Num dia quente de maio em 1911, o engenheiro de minas Martín Garret vê-se de súbito no epicentro de uma luta que não é a sua, num país que o considera um gringo. Afinal de contas, é espanhol e só se encontra em Ciudad Juárez em trabalho, mas o rebuliço da Revolução Mexicana tem outros planos para si.

Em “Revolução”, Arturo Pérez-Reverte — instituição das letras espanholas, um dos mais conhecidos e acarinhados romancistas do outro lado da fronteira por esse mundo — volta ao romance histórico e, assim, a um dos seus cenários preferidos: o de colocar um certo tipo de heroi perante as engrenagens da história, combatendo adversidades que fizeram tantos tombar e que eternizaram aqueles poucos que as ultrapassaram.

Assim, o romancista de 72 anos mergulha no passado para falar no presente, como assume em entrevista ao SAPO24 num hotel no centro de Lisboa. No decurso de uma extensa conversa, Pérez-Reverte defende que as revoluções estão sempre fadadas a falhar, porque “no fim são os homens, as mulheres, que as levam a cabo, e esse é o problema, na medida em que é o ser humano que estropia aquilo que ele próprio organiza”, transformando-as em “ditaduras e miséria”. “É assim a história da humanidade”, lamenta.

Apesar da beleza da Revolução do 25 de Abril, que recorda em mais do que uma ocasião ao longo da entrevista, o romancista aponta que o problema às vezes é que aqueles que fazem as revoluções são postergados pelos que querem recolher os frutos desse acontecimento. No entanto, Pérez-Reverte defende também que, mesmo que as revoluções falhem, o ser humano tem de continuar a tentar. “Não importa se falharmos mais tarde; o facto de os seres humanos sonharem em mudar o mundo, sonharem em pendurar o tirano no candeeiro da rua, cria momentos muito bonitos na história da humanidade e é necessário”, advoga.

“As revoluções são sempre traídas”

Uma das marcas dos seus romances de aventura é a presença de um protagonista no cenário de um grande episódio histórico. Porque gosta tanto de atirar as suas personagens para as engrenagens da história?

Primeiro, porque é divertido. Um romance nos dias de hoje seria todo à base de telemóveis, de hackers, de bens eletrónicos, de carros, etc... Mas se formos ao passado, há possibilidades narrativas muito mais interessantes. Por isso, prefiro mover-me nesses territórios. E depois há o facto de os meus romances serem falsamente históricos, os que são históricos. O que faço é falar do presente, mas uso o passado para compreendê-lo melhor. É assim que penso, que sem história é impossível compreender o presente. O problema grave que temos hoje, no Ocidente, na Europa, em Espanha, em Portugal, é que temos um presente conflituoso, mas falta-nos ter connosco um passado que nos permita compreendê-lo. Portanto, as pessoas estão perplexas porque não sabem. "Como é que isto é possível?" É, se lermos história, vemos que tudo já aconteceu, que há ciclos históricos que se repetem, há constantes históricas que nos permitem compreender, até impedir que coisas que vemos nelas se repitam. Mas como não temos essa formação intelectual ou cultural, estamos indefesos perante um mundo caótico e complexo. Quando falo da revolução no México, não é nela que estou a falar em concreto, é de como a revolução é traída, de como as pessoas que a fazem são postas de lado. Deixa-me dar-te um exemplo de Portugal: o herói português da Revolução de 25 de Abril foi o capitão Salgueiro Maia, que quando a fez disseram-lhe "pronto, agora adeus, vais-te embora e é a nossa vez, a dos políticos". Bem, esse é um caso clássico, ou seja, das pessoas que não arriscaram, que ficaram nas bancas a dizer “vai, vai, Salgueiro, vai, vai, vai, vai”...

Um pouco como Pancho Villa é descrito aqui também.

Sim, e o Salgueiro era um homem desses, tinha "cojones" — ou, como vocês dizem, "tomates". Era um homem bom e honesto e por aí fora, mas depois foi posto de parte porque já não tinha interesse. Portanto, isso é uma constante, aconteceu no México, aconteceu na Revolução, em todas elas, por isso é que eu quis usar isso como argumento para este romance. As revoluções são sempre traídas.

“Aprendi muito na guerra, não exatamente por causa dela, mas pela forma como as pessoas se comportam”

Esta ideia do comum mortal perante um grande evento histórico não é também uma forma avaliar como é que nós, pessoas, reagimos à adversidade, aos grandes momentos?

Exatamente. Passei 21 anos como repórter a ir para países devastados pela guerra. Não gostava da guerra. Ninguém pode gostar do horror, da dor, fica connosco [aponta para a cabeça], não é? Mas na guerra há algo muito interessante, muito nutritivo do ponto de vista intelectual, que é observar o comportamento das pessoas nesse cenário. Aqui, onde estamos sentados, não é a mesma coisa; vivemos num mundo civilizado, rodeados de conforto e de boas maneiras, telemóveis, de expressões como “por favor, passe primeiro, minha senhora”, etc. Na guerra, não, tudo isso vai para o inferno. É aí que temos o ser humano na sua essência — comer, dormir, aquecer-se, fazer sexo. Ou seja, o ser humano na guerra mostra-se como realmente é. Portanto, para quem assiste é um espetáculo muito interessante. Aprendi muito na guerra, não exatamente por causa dela, mas pela forma como as pessoas se comportam. Portanto, o que me fascinou foi isso, eu passei essa minha aprendizagem, essa minha formação, ao Martín Garret. Por outras palavras, o que me aconteceu a mim acontece a ele. Ele descobre que a revolução, a guerra e a violência são uma escola muito importante de lucidez e maturidade.

