ainda nos atormenta?
Essa é uma leitura muito correta daquilo que eu gostava que acontecesse, porque procurando eu com o livro ter uma participação, embora modesta, na celebração dos 50 anos do 25 de Abril, a minha ideia relativamente a isso — e saindo agora do livro, indo mais ao encontro do meu pensamento —, é a de que nós temos três possíveis comparações a fazer.
Quais são?
Uma primeira comparação é entre o Portugal de antes e o de depois do 25 de Abril. Essa está muito feita no livro, mas, de um ponto de vista pessoal, entendo que essa comparação deve permanentemente ser feita para termos exata consciência daquilo que éramos e do que somos hoje, e não para procurar responder a partir daí à questão de saber o que era melhor. Para mim, isso é claro: não há qualquer sombra de dúvida de que Portugal, com todas as dificuldades que possa ter, é hoje muito melhor do que era antes do 25 de Abril. Portanto, para esse efeito, eu não faço comparação. Agora, para o conhecimento do que nós progredimos, daquilo que avançámos, essa comparação é importante.
Depois há uma segunda comparação, entre o Portugal que somos agora, 50 anos depois, e o que poderíamos ter sido após o 25 de Abril. E aí podem surgir dúvidas e opiniões que se digladiam no confronto político, democrático, livre, que é, no fim de contas, uma forma de viver aquilo que se pretendeu instaurar com o próprio 25 de Abril. Mas aí há uma margem de dúvida, uma margem de algumas sombras, que uns vêm de uma maneira, outros vêm de outra, mas que de qualquer forma estão aqui a dar também justificação ao título do livro, "As Sombras de Uma Azinheira". E a Catarina, em certo sentido, representa isso — a inquietação, a dúvida, a pergunta, a interrogação, mas sempre no sentido não de dirigir essa dúvida para uma comparação com o antes do 25 de Abril, e sim para colocar a questão de saber se as coisas podiam ter corrido de outra forma, para termos algum ponto de vista quanto ao Portugal que somos e ao que podíamos ter sido.
E depois uma última comparação, que é a que justifica a grande celebração e que julgo que é a que devemos assumir simbolicamente como celebração, que é a do Portugal que somos com aquele que queremos vir a ser nos 50 anos que se seguem.
Pegando no exemplo de João Aurélio, como estava a referir, ele por um lado representa também o ideal utópico que fica por concretizar — nem o 25 de Abril nem a filha lhe interessam porque a mulher com quem queria entrar nessa nova era morre. Ele corporiza também as desilusões que alguns poderão ter tido com o desenlace da revolução?
Pode haver essa leitura, mas eu quero induzir nada; quero abrir leituras possíveis, não induzir uma leitura especial. Pode haver leituras até um pouco contraditórias entre si, mas que, no fundo, são o caminho que cada leitor quis seguir a partir da proposta que eu fiz com o romance.
Há, todavia, aquela que eu considero que, se o tivesse sabido descrever bem, resultaria diretamente do livro — embora muito escondida, muito disfarçada. Essa leitura é que é se há coisa da qual João Aurélio nunca desistiu é exatamente a utopia. E não desistiu de tal maneira que queria vivê-la com a mulher. E uma vez que esta morreu, ele constrói uma utopia para o lado da morte. Toda a segunda parte do livro é passada com ele no cemitério, a falar com os mortos. Todo o tipo de diálogo que ele estabelece com os mortos leva-o a uma construção da ideia de que afinal — e não coloca a questão transcendental no sentido religioso do termo, até porque ele não o é — existe outra coisa que não se pode chamar vida, mas é algo depois da morte.
Que coisa é essa?
É a plenitude, a universalidade da cultura, a universalidade do saber, no fundo é aquilo que ele diz que é o "comunismo sem partido" que vai tentar encontrar ainda do lado de lá com a mulher. Aliás, ele só fala com os mortos na segunda parte, exceto o morto com quem falou na primeira, que é exatamente a mulher. Portanto, ele foi para a aldeia, ficou a falar com a mulher, deixou tudo, abandonou tudo, na ideia de que a revolução para ele tinha de ser ele e ela. Isso não aconteceu, e portanto vai procurar ainda atingir essa utopia numa dimensão que é muito mais do que escatológica, já é absolutamente ficcional e completamente simbólica.
ele foi para a aldeia, ficou a falar com a mulher, deixou tudo, abandonou tudo, na ideia de que a revolução para ele tinha de ser ele e ela.
