Lembro-me de dois livros que gostava de ler quando era pequeno. Um era Hitopodesha e o outro Panchtantra, as versões indianas das Fábulas de Esopo, se preferirmos, escritos há cerca de dois mil anos. Estava à procura de uma história específica que pudesse partilhar convosco quando deparei com algo semelhante em You Don’t Eat a Lion Doesn’t Mean the Lion Won’t Eat You*, de Udaylal Pai. Parafraseei um pouco (hum… bastante, para ser honesto; quase totalmente, na verdade):

Era uma vez, numa certa aldeia, um menino que se passeava sozinho à beira-rio quando ouviu gritos desesperados de socorro.

– Por favor, ajudem-me, salvem-me, alguém, por favor, libertem-me – gritava um crocodilo. Abanava a cauda, bastante enleada numa rede, como os humanos nos seus desejos.

O menino queria ajudar o pobre crocodilo, mas mantinha-se cético:

– Se eu te ajudar – disse ele –, hás de me comer assim que te vires livre.

O crocodilo verteu umas lágrimas e disse:

– Como posso comer a pessoa que salvou a minha vida? A minha espécie não saboreia o seu salvador. Prometo que nem sequer te tocarei e que ficarei eternamente em dívida para contigo.

O menino teve pena e começou a cortar a rede. Mal a cabeça do crocodilo se livrou da rede, como seria de esperar, agarrou a perna do menino com as suas mandíbulas e disse:

– Há dias que estou a morrer de fome…

– Mas que Diabo! – gritou o menino. – Seu maldito crocodilo, é assim que retribuis a minha bondade?

– O que é que eu posso fazer? O mundo é assim mesmo! Tal como a vida!

– Isto é tão injusto! – gritou o menino.

– Que queres dizer com «injusto»? Pergunta a qualquer um, e todos te dirão que é assim que o universo funciona. Se me provares que estou errado, deixo-te ir.

O menino viu um pássaro empoleirado numa árvore próxima e perguntou-lhe:

– Achas que as ações do crocodilo são justas? É assim que o mundo funciona: pleno de injustiça?

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

Subscreva a Newsletter do É Desta que Leio Isto aqui e receba diretamente no seu e-mail, todas as semanas, sugestões de leitura, notícias e acesso a pré-publicações.

O pássaro fêmea tinha assistido a todo o episódio, pelo que rapidamente respondeu que o crocodilo tinha razão. A bondade nem sempre é retribuída na mesma moeda. Ela, juntamente com o seu parceiro, passava o seu tempo a construir um ninho seguro para proteger os seus filhotes, mas tudo isso seria essencialmente em vão porque as cobras haviam de aparecer e engolir os ovos, deu-lhe a saber. Sem dúvida, rematou, o mundo não era um lugar justo.

– Ouviste o que ela disse, pequeno – disse o crocodilo, apertando-lhe ainda mais a perna esguia. Deixa-me comer-te…

– Espera… – O menino viu um velho burro a pastar à beira do rio e fez-lhe a mesma pergunta.

– Infelizmente, o crocodilo tem razão – disse o burro. – Eu sou um burro, toda a gente pensa que sou um tolo e, não obstante, até eu sei que este mundo é tudo menos justo. Estão sempre a acontecer coisas más a pessoas boas. Quando eu era novo, o meu amo transportava roupa suja no meu lombo e arrancava-me o máximo de trabalho. Servi-o fielmente durante anos. Agora que estou velho e fraco, abandonou-me, dizendo que não me pode alimentar. Então, sim, o crocodilo tem razão. Existe grande injustiça, desigualdade e deslealdade.

– Já chega – disse o crocodilo ao menino. – Estou a salivar, não aguento mais. Reza a tua última prece, se quiseres.

– Espera, espera – insistiu o menino. – Só uma última vez, deixa-me perguntar àquele coelho. Dizem que à terceira é de vez.

– Visto que me salvaste, vou dar-te uma última oportunidade.

Ao ser-lhe feita a mesma pergunta, a resposta do coelho diferiu completamente da do pássaro e do burro.

– Mas que disparate completo! Não é nada disso – disse o coelho. – O mundo é um lugar perfeitamente justo.

– O que é que estás para aí a dizer, seu coelhinho idiota! – resmungou o crocodilo, com a perna do menino ainda presa entre as mandíbulas.

– Claro que este mundo é um lugar injusto. Olha para mim! Para começar, fui apanhado na rede, e não por culpa minha. – Pareces um homem a tentar falar com paan (folha de betel) na boca. Não consigo perceber nada do que dizes, fala como deve ser!

– Sei muito bem o que estás a tentar fazer! Eu abro a boca para falar como deve ser e o menino foge.

– Mas tu és estúpido ou quê? – perguntou o coelho. – Esqueceste-te da força que tens nessa cauda? Se ele tentar fugir, basta um golpe e fica morto. És o mais poderoso das redondezas!

O crocodilo caiu neste falso elogio e abriu a boca para continuar a discussão.

O coelho gritou:

– Corre, pequeno, corre! Não fiques aí especado! – E o menino não esperou que ele o repetisse.

O crocodilo estava louco de raiva.

– Seu trapaceiro! Tiraste-me a minha comida. Isto é tão injusto!

– Olha quem fala! – exclamou o coelho, mordiscando uma cereja que tinha caído da árvore.

O menino correu para a aldeia e reuniu todos os homens.

Chegaram com as suas lanças e espadas e mataram o crocodilo. O cão de estimação do menino, que os acompanhava, avistou o coelho e foi atrás dele.