Relativamente a esse tema, já referiu antes em relação a “Revolução” que o protagonista Martin Garret não é uma transposição sua para a página, mas que o rumo de vida dele tem alguns paralelos com o seu. Em que sentido?

É um erro procurar o autor por detrás dos romances porque se trata de literatura. Primeiro, eu escrevo romances com o que li, o que vivi e o que imagino. Portanto, o que eu vivi está lá, obviamente, não é? Quando falo de violência, de tortura, de matar, ou de como é que se dá um combate, não me falaram disso, não vi isso no cinema, vivi-o. O que acontece é que eu transformo-o em literatura. Já não é meu, já faz parte da história narrativa que estou a contar. Portanto, uso a realidade, a minha biografia, mas modificada narrativamente.

Logo no início do livro, faz uma referência ao "Flecha de Ouro", de Joseph Conrad, e já disse antes que este é um romance de iniciação.

Sim, é um bildungsroman.

“Mesmo com o malvado, aprendemos coisas muito interessantes”

Eu creio já ter lido uma declaração sua que é parecida com uma reflexão de Martin no livro, quando escreve "aqueles olhos, chegou a pensar ao vê-los no espelho, teriam necessitado de dez ou vinte anos de uma vida, ou talvez de uma vida inteira, para perceber o que tinham visto em menos de quarenta e oito horas”. Há esta ideia de que, estando colocado perante um cenário daqueles, uma guerra ou uma revolução, é uma espécie de abre-olhos para as facetas da vida que nos são ocultas.

Claro, é espreitar para um lado da vida que não vemos aqui, neste hotel. É conhecer melhor o ser humano e conhecermo-nos melhor nessa situação, na guerra. Mas é viver a guerra, não é encará-la do ponto de vista político, onde é tudo claro — “República espanhola boa, Franco mau” ou “Israel mau, Palestina boa” — isso é óbvio, não é? Mas quando nos aproximamos do indivíduo, das trincheiras, então as linhas tornam-se cinzentas, esbatidas. O bem e o mal são relativos, porque há fatores como o medo, a vingança, o ressentimento, a lealdade, que não têm nada a ver com ideologias, apenas com o ser humano. À medida que nos aproximamos do plano curto, digamos, a ideologia desaparece e o ser humano permanece. Portanto, mesmo com o malvado, aprendemos coisas muito interessantes.

Eu estive em Angola em 1978 com a guerrilha da UNITA. Estava no mato e havia uma pequena aldeia com um hotel e uma garagem. Era um hotel sofrível, mas tinha eletricidade e cerveja gelada! No espaço ao lado, estava um mercenário português chamado Fernando que tinha estado a combater e tinha ficado lá com a UNITA. Era um tipo gordo e careca, muito simpático, muito engraçado, mas que estava a torturar um preto, um negro, um prisioneiro. Estava eu a beber cerveja e ouvia “tal e tal, ahhhhh”, ao lado. Passado um bocado apareceu o Fernando todo suado, de t-shirt, a pedir uma cerveja. Paguei-lhe duas e ele começou a dizer-me porque é que torturava, como é que as pessoas inteligentes se comportam na tortura, como é mais fácil torturar uma pessoa inteligente do que uma pessoa estúpida, como é que se tem de fazer para ela não morrer. Portanto, em meia hora de conversa, a beber cerveja com o Fernando, aprendi mais sobre o ser humano do que num livro. Quer dizer, são coisas... o Fernando parecia um tipo porreiro, charmoso, com piada, mas tinha estado a torturar! O ser humano é muito complexo, não é bom nem mau.

Outro exemplo. Na Eritreia, em 1977, entrei na cidade de Teseney com os guerrilheiros eritreus contra os etíopes. De manhã, os rapazes lutaram, morreram, bateram-se e eu estava a ver, estava a tirar fotografias, estão na Internet, pareciam uns rapazes admiráveis; à tarde, depois de ganharem, violaram mulheres e mataram prisioneiros — os mesmos rapazes. Portanto, é claro que as pessoas que são capazes do melhor são capazes do pior. A guerra ensina-nos isso, apaga as fronteiras e faz-nos ver o ser humano na sua rica complexidade. Foi essa a aprendizagem que tive e que emprestei a Martin Garret.

“A ignorância não ajuda a lutar, o que ajuda é o conhecimento do inimigo”

E esse é um dos grandes desafios do jornalismo, não é? Se só representarmos esses guerrilheiros pela parte da manhã, damos uma perspetiva completamente diferente da que surge se só os mostrarmos da parte da tarde. Criamos para o público duas visões completamente distintas da mesma pessoa.