É curioso, porque quando entramos nesse domínio do simbólico, a mim traz-me à memória essa ideia utópica e ensimesmada mas que se quer universal que é a da "Mensagem" de Fernando Pessoa — um possível futuro que é intangível mas que está mesmo ali à porta.
Exatamente. Não estou a querer fazer nenhuma comparação entre mim e Pessoa, longe disso, mas a ideia, no fundo, é essa. No fim de contas — e porque não há, repito, aqui nenhum proselitismo e, portanto, nenhuma ideia de que há uma vida transcendental e que é necessário procurá-la religiosamente —, o que está aqui é sempre a ideia da construção de uma utopia que alimenta um concreto de vida. À medida que João Aurélio vai desistindo e vai projetando a sua vida para um lugar algures que não se sabe bem como é que se define, curiosamente são os mortos que lhe vão dando aproximação ao real. Recordo-me, por exemplo, de uma conversa que ele tem com um velho sacerdote que já está para lá sepultado desde o tempo da Patuleia e das lutas liberais, etc..., e é ele que lhe chama a atenção, que diz "veja lá o que está a acontecer, tenha cuidado com a revolução, veja lá isso, porque as revoluções têm todas o seu contrário" e depois vai dando a nota de várias revoluções anteriores e avisa "tenha cuidado com o vosso fim de 25 de Abril, não vá isso também acabar numa ditadura". Portanto, não há aqui uma dimensão ficcionada que nos leva completamente para fora da realidade, há uma ficção como caminho para aproximação à realidade e para compreendê-la.
Ao mesmo tempo, enquanto João Aurélio está nesse diálogo com os mortos, ele deixa para trás os vivos, em particular a filha. Esta vive assombrada, não só pela perda, mas também pelo legado que é obrigada a carregar, a começar pelo nome, que é uma homenagem a Catarina Eufémia. Às tantas diz "nem quero ser ela. Não quero que me impeçam de ser quem sou. Não quero que me obriguem a ser passado e me neguem o direito às minhas próprias lutas, ao meu tempo e ao meu futuro”. É saudável operarmos um corte com o passado?
Eu não diria um corte com o passado, tanto que ela começa por dizer que tem toda a admiração pela figura de Catarina Eufémia. Quando diz "não quero ser outra Catarina Eufémia", não está a negá-la. Está é a dizer "ela foi muito importante, foi fundamental, tenho todo o respeito por ela e o seu trabalho está concluído, mas eu nasci de novo, quero ser outra pessoa". Ela quer, inclusivamente, ter outro nome — chega a escolher um alternativo —, visto que é Catarina porque nasceu rapariga, se tivesse nascido rapaz teria sido Álvaro, na medida em que os pais, ambos militantes comunistas, tinham escolhido nomes que eram simbólicos para eles também.
O que acontece é que o pai nos conta o Portugal para trás, o Portugal conhecido, construído e definido, e por isso é o narrador exclusivo de si próprio; o João Aurélio no fundo é aquilo que nós chamamos de narrador participante, é ele que se narra a si mesmo. Já Catarina é narrada parágrafo sim, parágrafo não, por ela e pelo autor — na medida em que o autor vai ajudando Catarina a construir o seu tempo, a construir o seu caminho. Isso é simbólico também, porque o Portugal de antes do 25 de Abril está construído e completado, e o Portugal após o 25 de Abril está em construção também e, portanto, essa dimensão da Catarina é representada dessa forma.