– Para! Para! – gritou o menino, tentando apanhar o cão. – Este coelho salvou-me a vida. Não o ataques.

Mas já era tarde demais, o cão havia já enterrado as suas presas no pescoço do coelho, que não passava agora de uma bola de pelo sem vida.

– Talvez o crocodilo tivesse razão, afinal – lamentou o menino. – A injustiça é a regra do mundo! Tal como da vida!

Depois de falar para milhares de pessoas, de ver o sofrimento de perto, sinto que seria ignorância da minha parte continuar a acreditar que existe uma saída para o sofrimento. Aqui, não estou a diferenciar entre dor (o que é) e sofrimento (o que pensamos que é). Buda proclamou que o sofrimento existia e que havia uma saída. Talvez. Os Vedas também dizem que se eu conseguir
manter um estado de equanimidade, se puder ter sempre presente a natureza impermanente e falível, até, deste mundo não sofrerei tanto.

As pessoas boas sofrem constantemente. Tanto que quase não existe uma correlação direta entre quão bom ou espiritual pode ser e a quantidade de sofrimento que pode ter de suportar na sua vida. Ser bom não o pode proteger de doenças físicas ou mentais se lhe sair essa lotaria genética, por exemplo. Ser bom não quer dizer que não pode ser atropelado por um camião ou por um condutor embriagado. Ser bom não influencia o valor das suas ações na bolsa de valores nem a vida dos seus entes queridos. Por outras palavras, a bondade não nos concede imunidade nem compensação por tudo o que podemos considerar não bom.

Então, a questão que surge é: porquê e para quê ser bom? Se a minha bondade não contribui em nada para aliviar o meu sofrimento (pelo menos não diretamente), para quê preocupar-me com toda essa questão da bondade e da gentileza? A resposta é muito mais direta e simples do que a própria pergunta. E é esta: ser bom é a nossa natureza inerente. Fomos concebidos para experienciar a felicidade quando praticamos o bem. Como tal, as pessoas são boas porque esse é o seu darma natural. A bondade,
e a sua prima amabilidade, dão-nos forças para enfrentar os desafios e dificuldades que esta vida nos traz com tanta regularidade como as estações.

Rezamos, meditamos, agimos com bondade, fazemos o bem porque é o que devemos fazer; a bondade é isto. É uma parte integrante de nós. Ter razão, estar certo nem sempre é melhor do que ser bom. Não podemos abrir mão da bondade porque ela nos dá força e resiliência. O que é ainda mais surpreendente é que as pessoas boas não conseguem deixar de ser boas só porque as recompensas não se fazem sentir. As pessoas boas permanecem, continuam a ser boas. Sabem que ser bom não é uma escolha. Pensemos em alguns dos maiores seres humanos. Recorreram à violência ou à transgressão só porque a bondade não parecia compensar?

Os nossos desafios testam-nos, mas as nossas atitudes moldam-nos. As nossas dificuldades não nos quebram; pelo contrário, são elas que nos fazem o que somos. Trazem para o exterior aquilo que temos dentro de nós. Como tal, as pessoas boas tornam-se melhores, não amargas, quando deparam com resistência.

***

O jovem Mulá tinha pouco mais de sete anos quando o seu vizinho o atraiu com dois dinares.

– Podes ir comprar duas chamuças ali à loja da esquina? – perguntou-lhe ele. – Podes comer uma e trazer-me a outra.

Dez minutos depois, Mulá voltou e disse:

– Aqui está o troco, um dinar. O senhor da loja só tinha uma chamuça; como tal, comi a minha. Obrigado.

Livro: "As grandes questões da vida"

Autor: Om Swami

Editora: Alma dos Livros

Data de Lançamento: 11 de janeiro de 2024

Preço: € 15,95

Subscreva a Newsletter do É Desta que Leio Isto aqui e receba diretamente no seu e-mail, todas as semanas, sugestões de leitura, notícias e acesso a pré-publicações.

Uma pessoa boa sofre da mesma forma que qualquer outra. Só porque alguém é um bom matemático ou um bom artista não significa que não possa adoecer. Pelo contrário, tal comparação é absurda. Da mesma forma, só porque alguém evoluiu espiritualmente, isso não quer dizer que ele ou ela se encontra fora do alcance das leis da Natureza. Ou, nas palavras de Udaylal Pai: só porque não comes um leão, isso não quer dizer que o leão não te coma a ti.

Então, isto significa que devíamos ser maus? Posso dizer que não está nas nossas mãos. Além do mais, em que é que isso nos pode ajudar? Afinal, o oposto de bondade também não o protege do sofrimento. Então, o que me protege, poderá perguntar. E eu respondo: a sua perspetiva, a sua atitude, a sua visão e as suas expectativas da vida. Quando estas se encontram alinhadas, podem existir desafios, resistência, dor, mas não sofrimento. Poderá estremecer, mas não chorará, poderá desmoronar-se, mas não será esmagado.

Quando tudo o mais falha, é apenas a sua bondade inerente que o ajuda a orientar o navio da vida em mares agitados. Mahatma Gandhi, Nelson Mandela, Martin Luther King e muitos outros antes e depois deles usaram este princípio básico para enfrentar as tempestades devastadoras com as quais depararam.

Não faz diferença se somos o menino, o crocodilo, o burro ou o coelho; não existem garantias na vida. E talvez seja esta incerteza o que torna a nossa vida uma aventura tão grande.

Bondade é oração, é meditação. Na verdade, bondade é Deus. Seja bom.

* Não comer um leão não significa que o leão não o coma. [N.T.]