Exatamente. E hoje em dia, o problema na Europa, em Espanha e em Portugal também, é que as pessoas exigem denominações específicas. Eu digo “eu sou de esquerda, mas acho mal que, não sei, que uma mulher seja agredida, que uma mulher seja violada num bairro marginalizado com imigração descontrolada”. Vão dizer “ah, mas então és fascista”. O que é que vou fazer? Respondo “depende, há dias em que sou, depende do pé que me pisem!” Esta exigência de nos situarmos — “vamos lá ver, defina-se” — tem um problema: é que a vida é muito complexa. Há coisas em que me sinto de esquerda, outras em que me sinto de direita, ou não sinto nada. O mal, como já disse, traz conhecimento. Quer dizer, imagina que se sentava aqui o Hitler — entrevistava-lo ou não? Vais dizer que não, o que é um erro, porque depois até podemos matá-lo, enforcá-lo, mas primeiro devemos ouvi-lo. Seria muito interessante perguntar “porque é que matou aqueles milhões de judeus?” ou “como é que conseguiu o poder?”. Por outras palavras, deixarmos que o malvado nos mostre a sua mente, isso ajuda-nos a defendermo-no, a prevenirmo-nos, a lutarmos. A ignorância não ajuda a lutar, o que ajuda é o conhecimento do inimigo. Depois da entrevista, tu e eu damos uma tareia no Hitler, damos-lhe um pontapé no cu, metemo-lo na prisão, penduramo-lo a um poste de luz. Mas primeiro ouvimo-lo. O problema é que agora, no mundo de hoje, quando o Hitler aparece, a reação é “não, não, não o deixem falar!” Esse é o erro. É um erro que se comete muito e que é cometido com boa vontade, com boas intenções. Mas é um erro porque nos está a privar de conhecimento e, sem ele, o inimigo usa a nossa ignorância para nos lixar. Eu falei no Hitler mas podia ser o Salazar.

Sse eu não tivesse lido muito antes, durante e depois, a guerra ter-me-ia traumatizado psicologicamente, perturbado, provocado stress pós-traumático, tornado-me cínico ou vingativo ou antissocial ou o que quer que fosse. O facto de ter lido muito permitiu-me projetar o que via nos livros que li, deu-me explicações”

Bem, ainda assim, vai alguma distância entre os dois.

Claro, estava a falar no caso de Portugal. Podia também ser Franco. Eu oponho-me a Salazar, mas seria muito interessante falar com ele. Ou com o chefe da PIDE! Silenciar é perigoso. Eu insisto, silenciar ajuda aquele que é silenciado.

Dois dias depois de se ter envolvido na Revolução Mexicana, Martin percebe que passou um ponto de não retorno, que a sua vida nunca será a mesma nem nunca mais verá o mundo com os mesmos olhos. No entanto, ele não teme isso, sente-se inebriado pelos acontecimentos. Que sensação é esta?

Quando via coisas assim, era uma espécie de turbulência de sensações e ideias, mas eu tinha uma vantagem. Passo a explicar: se eu não tivesse lido muito antes, durante e depois, a guerra ter-me-ia traumatizado psicologicamente, perturbado, provocado stress pós-traumático, tornado-me cínico ou vingativo ou antissocial ou o que quer que fosse. O facto de ter lido muito permitiu-me projetar o que via nos livros que li, deu-me explicações. Via-me a caminhar pela selva, pelo deserto e pensava nos 10 mil de Xenofonte na Anábase. Via uma mulher a despedir-se do marido e pensava em Andrómaca e Heitor. Já tinha lido tudo isso antes. Portanto, estava a identificar-me, o que me permitiu compreender. E quando se compreende, dói menos. Ou seja, o problema é quando não se compreende, quando se está desnorteado, embriagado de horror e de dor. Por isso, graças aos livros, consegui digerir e ser um tipo normal, não andar por aí a matar pessoas, a empurrá-las ou a cuspir nelas. O ser humano é um filho da mãe, um grande filho da mãe. Os seres humanos são muito maus, mas também são muito bons. Por isso, a guerra permite-nos ver as duas coisas — amamos os homens o suficiente sem nos deixarmos cegar por eles e desprezamo-los o suficiente para não os odiarmos. É a isso que os livros levam.

“Vivemos no Titanic e desviamo-nos de icebergs a toda a hora, mas o que se passa é que não nos apercebemos de que há sempre mais um iceberg. A humanidade, especialmente no Ocidente, esqueceu-se de que cada Titanic tem o seu iceberg à espera. Isso torna-nos muito vulneráveis”

Os livros ajudam a compreender que tudo isto é parte da experiência universal da humanidade, a vida e a morte.

É sempre a mesma coisa. As circunstâncias específicas, o tempo e o lugar histórico mudam, mas o facto geral continua a repetir-se na história. O Titanic repete-se continuamente. Dou-te um exemplo de como estamos a bordo do Titanic. Isto [aponta para um telemóvel], o carro elétrico, tudo depende da luz. O nosso mundo baseia-se neste funcionamento. Mas quando há um terramoto, uma guerra ou outra desgraça qualquer, a luz vai à vida, deixa de haver. Então, sem ela, os hospitais não funcionam, os carros [elétricos] não funcionam, nada funciona. Vai-se para o aeroporto e acontece que o telefone está sem bateria e não se pode entrar no avião. Depois, tudo fica parado. Ou seja, vivemos no Titanic e desviamo-nos de icebergs a toda a hora, mas o que se passa é que não nos apercebemos de que há sempre mais um iceberg. A humanidade, especialmente no Ocidente, esqueceu-se de que cada Titanic tem o seu iceberg à espera. Isso torna-nos muito vulneráveis. Para alguém com a minha história de vida, com a minha memória, eu olho para isto e digo “não se apercebem que estamos sempre em perigo?” Portanto, este tipo de, digamos, suicídio técnico voluntário e complacente do Ocidente parece-me espantosamente estúpido. Por isso, o meu ensinamento é que uso este telefone [mostra um telemóvel com teclado de botões], não dependo de um smartphone, tenho um carro a gasolina, tenho o meu aquecimento em casa a carbono. Ou seja, estou preparado, digamos assim, porque a vida que levei ensinou-me que todo o progresso técnico tem o seu acidente técnico.