Agora, ela não nega o passado. O que não quer é que o 25 de Abril tenha sido um espaço que apenas legitima a projeção da luta anterior no presente e no futuro. A luta determinou um Portugal novo, e agora é preciso dar a quem é novo também a sua própria perspetiva, o seu ponto de vista, e não fazer com que os novos do pós-25 de Abril tenham de ser apenas seguidores daqueles que o construíram. São-no cronologicamente, mas devem ter toda a liberdade para, em nome do respeito das regras fundamentais da democracia, construírem o seu tempo e serem responsáveis por ele. Esse é o desejo de Catarina.
A luta determinou um Portugal novo, e agora é preciso dar a quem é novo também a sua própria perspetiva, o seu ponto de vista, e não fazer com que os novos do pós-25 de Abril tenham de ser apenas seguidores daqueles que o construíram
No fundo, para si e para o país, não é? Ela assume esta dupla função.
Exatamente, ela de alguma forma representa o Portugal do pós-25 de Abril. Não só o que cada um de nós é nesse Portugal, mas o próprio país em si. Eu julgo que faz sentido trazer à conversa a condição de lésbica da Catarina. Ela não está aqui porque o autor, sendo já uma pessoa muito avançada em idade, encontrou uma forma de mostrar que é modernaço na abordagem destes temas. Ela está aqui para mostrar que faz toda a sua vida — quer na relação com os tios, com os amigos, com as namoradas — com a maior naturalidade e com a maior tranquilidade. A única inquietação que ela tem é consigo própria. Lá está, ela é o país, que no início, quando é muito novita, não se percebe a si mesma, e depois dá-se conta daquilo que é e, a partir daí, cria uma outra necessidade que é "se eu sou assim, então eu vou ser assim porque quero". Este é um país que vai crescendo e que se vai consolidando, afirmando a sua própria vontade, a partir das inquietações e das dúvidas que foi tendo. Há aqui uma outra nota simbólica importante — esta mulher lésbica nunca o teria sido assim se a história a colocasse antes do 25 de Abril.
Aproveitando a deixa, Catarina, sendo uma mulher lésbica, assume-se como tal sem complexos e abraça essa sua identidade depois de fazer o seu trabalho de aceitação, o seu projeto de resolução pessoal. E nós, enquanto país, em que ponto estamos?
Julgo que Catarina está mais segura do que nós, mas isso é uma esperança também que projetamos nela. Estamos agora numa altura em que isso está muito em jogo, justamente. Até que ponto é que neste exatíssimo momento em que estamos, temos estrutura suficientemente forte e sólida para fazer triunfar a democracia? Quer aqui, quer fora, porque a questão hoje não é apenas colocada no nosso país, como se sabe. Aquilo que, no fim de contas, é o primeiro grande objectivo do 25 de Abril — restaurar a liberdade e estabelecer um regime democrático —, até que ponto é que hoje pode estar em risco. Essa é uma questão decisiva hoje e é absolutamente fundamental que seja colocada. Precisamos mesmo de compreender que a democracia é um regime frágil na sua própria natureza e, portanto, não podemos exigir-lhe que nos dê a solidez e a segurança acrítica — aquela que nos limitamos a sentir, mas que não contribuímos para construir. Não podemos esperar que nos dê isso. A democracia empenha-nos, responsabiliza-nos, chama-nos e é vivendo-a que somos capazes de gerar essa segurança. Habituámo-nos durante muito tempo a viver as virtudes pessoais da democracia, mas fomos-nos desabituando de lutar por ela e de a preservar. Julgo que estes 50 anos devem ser muito o chamamento para a clarificação absoluta desse tipo de situações, estarmos disponíveis para lutar pela democracia com tudo o que ela tem de frágil e de imperfeito.
Habituámo-nos durante muito tempo a viver as virtudes pessoais da democracia, mas fomos-nos desabituando de lutar por ela e de a preservar
No fim de contas, a democracia tem uma característica extremamente curiosa — no fundo, é o que há de mais parecido com a condição humana, visto que nós próprios também nos qualificamos pela nossa fragilidade, pela incerteza, pela insegurança. É isso que faz parte da riqueza da condição humana. E por isso, temos de ter muito cuidado com variadíssimos aspectos, quer do ponto de vista ideológico, quer do ponto de vista tecnológico, que nos são oferecidos como tendo na mão a resolução eficaz deste tipo de problemas — isto é, a alteração eficaz daquilo que é verdadeiramente a condição humana. Talvez seja bom pararmos um pouco para refletir sobre tudo isso.
