“Todas as cartas de amor são ridículas”, escreveu Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa, em 1935. O poeta português, de cuja vida amorosa se sabem poucos pormenores, teve uma relação — por duas vezes, com nove anos de intervalo — com Ofélia Queiroz. E foi esta mulher que tratou das mais diversas formas em cartas, todas elas num tom infantil de apaixonado: “Ophelinha”, “Meu amorzinho, meu Bebé querido”, “Meu Bebé-anjinho”, “Minha Nininha”.
Pessoa nunca assume propriamente um namoro, chegando a pedir o mesmo a Ofélia — “Não digas a ninguém que nos namoramos, é ridículo. Amamo-nos” — e há mesmo quem defenda que o poeta não seria realmente capaz de amar alguém. Mas não restam dúvidas de que era amado, o que é facilmente provado pelo número de cartas escritas pela mulher que dizia que ele, “ao andar, parecia não pisar o chão”: 270 cartas de Ofélia contra 51 de Fernando Pessoa.
Mas o que levava as pessoas a escrever cartas de amor? São fruto dos tempos, da distância, da inexistência de formas mais rápidas de contacto. A literatura portuguesa — ou, melhor dizendo, a correspondência privada transformada em literatura — é prova disso. Um exemplo possível, além de Pessoa, é o de António Lobo Antunes. Em D’Este Viver aqui neste papel descripto (que chegou ao grande ecrã como Cartas da Guerra, em 2016) estão agrupadas as cartas de amor que escreveu à sua mulher, Maria José, a “querida jóia” de Lobo Antunes, entre 1971 e 1973, aquando da sua presença em Angola, durante a Guerra Colonial.
Além de um retrato fiel dos dias da guerra e das histórias de pessoas por vezes esquecidas, o livro é essencialmente o espelho do amor — também com conotações sexuais — e da saudade de um homem pela mulher e pela filha que está para vir ao mundo. Esta compilação de cartas, organizada pelas duas filhas do casal apenas depois da morte de Maria José, permite, como descrito no prefácio, uma abordagem “literária, biográfica, [de] documento de guerra ou história de amor”.
Contudo, há quem diga que as cartas de amor têm os dias contados. As pessoas deixaram de se corresponder, não escrevem à mão e até os sentimentos são mais supérfluos. Mas será isso verdade? Embora os carteiros (ou, se recuarmos mais no tempo, os “moços de recados”) já não façam falta para entregar estas cartas, elas continuam a existir. Mas modernizaram-se, deixaram que a tecnologia chegasse ao amor — e o ajudasse.
A francesa Morgane Orton, responsável por uma editora que se dedica à publicação de correspondência de escritores e autora do livro Les SMS dês grands écrivains [Os SMS dos grandes escritores], acredita numa “segunda geração” de cartas de amor, nos telemóveis. E pretende prová-lo através da conta de Instagram Amours solitaires, onde divulga prints de mensagens, desde confissões puras e simples às mensagens mais atrevidas.
Num manifesto partilhado na página, a autora explica que “nas ruas, na televisão e na internet é dito que a carta de amor está morta, que as pessoas já não sabem escrever e que a palavra desapareceu em benefício da imagem. Mas todos os dias as mensagens circulam, isoladas na privacidade do telemóvel, e contradizem tudo isso da maneira mais notável. [A conta] Amours solitaires reúne-as e partilha-as para proclamar alto que não, a carta de amor não está morta: simplesmente evoluiu com os novos suportes que a tecnologia oferece. Talvez estejam ainda mais vivas, estendendo-se ao fluxo ininterrupto de trocas escritas que povoam o nosso quotidiano. E porque essa partilha é necessária num período em que a valorização do sentimento está a ser degradada”.
A conta — apresentada como contendo “cartas de amor modernas em 2.0” — contém já mais de 300 publicações e é seguida por mais de 58 mil pessoas. De frases mais simples (“Eu penso em ti 60 vezes por minuto”) a mais complexas (“Tu és forte de qualquer maneira. Um simples movimento dos teus lábios, um simples sorriso, e já está, desarmas imediatamente todos os argumentos que eu tinha preparados (…) Talvez tenha acabado de me perder”), há de tudo um pouco. Com espaço para sexting [troca de mensagens digitais com conteúdo sexual], recorrendo a palavras, imagens ou até emojis.
No fundo, a ideia é só uma: o amor não morreu, as cartas também não. A paixão existe, leva à troca de palavras por vezes descabidas e agora as mensagens voam quais setas de cupido através dos telemóveis, seja por SMS ou recorrendo às redes sociais. O que faria Fernando Pessoa se vivesse no século XXI e namorasse Ofélia com recurso a um telemóvel? E como tinha facilitado o Skype a relação à distância entre Lobo Antunes e Maria José? São estas as perguntas que surgem, fica a certeza de que o amor, esse, vai sendo reinventado também pela tecnologia.
Comentários