“O romance ajuda-me a acalmar, é como uma aspirina: não elimina a causa da dor, mas ajuda-me a suportá-la”

Já que é um amante da literatura grega, pode dizer-se que esse "suicídio técnico" de que fala é uma forma de húbris?

Exato. Quero dizer, atingimos um grau de arrogância ao pensar que temos o mundo aos nossos pés, todo aqui [aponta de novo para um smartphone]. Mas olha, outra coisa interessante. Há 100 anos, os teus avós, os meus avós, tinham justificação para não saber mais. Era difícil saber. Se não tivesses privilégios, se não fosses à escola, se tivesses de estar a trabalhar no campo, não podias saber mais, não percebias o mundo. Portanto, só os privilegiados é que podiam ter acesso ao conhecimento. Agora com isto, tens 3.000 anos de cultura e de história, tens tudo aqui, mas nós usamo-los para jogar, para tirar selfies, para as redes sociais, para isto e aquilo. Não há justificação para isso. Quem é analfabeto agora é porque quer, é voluntário. Quem agora ignora 3.000 anos de cultura, economia, sociedade e filosofia é porque quer. Já não há vítimas inocentes, somos todos culpados. E o que é que acontece? O próximo passo é muito perigoso, porque chegas ao seguinte pensamento: será que devemos desprezar a humanidade por isso? Isso pode fazer nós misantropos, que mandamos os outros tomar no cu. É muito perigoso porque pode tirar-nos a compaixão, a caridade, a solidariedade, a humanidade. É uma luta contínua quando se tem 72 anos como eu e uma vida como a minha, é uma luta contínua para nos mantermos agarrados à humanidade apesar de muitas forças nos afastarem dela [risos]. A minha tragédia é continuar a amar estes filhos da puta que estão a devastar Lisboa, este turismo de massas descontrolado em que lhes é indiferente se estão aqui ou no Porto, não falam uma palavra de português, não querem saber, vêm fazer surf e vão-se embora. Continuar a amar a humanidade apesar disso é muito difícil, mas é essa a minha luta, estás a perceber? E os romances ajudam-me. O romance ajuda-me a acalmar, é como uma aspirina: não elimina a causa da dor, mas ajuda-me a suportá-la. Os meus romances são a minha aspirina.

Já referiu em várias entrevistas que parte da inspiração para este romance veio também da sua história familiar. Como e que tipo de noções é que lhe passaram sobre a revolução mexicana?

Um dos meus avós era engenheiro de minas e na escola teve um colega que foi para o México e viveu a Revolução. Estando lá, mandava cartas ao meu avô a contar-lhe o que se passava, sobre o Pancho Villa, etc... Então as cartas estão em minha casa, eu li-as e pensei “é uma boa maneira de contar uma história”. Foi aí que tive a ideia. As cartas do amigo do meu avô, mandadas entre 1911 e 1914.

Esses relatos passaram-lhe uma ideia mais seca e direta da Revolução ou uma coisa mais romanceada?

Ele foi apenas uma testemunha. Era um homem instruído, era um engenheiro, um técnico que olhava para aquilo e quis contar os factos. Não os analisou, disse “aconteceu isto e aquilo…” Todos os meus romances começam com alguma coisa: uma mulher que passa, uma música, uma conversa, um gosto, um cheiro. Neste caso, foram as cartas.

Esta não é a primeira vez que retrata o México, já o tinha feito em “Rainha do Sul”. Entre estas duas histórias dista quase um século. Sente que há alguma ponte de diálogo entre as duas, entre o México que podia ter sido e o México que nos chegou?

Sim, a crueldade e a ternura. O México é um país muito interessante, muito contraditório. É o país mais interessante da América, mais do que o Brasil, porque tem tudo. Tem dinheiro e pobreza, cultura e ignorância, ternura e violência. Há crueldade, a vida humana não vale nada. Mas, ao mesmo tempo, no norte, há um folclore muito rico, muito interessante, as cantinas, as pessoas, a tequila, as mulheres são lindas e engraçadas e os homens são... bem, quando um mexicano é teu amigo, é um verdadeiro amigo, mas eles também são muito perigosos. Então é um país cheio de possibilidades para um escritor. Gosto muito do México, vendo muito bem lá, conheço-o bem e impregnei-me da sua ambiência, pensei que era um bom cenário para este romance.

“É claro que as grandes causas acabam sempre por se perverter nas mãos da condição humana, porque nós somos como somos. É por isso que nenhuma revolução triunfa bem, porque no fim são os homens, as mulheres, que a levam a cabo, e esse é o problema, na medida em que é o ser humano que estropia aquilo que ele próprio organiza. É uma espécie de paradoxo”

Perguntava-lhe isso também, mais concretamente, porque a ideia que o livro passa é de que a Revolução tinha uma centelha de possibilidade, que não aconteceu ou que foi derrotada, e hoje temos um país muito complexo, como descreveu.