A dado momento, João Aurélio compara a degradação do seu próprio corpo com o aparecimento dos fascismos. Ele diz que "é num corpo estragado que germinam os fascismos". A diferença entre um país e um corpo é que o corpo não regenera. O país é capaz de regenerar, ou ficam marcas na mesma?
Algumas marcas ficam, mas isso também faz parte da natureza das coisas. Elas ficam sempre. Aliás, é muito curioso, porque ainda há relativamente pouco tempo estive num espaço de debate com outros a falar do 25 de Abril, entre os quais o Rui Zink, e ele dizia com aquele seu estilo, e muito bem, que temos de estar permanentemente alerta, desde logo a começar por nós. Temos de estar muito atentos aos fascistas que existem dentro de cada um de nós. Na violência doméstica, na brutalidade com que nos relacionamos uns com os outros, na incapacidade que temos de aceitar com facilidade a opinião contrária, etc. Até que ponto é que nos libertamos interiormente das próprias forças opressivas que também temos e que, de alguma forma, somos capazes de pôr em marcha? Ora, é muito importante termos essa perspetiva. Desabituarmo-nos de fazer apenas críticas àquilo que de negativo é exterior a nós, mas compreendemos que também temos de começar por pensar em nós mesmos. É um pouco aquela frase que alguém já disse em tempos, que “agora temos a democracia, o que dava muito jeito agora eram os democratas”.
Se me permite, acharia muito interessante, por exemplo, que nestes 50 anos pegássemos nos célebres três D's do Movimento das Forças Armadas — o "Democratizar, Descolonizar e Desenvolver" —, e os convertêssemos em objetivos pessoais.
Como assim?
Esses desígnios estão todos garantidos, melhor ou pior, na consciência de uns e de outros. Tudo isso foi feito: democratizou-se, descolonizou-se, e o país é mais desenvolvido. Poderia ser melhor, podia ser diferente, e é isso que faz parte do debate político e é saudável, não tem qualquer problema. Agora precisamos é de subjetivizá-los — saber até que ponto é que nos democratizámos e até que ponto nos autonomizámos. Isto é, até que ponto nos descolonizámos. Porque hoje há uma forma nova de colonização, que é a que determina a nossa indiferença. Ela está instalada e os cidadãos indiferentes são cidadãos colonizados, porque a indiferença é o largar de um espaço de intervenção, e em política não há espaços abandonados. Se nós largamos um espaço de intervenção, outros ocupam, e ao sermos indiferentes, estamos a caminhar para dentro de pouco tempo sermos irrelevantes, pura e simplesmente.
hoje há uma forma nova de colonização, que é a que determina a nossa indiferença. Ela está instalada e os cidadãos indiferentes são cidadãos colonizados, porque a indiferença é o largar de um espaço de intervenção, e em política não há espaços abandonados
E finalmente, o desenvolvimento, que só pode ser um desenvolvimento comunitário, de cada um de nós com os outros — o que também não significa nenhuma ideia de coletivismo perigosa que passe pela cabeça de alguém. Tem muito a ver, se quiser, com as próprias indicações da Unesco, quando fala nos grandes objetivos para a educação e diz que um deles é aprender a ser e o outro é aprender a ser junto. O desenvolvimento é essa ideia, o ser junto, na medida em que só com os outros atingimos o máximo do nosso próprio desenvolvimento pessoal. Portanto, seria um bom desígnio para os 50 anos que aí vêm.
Quanto a essa ideia que apresentou de que a indiferença é uma forma de colonização mental, o romance explora o tema de quando se faz a celebração só pela celebração. Catarina tem pudor a isso, não lhe interessa que se celebre as coisas de forma ritualizada. No início do livro, conta como foi assistir a um 5 de Outubro e como este é só uma festa para alguns e que já não entusiasma. Sem que se tenha em conta o que é o 25 de Abril e para que serviu, corremos o risco também que se torne, de certo aspecto, numa celebração cristalizada, um 5 de Outubro, que já vale mais pelo nome do que por aquilo que significa?
