Capítulo 1
As santas conhecem as mulheres pelo nome de solteira, ouviu dizer quando menina, muito antes de se casar e entender o porquê. Assinou, então, Ambrosina Lima, como há doze anos, a caligrafia caprichada, Santa Rita, acuda, Dona Praxedes precisa gostar de Frederico – depositou o pedido debaixo da santa de semblante sério e grinalda de flores, no altar do canto da parede. Logo veio a inspiração: ensine um pedacinho da salve-rainha ao menino. Sim! Dona Praxedes gostará de ouvi-lo recitar o hino, vai ver como Frederico é bom de oração. Dirico, vem cá, repita com a mamãe: salve, rainha, mãe de misericórdia, doçura e esperança nossa, salve! Que fosse ensaiando antes de sair de casa, Lá, você peça licença e reze, bonito e sem gaguejar, sua dinda Praxedes vai ficar satisfeita – ajeitou-lhe a correntinha no pescoço e a gola. Frederico é menino são; mérito dela e somente dela mesma, o de criar um filho asseado e devoto justo ali, naquele rancho, onde se xinga e se cospe no chão. Um filho saído o menos possível ao pai, o bruto a suar e a resmungar contra a luz da janela, cortando os pelos do nariz e da barba com a única tesoura de costura da casa, os tufos deixados cair no chão, como caiu o sobrenome dela mesma depois de passar a usar o Bomtempo do marido. Santa Rita, acuda. Dirico, filho, endireite as costas, vamos, postura, elegância. Coitado. Está na idade de pernas e braços estabanados, o pomo-de-adão querendo saltar. Ficaria um príncipe de terno, se pudessem vesti-lo com um, mas Dona Praxedes com certeza reconhecerá suas qualidades dentro da calça de brim, costurada com sobra na bainha para melhor se aproveitar nos meses seguintes. Frederico será alto, vê -se pelas canelas compridas, sim; Dona Praxedes valoriza estatura, diz ser marca da família, Lima tem tamanho e tutano, ela gosta de falar. Pois aí está, Frederico será um rapagão. Agora, tutano... Ele demora a aprender, é verdade, um tantinho lerdo, mas para o seminário passa de bom, ah passa, ela mesma já conheceu padres nem tão inteligentes. E Frederico tem disposição, agora mesmo está ensaiando a salve-rainha, pronto. Basta explicar devagar, com as palavras certas, mandar repetir, perguntar se entendeu. Fez isso, aliás, com o tema de maior importância, dias antes e várias vezes:
– Frederico, você não bote reparo nas filhas de Dona Praxedes, de jeito nenhum, a dinda pode não gostar de você largando os olhos nas moças. E uma delas é meio escurinha de pele, não se parece nada com a mãe, nem com a irmã. Você não estranhe, nem fique olhando, pelo amor, entendeu Dirico?
– Sua mãe está dizendo que a Praxedes tem uma filha encardida, Frederico. – Julião Bomtempo cuspiu no chão.
– Julião! E se o menino diz isso lá? Dirico, ignore o seu pai, não repare... Mas também não desvie os olhos, não fica bem.
– Entendeu sua mãe? Olhe sem olhar. Vamos, temos hora pra chegar no Cantagalo e eu não vou exigir do meu cavalo, não, que
ele não é alugado.