Também me interessava contar como a revolução é sempre traída. Como estava a dizer, numa revolução há os que vão e a fazem, os que conseguem, mas depois são deixados de fora e chegam os outros. “Vai, vai, sai do meu caminho, agora trato eu disto”, e depois fazem o que quiserem. Olha, eu estive na Nicarágua, em El Salvador e na Roménia. E a Nicarágua passou por uma guerra tão grande... Eu vi miúdos a lutar e a morrer, para que agora o filho da puta do Daniel Ortega tenha uma propriedade chamada Nicarágua. Porque é que todas essas pessoas lutaram e morreram para isso? Como em Cuba com Fidel ou como na Venezuela com Maduro — no final tudo acaba como aconteceu, como a Revolução Russa. Porquê? Porque as boas intenções são uma coisa. Tu lês “O Manifesto Comunista” de Marx e Engels, e lês e dizes para ti próprio “caramba, eles têm razão, é verdade”, e tens “O Capital” e pensas “tal e tal processo, a burguesia, é melhor aliar-se a ela, depois destruí-la, tal e tal, “ a ditadura do proletariado e a constituição de um estado, etc…”. Agora, ponham seres humanos a aplicá-lo. O que entra aqui? A ambição, a vaidade, a luxúria do ser humano. Portanto, é claro que as grandes causas acabam sempre por se perverter nas mãos da condição humana, porque nós somos como somos. É por isso que nenhuma revolução triunfa bem, porque no fim são os homens, as mulheres, que a levam a cabo, e esse é o problema, na medida em que é o ser humano que estropia aquilo que ele próprio organiza. É uma espécie de paradoxo, não é? Sim, sim, o ser humano é belo, brilhante e magnífico quando tem a grande ideia de mudar o mundo e depois o mesmo estraga a sua própria ideia e transforma-a em ditaduras e miséria. É assim a história da humanidade.

É bom que eles, os poderosos com dinheiro, saibam que se forem descuidados vão ter a garganta cortada. É bom, é higiénico, é saudável. Caso contrário, se souberem que se podem safar, não há nada que os impeça. O medo é bom. Quando se perde o medo, estraga-se tudo. Temos de ter medo, porque faz-nos agir melhor”

A sua tese parece ser que não acredita no resultado das revoluções, mas acredita que têm de acontecer. É essa a sua trágica ironia, de que fazem parte do motor da história?

Sem dúvida, é claro. Por outras palavras, o que não é possível é conformarmo-nos. Não se pode aceitar que estejamos aqui [no hotel] enquanto há pessoas num bairro marginal a viver com menos de 500 ou 600 euros. Isso não pode acontecer, tem de mudar. Portanto, é normal e é bom que isto aconteça porque é bom que as pessoas tenham medo. É bom que eles, os poderosos com dinheiro, saibam que se forem descuidados vão ter a garganta cortada. É bom, é higiénico, é saudável. Caso contrário, se souberem que se podem safar, não há nada que os impeça. O medo é bom. Quando se perde o medo, estraga-se tudo. Temos de ter medo, porque faz-nos agir melhor. Por isso, não importa se falharmos mais tarde; o facto de os seres humanos sonharem em mudar o mundo, sonharem em pendurar o tirano no candeeiro da rua, cria momentos muito bonitos na história da humanidade e é necessário. Olha para o 25 de Abril, conseguem imaginar como foi esse dia aqui? 

Ainda não tinha nascido!

Eu trabalhava como jornalista, estava no Médio Oriente quando o povo veio para aqui, os soldados na rua com os cravos, o povo estava lá. Esse momento de glória foi estragado como tantas coisas são estragadas porque chegaram as pessoas do costume, mas nesse momento bonito.... A humanidade precisa desses momentos bonitos para ter fé, senão seríamos todos sombrios, tristes e derrotados de antemão. É preciso tentar; mesmo que falhemos, temos de tentar.

“Há uma batalha que a humanidade perdeu. Sabemos agora que não há esperança”

A Revolução Mexicana iniciou-se em 1910 e terminou em 1920 (ou 17). Por incrível que pareça, ainda há pessoas vivas desse tempo, ou seja, não é tão distante assim. No entanto, a hipótese de revolução ou de mudança sim. Hoje estamos mais imobilizados que nunca?

Sim, há uma batalha que a humanidade perdeu. Sabemos agora que não há esperança. No início do século XX, ainda havia esperança de que o mundo mudasse. Até mesmo palavras como comunismo e fascismo ainda não tinham mostrado o seu lado negro. Ainda havia pessoas honestas a pensar “que diabo, comunismo, fascismo, tal e tal…”. Agora, quando dizemos fascismo, isso significa Auschwitz, nazis, etc… Mas nessa altura isso ainda não tinha acontecido. Havia pessoas que acreditavam que estas eram soluções. Havia uma espécie de, digamos, inocência universal, uma esperança de que os “ismos” — o comunismo, o fascismo, o anarquismo, o socialismo, o que quer que fosse, a revolução, a luta — mudariam o mundo. Agora sabemos que não mudaram, sabemos que todos os “ismos” acabam em gulags, em Auschwitz, em cadeias, em prisões e em ditaduras e em canalhas a ganhar dinheiro à custa dos outros. Assim, perdemos, digamos, a inocência que nos permitia sair à rua com vontade de mudar o mundo. Agora, se saímos à rua, é para nos vingarmos dele. Agora, a revolução que será a revolução dos desesperados.

Revolução
Revolução

Livro: "Revolução"

Autor: Arturo Pérez-Reverte

Editora: ASA

Data de Lançamento: setembro de 2024

Preço: € 22,90

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Não há um projecto?

Nem existe uma ideologia. Não há futuro. Trata-se de destruir o que é injusto e o que nos está a lixar. Vai ser muito interessante. Eu não vou ver porque estou a chegar ao fim, mas vocês vão ver. Vão ver pessoas a arder e a destruir, não para o bem, mas por vingança. E isso vai ser um processo, vai ser a grande vingança da história, é o que vai ser.

Está a fazer recordar aquela espécie de maldição chinesa: "desejo-te tempos muito interessantes".