Podemos correr este risco, mas ainda estamos a tempo de evitá-lo. Não há problema nenhum na celebração — e a própria Catarina também diz isso. No fundo, o que ela afirma é que, apesar de tudo, tem um problema, porque quando chega ao dia 25 de abril, ela nunca sabe se está a celebrar a Revolução ou o seu nascimento. O que significa que há ali um problema quase ontológico que ela coloca a si própria, um problema de identidade. Ela tem de se libertar do dia político para se afirmar como pessoa. E, de alguma maneira, essa é uma questão que também tem de se pôr ao país. Isto é, nós não podemos, a certa altura, fazer do 25 de Abril apenas um ponto de encontro ritual, uma vez por ano. Precisamos de fazer isso se, ao fazê-lo, tivermos a consciência de que estamos a celebrá-lo sistematicamente, ao batermo-nos pela consolidação da democracia e, portanto, por aquilo que foram os grandes valores do 25 de Abril. Daí eu dizer que a grande celebração destes 50 anos será o debate, a discussão, a reflexão sobre o que nós queremos para os 50 anos seguintes. Isto é que é dar vida ao 25 de Abril.
De outra forma, é uma revisitação que cada vez tem menos visitantes porque só faz sentido se fizer um apelo à memória daqueles que a vivenciaram. Ora, é muito importante que isto seja interiorizado por cada jovem, por cada criança, por cada pessoa que vai vivendo, independentemente da memória física pessoal que tem do acontecimento. Catarina, a dado momento, quer perceber o que é isto, esta dúvida que ela tem quanto à celebração, porque não gosta de foguetes nem das bandas e tudo isso. Quer ter um pouco a noção da reação que tem a essas coisas e então resolve, por ela, ir a uma celebração do 5 de Outubro. E é nessa altura que ela própria percebe que a celebração só em si tem pouca substância. Deve manter-se, deve existir, é fundamental que exista, mas não se pode ficar por aí, nem podemos achar que o nosso compromisso com a data é apenas um compromisso na data.
Falando como um filho de Abril, parece-me que celebrar o 25 de Abril apenas porque nos foi dito que é preciso celebrá-lo é um bocadinho como tomar vitaminas sem saber para que é que elas servem.
Exatamente, e até torna ficcionada a celebração. Quer dizer, no fundo faz-se uma celebração, para agradar a outros, faz-se porque fica bem, faz-se para dizer que se fez. Não, isso não. Deve-se celebrar com respeito, se bem que não com o mesmo entusiasmo das pessoas que fizeram o 25 de Abril, mas isso é perfeitamente natural. Estas celebram-no assim porque esse entusiasmo é, no fundo, o vazamento naquela data de tudo o que foram os sacrifícios, as brutalidades que se viveram para chegar até ali. E tudo isso tem todo o seu lugar e nós devemos ter todo o respeito por aqueles que fizeram o 25 de Abril, por aqueles que o viveram e por aqueles que sofreram antes da revolução. Isso é importante que seja passado, mas dentro de uma ideia de valores que tem a ver com um contínuo histórico. Aliás, esse começa hoje a ser posto muito em causa e essa é outra preocupação que acho que devíamos ter, na medida em que temos muita dificuldade em construir o futuro se não o fizermos sobre uma avaliação, ainda que crítica, do passado.
Daí voltarmos à comparação entre o Portugal de hoje e o de antes do 25 de Abril — é que aquele Portugal existiu mesmo. E é muito importante que se contem histórias, que se revelem episódios, que se diga em que circunstâncias se vivia então, porque não está de todo afastada a hipótese de haver quem queira que voltemos a viver em termos semelhantes. É bom que tenhamos a noção do que temos e do que perdíamos se voltássemos aí. A forma mais sólida de não voltarmos para trás, e isto aqui é quase lapalissiano, é andamos para a frente — incorporando esses valores e atualizando-os, estando abertos para o mundo e para aquilo que nos é hoje oferecido como novidade, como inovação, etc...