Sim, serão muito interessantes. Tudo isto arderá, e não será para fazer aqui uma escola, nem um hospital, nem um colégio. Não, é para destruir e, por vingança, fazer as coisas desaparecer. É esse o futuro. Vai ser muito interessante.

Desde 2021 que vai escrevendo crónicas chamadas História da Europa no XLSemanal. Antes tinha escrito sobre a História de Espanha. A atualidade e o rumo europeus são algo que o preocupam?

Tenho quase 73 anos, já não estou preocupado. Tive uma vida óptima, passei por uma excelente etapa da Europa, a melhor. Políticos competentes — comunistas como Berlinguer em Itália, à direita como De Gaulle em França, Adenauer, Churchill… Vi Papas como Paulo VI e João XXIII — não como este, o argentino, que é um palhaço, um demagogo e do mais falso do que há. Este tipo traiu o seu povo, quando a ditadura militar prendeu os padres na Argentina, este sacana não os defendeu, virou as costas e não sabia de nada. Agora anda por aí assim, mas toda a gente sabe. Por outras palavras, o mundo de hoje tem o que merece. Quer dizer, eu tenho esta idade e digo a mim mesmo “não vou estar aqui”. A minha filha tem formação, é historiadora e trabalha no fundo do mar, é arqueóloga subaquática, e fala também sete línguas, está altamente preparada para enfrentar o mundo que aí vem. Eu não vou lá estar. Não estou preocupado com nada. Agora, seria interessante estar à janela com um copo de vinho a ver Roma a arder e os bárbaros a saquear a cidade. Às vezes sinto-me como esse romano à janela... e as pessoas dizem “oh, que horror!”. Claro, mas o que é que esperavam? É normal que isso aconteça. Os próprios romanos aliaram-se aos bárbaros também para destruir uma cidade injusta. Pensaram que o navio era insubmersível? Pensaram que esta ia ser a orquestra que ia estar sempre a tocar? Não é. Portanto, há uma espécie de vingança da história e o que lamento é talvez não estar aqui para vê-la.

“Não sou um marciano nem vivo numa torre às escondidas. Não sou um reacionário que grita da janela 'o mundo inteiro é mau'. Não, não, o mundo é ótimo! Há mulheres bonitas, há homens interessantes, há coisas novas maravilhosas, há tecnologias excelentes e muito úteis. Acho que isso é ótimo. Não me escondo no meu passado; o que acontece é que eu uso o passado e o presente, mas vivo no meu mundo”

Afirma-se como um escritor à moda antiga, “old fashioned”, e os seus livros seguem também esse recorte clássico. No entanto, tem os pés bem assentes no século XXI, fez um podcast e é presença ativa na rede social X…

Claro, vivo no meu mundo. Não sou um marciano nem vivo numa torre às escondidas. Não sou um reacionário que grita da janela “o mundo inteiro é mau”. Não, não, o mundo é ótimo! Há mulheres bonitas, há homens interessantes, há coisas novas maravilhosas, há tecnologias excelentes e muito úteis. Acho que isso é ótimo. Não me escondo no meu passado; o que acontece é que eu uso o passado e o presente, mas vivo no meu mundo. A minha literatura é “old-fashioned”, como dizes — e mesmo quando me visto, sou muito “old-money”, visto-me de uma forma mais clássica, com um casaco, etc. Mas não vivo de costas para o mundo, não sou um inimigo do mundo, gosto dele, é divertido — só que tento ser lúcido, manter os olhos abertos, não ficar atordoado nem me deixar envolver de forma absurda e perigosa por um mundo moderno. Aceito a modernidade, mas não me deixo seduzir, enlouquecer ou alienar por ela.

Portanto, não vive numa torre de marfim.

Não, não, de todo. E a verdade é que há autores que têm leitores mulheres, homens, idosos, etc… Eu tenho leitores em todas as áreas, tanto me leem pessoas de 80 anos como jovens de 18 anos, porque eu não tenho um só registo, movo-me em todo esse território.

Conta em entrevistas como herdou duas bibliotecas dos seus avós, uma com clássicos e outra com thrillers e policiais. Podemos afirmar que a sua escrita é uma síntese das duas?

Para mim, não existe alta e baixa literatura. Cresci com duas bibliotecas e para mim Agatha Christie era tão importante como Dostoievski, Cervantes como Raymond Chandler ou Dashiell Hammett. Portanto, claro, desde criança que tive essa mistura e a literatura foi um lugar amplo onde cabia tudo: o que nos diverte, o que nos faz pensar, o que nos intriga, o que nos muda o coração, muitas coisas. Por isso é que nunca tracei linhas e que a minha literatura envolve as duas coisas. Nos meus livros há conceitos sérios e profundos e há também coisas que são divertidas, aventureiras, cheias de ação. E aprendi tudo isso na literatura. É por isso que tenho a sorte de ter um vasto leque de leitores em muitos países.

“Há, digamos, um território Reverte, mas altera-se consoante as circunstâncias, ou seja, estou sempre a mudar os romances. Sou um escritor muito coerente, muito fiel a mim próprio nesse sentido”

Não diria que a sua literatura se possa considerar literatura de género, mas…

...a minha literatura toca em muitos géneros. Por exemplo, o meu último romance em Espanha chama-se “El problema final”, é um romance policial puro e clássico. O que vem a seguir, “A ilha da mulher adormecida”, é um romance de aventuras passado no Mar Egeu. Por outras palavras, há uma série de constantes nos meus romances. Um certo tipo de mulher que me interessa muito, um tipo de herói que me interessa muito também. Há, digamos, um território Reverte, mas altera-se consoante as circunstâncias, ou seja, estou sempre a mudar os romances. Sou um escritor muito coerente, muito fiel a mim próprio nesse sentido.