é muito importante também ter a noção de que a liberdade restaurada em 25 de Abril não é a liberdade no sentido de que cada um deve fazer o que quer. É uma liberdade que tem como contrapartida uma profunda responsabilidade cívica e cidadã, que constitui o preço que se paga e que é um preço leve para o bem absoluto que se tem
Tudo isso é caminho de liberdade, mas precisamos da noção de que esse caminho só existe porque algum tempo, algum dia, alguém nos colocou nas mãos essa liberdade. E já que falamos desse conceito, é muito importante também ter a noção de que a liberdade restaurada em 25 de Abril não é a liberdade no sentido de que cada um deve fazer o que quer. É uma liberdade que tem como contrapartida uma profunda responsabilidade cívica e cidadã, que constitui o preço que se paga e que é um preço leve para o bem absoluto que se tem, que é o poder livremente lutar por caminhos, por ideias, por opiniões, e ter a consciência de poder fazê-lo sem que isso ponha em risco a própria vida e a própria liberdade no fim de contas.
Recuperando uma ideia de há pouco, a própria escolha de Catarina ser uma personagem homossexual vinca a ideia da abertura que o 25 de Abril trouxe à sociedade portuguesa. Mas na véspera dos 50 anos da Revolução, parece que até esse tipo de liberdade pode ser alvo de retrocesso, de que não podemos dar estas conquistas por garantidas. Como é que lê o nosso atual momento?
Leio com alguma preocupação, mas sem angústia. Julgo que é importante ter essa noção. Se pensarmos bem, provavelmente tudo o que é verdadeiramente bom é frágil, desde logo a excelência — a excelência não é um contínuo de vida, não é uma rotina, e portanto, nessa medida, precisamos de estar sempre atentos. Se acabamos por caminhar para uma dimensão apenas aparentemente livre, uma dimensão profundamente individualista, em que a liberdade é aquilo que cada um usa para fazer o que quer. Como eu dizia há pouco, isso não é democracia. Isso, no fundo, conduz ao aproveitamento de uma liberdade cada vez mais aparente, na medida em que nos dá alguma satisfação de interesses imediatos, aos quais reduzimos o nosso horizonte de vida. E é nisto que temos de ter muito cuidado — compreender que a vida não é uma passagem hedonista por este mundo, em que nos satisfazemos pelos pequenos prazeres que temos, e aí temos de fazer algumas perguntas fundamentais.
E é nisto que temos de ter muito cuidado — compreender que a vida não é uma passagem hedonista por este mundo, em que nos satisfazemos pelos pequenos prazeres que temos, e aí temos de fazer algumas perguntas fundamentais
Hoje, por exemplo, não vemos ninguém, entre nós, a manifestar-se para que lhe seja reconhecida a liberdade. Pode haver em alguns aspectos que referimos — no domínio da sexualidade, por exemplo — mas, de uma maneira geral, enquanto tema, a luta pela liberdade não é uma coisa que seja evidente. Mas isso tem uma explicação e há de se ter cuidado. É que hoje à liberdade não corresponde poder — e se à liberdade não corresponde o poder, ninguém quer impedir a liberdade. Ora, a democracia, no fundo, é isso. A democracia dá uma liberdade de poder, que faz com que cada um de nós tenha uma participação modificadora no mundo e na vida. E essa é a liberdade pela qual vale a pena lutar e que custa preservar. Evidentemente que, quando a liberdade individual está em perigo, temos de pensar duas vezes, porque a democracia é um regime do todo — se pudermos ter o quase todo a viver uma liberdade aparente, não falta quem queira que assim seja, desde que sejam alguns poucos quem tem o poder. Portanto, temos de fazer corresponder à liberdade o poder. A democracia é isto, é a partilha do poder entre todos. E quando isso acontece mesmo, temos de estar muito atentos porque haverá sempre quem não queira que isso aconteça. Quando não sentimos que há o perigo de se perder, é porque provavelmente já o perdemos, esse poder que dá razão de ser à liberdade em termos políticos. Assim, acabamos por viver uma liberdade puramente individual e individualista, que não só não contribui para a construção da dimensão mais profunda de cada um de nós, como vai colocar em risco aquilo que são as virtudes da democracia.