Ia fazer-lhe essa pergunta, mas antes estava a perguntar-lhe sobre literatura de género, porque criou uma editora mais dedicada aos livros de aventura, a Zenda. Sentiu que é um género literário um pouco negligenciado?

Sim, e no entanto cria leitores. Quero dizer, não se pode dar a um miúdo “A Cartuxa de Parma” ou “Crime e Castigo”; ele vai dizer “não, isso não”. Temos de lhe dar livros que o incentivem, como “A Ilha do Coral” ou os Robinson Crusoé, esse tipo de obras. Mas bem, digo que a Zenda surgiu porque é uma espécie de cooperativa entre amigos. Apercebi-me de que, nos eventos literários e culturais espanhóis, só apareciam os que pertencem à sua ideologia ou os que são bem conhecidos. Um jovem autor que está a começar, que não tem nada disso, ninguém aparece. E nós criámos a Zenda para dar espaço a todo o tipo de autores, desde a alta literatura ou os grandes autores até aos autores desconhecidos, e estamos a ir bem. A Zenda está, neste momento, entre as revistas digitais culturais espanholas mais influentes. E dentro da Zenda decidimos criar um selo editorial para aqueles romances que já não se leem, que já não se publicam, mas que são romances que formam leitores. Romances como os do Fantômas... Já leste Fantômas?

Maria Francisca Gama junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 24 de outubro, uma quinta-feirapelas 21h00. Consigo traz o seu mais recente livro "A Cicatriz", editado pela Suma de Letras, chancela da Penguin Random House.

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"A Cicatriz" é o segundo livro de Maria Francisca Gama e vai já na 7.ª edição, com mais de 25 mil exemplares vendidos e um fenómeno nas redes sociais, em particular no TikTok.

Não, não posso dizer que tenha lido... 

É divertidíssimo, são romances muito engraçados. Ou “A Ilha do Coral”, que é um romance de aventuras maravilhoso... “As Quatro Plumas”... Quisemos trazer de volta romances clássicos de aventuras que já ninguém lê. É isso que estamos a fazer e está a correr muito bem, estamos muito satisfeitos com isso.

Apesar de perder-se em parte na tradução, parece ter tido um forte cuidado na transposição de uma certa oralidade mexicana para o livro. Que trabalho é que isso implicou?

O romance está escrito em espanhol mexicano, não em espanhol europeu, com palavras distorcidas e por aí fora. Por isso, como eu sabia que seria difícil para os tradutores — imagine um tradutor japonês ou russo, claro que ficariam loucos com isto — foi por isso que eu fiz um glossário de palavras, uma espécie de dicionário de mexicano e todos os editores receberam-no. O editor e o tradutor portugueses receberam esse glossário e aplicaram-no ao romance, ficou muito bem traduzido. É um trabalho excelente, muito completo, é muito bom. Não é que se ponham aspas à volta das palavras que estão em itálico, é muito bom. É muito difícil, quer dizer, este é um romance que deve um grande mérito aos tradutores, sobretudo a este.

“Há um problema com a oralidade, um engano: pensa-se que se escreve como se fala como na rua. Não, a linguagem da rua não funciona na literatura. Temos de a transformar, temos de lhe dar um tratamento narrativo diferente, para que soe como nas ruas, mas não é como nas ruas”

Mas que trabalho é que teve de fazer para passar essa oralidade para os livros?

Sou um escritor profissional, escrevo romances há 35 anos, tenho experiência. Há um problema com a oralidade, um engano: pensa-se que se escreve como se fala como na rua. Não, a linguagem da rua não funciona na literatura. Temos de a transformar, temos de lhe dar um tratamento narrativo diferente, para que soe como nas ruas, mas não é como nas ruas. Lê-se em voz alta e diz-se “eles não falam assim na rua”, mas tem de funcionar, tem de criar no leitor a impressão de que é da rua. Isto também me acontece com os livros do Capitão Alatriste, são romances que publiquei sobre a Espanha do século XVII numa língua que não é a língua da época mas que tem o perfume. Isso exige um trabalho muito sério de adaptação da língua e isso, bem, é o talento ou o trabalho que se pode ter, ou o que quer que seja, não é? Mas requer muito trabalho, não é por acaso, não surge por si só.

Mas para este romance, foi ao México?

Sim, sim. Eu conheço bem o México, mas fui lá outra vez. Estive no norte, tomei notas, gravei conversas, escrevi palavras, perguntei aos meus amigos, etc… E fui tomando notas para que, quando introduzisse esses termos no texto, desse a impressão de que tudo era assim, mas não é. É criada artificialmente, mas parece ser a língua mexicana autêntica da época. Fiz isso lendo muitos livros da altura, romances da época, e pegando em glossários e palavras desse período.

“Não podemos julgar com os nossos critérios morais, éticos, sociais ou políticos, acções que não têm nada a ver com o nosso mundo. O México é diferente, por isso o que temos de fazer é ir lá e falar com eles, não olhar para o mundo daqui e dali”

A dado momento, o revolucionário Genovevo Garza diz o seguinte ao protagonista, que é espanhol: “há uma coisa que me está aqui atravessada, sabe?... Alguns louros vêm passear ao México à turista e olham como que de longe. Julgando o que veem ou o que julgam ver, não com os nossos olhos, mas sim com os deles.” O que é que é o México — olhamo-lo de forma inexata? 