Como referiu no início da conversa e como já é de conhecimento público, lançou este livro em 2022, tanto para bater com o início das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, como para coincidir com a marca dos 48 anos em liberdade após o Estado Novo. E assume que fê-lo para contribuir para uma reflexão sobre este marco. Que reações tem obtido desde então?
Quando digo que é um contributo, assumo que é um contributo modesto. Não pretendo colocar-me numa qualquer primeira fila da produção de contributos para a celebração. Tenho tido reações francamente boas nesse aspeto, quer na saída do livro, quer na maneira como variadíssimas pessoas me deram retorno relativamente a ele. Não tive uma reação, digamos, institucional, porque não era esse o objectivo, nem isso faria sentido, mas talvez tivesse gostado que aqui e ali ele pudesse ter suscitado um qualquer debate. Mas suscitou em vários momentos, eu fui convidadíssimo para andar aí pelo país a falar do livro em vários encontros, e reuniões. Nesse aspeto, sim, com certeza que sim — e eventualmente podia ter tido outra expressão, mas isso é o que é. Se me pergunta se eu estou satisfeito com a reação, estou. E digo isso com franqueza, porque, como é evidente, se alguém escreve e publica, é com o desejo de ser lido.
Claro, mas a minha pergunta também é quanto às reações que obteve, se foram plurais, porque há várias formas de as pessoas encararem este período histórico retratado.
Sim, e nesse aspeto é mesmo para ser assim. É engraçado, eu hoje estou à vontade para contá-lo, mas numa das apresentações do livro, feita por mim, mal acabei a intervenção, uma senhora levanta o dedo e diz "eu não posso aceitar que este homem tenha abandonado a luta política lá por causa de lhe ter morrido a mulher no parto, e uma vez que não posso aceitar isto, a partir daqui eu não posso aceitar o livro". E foi muito interessante, porque eu normalmente gosto deste tipo de reações, muito veementes e muito definitivas, porque há sempre a possibilidade, pelo menos, de ela ficar mais branda, de encontrá-la no debate.
E isso suscita conversa, não é?
Exatamente. E isso permitiu que eu explicasse à senhora que era perfeitamente natural a reação dela, porque significava que ela não tinha aceitado o pacto que eu tinha proposto, o tal pacto ficcional de que falava o Umberto Eco. E portanto eu dizia que isto é puramente simbólico, não podemos discutir se isto é real ou não, e ou aceitamos esta simbologia e a partir daqui eu tenho de me comprometer que todas as personagens são verossímeis a partir desta cena, ou não. Agora, esta cena não tem de ser verossímil, e portanto a senhora tem toda a razão quando me diz "isto não é verossímil", no seu critério não é. Agora, isso não tem causa ao livro, porque eu próprio admito que não seja. Foi interessante, foi engraçado, porque havia ali uma motivação que era muito evidente, a senhora tinha uma perspectiva política partidária que a levava a dizer isto. Ela não tinha lido o livro, eu ainda lhe dei duas ou três notas do caminho que o livro seguia, e, no fim, quando chegou à altura das assinaturas, ela foi fazer uma coisa que até me incomodou um pouco, porque veio pedir imensa desculpa, porque não tinha lido nada, não fazia ideia nenhuma de como é que o livro se desenvolvia e tivemos depois uma conversa bem interessante. Era uma senhora que, não vou dizer que tinha uma idade vetusta, porque era um bocadito mais nova que eu. Mas era uma pessoa que, lá está, tinha atrás de um capital provavelmente de sofrimento na luta pelo 25 de Abril.
Uma frase para este 25 de Abril?
Eu tenho muita dificuldade,porque se eu não sou capaz de me fixar no ritual da celebração, ainda menos sou capaz de reduzir tudo isso a uma frase. Mas se quiser, não quero deixar de responder. Digo-o sem nenhum sentido de criatividade, sem nenhuma inovação, mas eu digo para satisfazer a sua vontade. É muito simples: 25 de Abril, sempre.
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