É um erro muito ocidental, muito europeu também. É aplicar o nosso ponto de vista a tudo. A nossa visão é uma visão ocidental, civilizada, dos direitos humanos, da história europeia, das monarquias e das repúblicas. Mas é claro que no mundo, em África, na Ásia, no México, não é assim, por isso não podemos julgar com os nossos critérios morais, éticos, sociais ou políticos, ações que não têm nada a ver com o nosso mundo. O México é diferente, por isso o que temos de fazer é ir lá e falar com eles, não olhar para o mundo daqui e dali, e a visão é completamente diferente. Na minha vida de jornalista, habituei-me a fazer isso. Costumava dar-me com os palestinianos, os angolanos, os timorenses, os nicaraguenses, e vivia com eles, dava-lhes cigarros, conversava, comia e tentava ver o mundo como eles o viam. É a única maneira, senão não funciona. Por isso, como romancista, faço a mesma coisa. Ponho-me lá e tento ver o mundo como eles o veem. É por isso que Garza diz que é preciso ver o mundo não como um turista — “ah, que bonito! Vamos tirar uma foto!” — mas a partir do interior. Eu tento fazer com que os meus leitores vejam o mundo por dentro. Não quero que o meu leitor seja uma testemunha do espetáculo, quero que participe. Quero que o leitor se sinta dentro da luta de Celaya, que esteja com Geno Garza, que se apaixone por Yunuen, que vá. Quero que o leitor esteja lá dentro. É essa a minha intenção.

“As mulheres são muito importantes no meu romance. Mulheres poderosas num mundo de homens que lutam contra as regras feitas por eles com essas próprias regras”

Representa algumas das facetas menos positivas da sociedade mexicana da altura: o machismo, o papel subordinado — mas nem sempre — das mulheres…

É que havia de todos os tipos. As mulheres são muito importantes no meu romance. Mulheres poderosas num mundo de homens que lutam contra as regras feitas por eles com essas próprias regras. No romance, há três mulheres que são significativas. Uma é a guerrilheira, analfabeta. A outra é uma jornalista americana, com um olhar perante a situação. E a outra é a mulher da boa sociedade, que é uma sacana. O que ela quer é o casamento, quer estabilidade. Portanto, claro que são abordagens diferentes, mas são todas mulheres que lutam para desempenhar, digamos, um papel no mundo que lhes foi dado.

Tomou a decisão narrativa de não dar tanto destaque a Emiliano Zapata no livro, o que é curioso, porque Zapata é, de todas estas figuras históricas, é o único que ainda perdura fortemente no atual panorama político mexicano com o movimento zapatista.

Porque Zapata era mais honesto do que Villa. Zapata era realmente um revolucionário, Villa era um brigante, um oportunista — mas era com Villa com quem teria ido beber uns copos, rir-se-ia connosco, teria sido nosso amigo, percebes? Zapata era o índio, revolucionário, sério, trágico, sabia que o iam matar, tinha a morte pintada na testa. Portanto, é claro que Zapata era uma figura nobre no sentido revolucionário, Pancho Villa era um fura-vidas, um boémio, dormia com várias mulheres, era um tipo diferente. Portanto, é claro que, como figura nobre revolucionária, Zapata sobrevive, enquanto Pancho Villa é folclore.

“Sou um escritor feliz. E tenho amigos que são escritores e para eles é um horror, a página em branco, a amargura.... Eu só penso 'rapaz, muda de profissão. Cometeste um erro...'”

Não há muitos escritores com um ritmo de publicação tão incessante como o seu. O que o leva a continuar a produzir assim?

Gosto de o fazer, é a minha vida. É como brincar em criança. Quando era miúdo e via um filme, vestia-me de soldado, de índio, de cowboy, de tudo. E agora é a mesma coisa, é brincar. Todos os dias levanto-me para brincar. “Vou ser um guerrilheiro, vou ser um detetive”. É um modo de vida, faz-me feliz. Sou um escritor feliz. E tenho amigos que são escritores e para eles é um horror, a página em branco, a amargura.... Eu só penso “rapaz, muda de profissão. Cometeste um erro...”. E sou feliz, divirto-me muito, gosto muito. É verdade que também gosto mais da fase de preparação; escrever é mais mecânico, mais rotineiro, mais árido — mas a preparação de um novo romance, ir ao país, viajar para o sítio… O meu novo romance passa-se nas ilhas gregas, então ir à Grécia, estar lá e ver as coisas, as mulheres, os homens, tomar nota da comida, da luz, da cor, ler livros. É maravilhoso, é uma aventura diária.

É um pouco como uma revolução, tem um mundo de possibilidades à sua frente.

Exatamente. Além disso, tudo é possível e depois, quando acaba, dizemos “não, ainda posso fazer outra coisa”. Nunca se acaba, nunca se chega ao fim, fica sempre qualquer coisa, vamos ver se consigo fazer no próximo. Estou a desafiar-me. Há nisto uma parte boa, que é o facto de me obrigar a estar em forma, a estar lúcido. Não é estar ali, velhote, a ver televisão ou a ouvir rádio, ou só a ler. Não, não, obriga-me a estar vivo, a ver, a falar contigo, a viajar e a observar os sítios. Obriga-me a ler, a ver filmes. Por outras palavras, obriga-me a viver. Mantém-me em forma. É um exercício pessoal muito interessante.

Não sei se esta expressão também existe em espanhol, “parar é morrer”.

Exatamente, é como pedalar numa bicicleta, se parares vais lixar-te todo. Bem, eu continuo a pedalar.