Frederico não se lembrava de haver visto a madrinha. Punha nela (1) o nariz do Cristo pendurado atrás da cama e o cheiro dos lençóis trancados no baú, tudo presente de Dona Praxedes. Sua mãe nunca quis gastar o enxoval dentro destas paredes de barro, papai caçoava e fingia tropeçar no baú, às vezes o chutava, deixava mamãe furiosa. Quando sem o pai em casa, ela abria a arca, tirava as peças uma a uma e passava com o ferro quente, espirrava água de flor; depois guardava as brancuras de novo, chorava. Esses são a banda pobre da família do Cantagalo, ouviu cochicharem no povoado quando ele e o pai entraram na capela. O padre havia mandado chamar, trazia um saquinho com moedas e um bilhete de Dona Praxedes para os parentes do rancho. Frederico nunca esqueceria o reflexo das letras nas costas do papel, um ninho desfeito, vivo na voz do padre, Que nosso Frederico se faça homem em Deus. Dona Praxedes pretende pagar o seminário pro meu menino, o senhor vigário não acha? Deus queira, Bomtempo, será providencial. Providencial. No rancho, o pai repetiu a palavra à mãe, Frederico quis saber o significado. É angu com torresmo gordo, não vê o tamanho da pança do Padre Cirilo... Ambrosina, Dona Praxedes podia fazer a bondade, madrinha é pra isso mesmo, eu só faço trabalhar, trabalhar, e você, coitada, se foi bonita um dia ninguém acredita, sua pele acabou no vapor do tacho de doce, sua prima devia ter pena de nós. Concordo, Julião, o menino não é obrigado a expiar eu ter me casado com você.
Ambrosina se sentou para escrever a resposta. Julião, ao lado, não lia nem escrevia, quis ditar uma carta. Uma carta exigindo ajuda, afinal eram parentes, precisavam de muito além de moedas, Uma humilhação mandar esmola pelo padre, Ambrosina. As moedas são para Frederico, Julião. Pois já se foram nas suas encomendas, essas suas linhas de costura são caras, mulher; aproveite, escreva aí, queremos jantar no Cantagalo, talvez pernoitar, peça!, não seja orgulhosa, descalce suas luvas e conte como andamos precisados de dinheiro, é sua prima. Ambrosina redigiu em silêncio, as ideias de Julião afastadas sem direito à peneira, feijão carunchado. Conhecia a prima o suficiente para jamais mostrar ressentimento, para não querer desperdiçar sua boa vontade com empréstimos, nem convites para comer. Firme na intenção maior, apelou para o simples: Frederico quer pedir ele mesmo a bênção à senhora, beijar sua mão, não fala em outra coisa.
Capítulo 2
Atrás do casarão, as serras penteadas de pés de café, fileiras e fileiras. Frederico nunca havia visto uma casa com tantas janelas. Nem ladrilhos, uma beleza aquele chão desenhado, fresco de sombra; desejou viver ali, deitado no alpendre da madrinha, a vista para a gameleira do terreiro, tão alta. À porta do casarão, talhada de folhas e cruzes, o pai cochichou, É brasão, Frederico, toda casa rica tem um. Então os ricos riscam as suas portas? Não riscam eles mesmos, burro, mandam riscar. Demoravam a abrir, os dois de pé, retos em suas camisas suadas, Frederico com o corpo sentido da viagem na garupa do pai, segurando o embrulho com os pãezinhos de queijo, mamãe pediu muito para não deixar cair, a madrinha gostava. Como pediu para não esquecer a oração ensinada hoje cedo, mas as palavras afogavam nos pensamentos, fiapos de carne na sopa: até achava a pontinha da reza, mas não a pescava a tempo, desaparecia. A porta abriu em par, dividindo folhas e cruzes, uma voz de mulher veio do escuro da casa, Entrem ligeiro, senão me trazem o calor pra dentro. De cabeça baixa, Frederico viu a barra preta de um vestido, as sapatilhas de tecido; no rancho, a mãe usava sandálias, os dedos expostos. A mulher pegou-o no ombro, Pois aqui estou, não queria tanto me pedir a bênção? Frederico ficou imóvel diante da mão disposta na frente do seu rosto, tão diferente das da mãe torcendo o soro do
queijo, abanando a brasa do fogão. A mão forçou contra seus lábios, Vamos, se não te ensinaram é assim que se pede bênção, pronto, feito!, Deus abençoe. São os pães de queijo de Ambrosina? Andava doente de vontade de um destes. Fia! Fia!, berrou para a cozinha, Se estiver dormindo no fogão, acorde, preguiça, passe um café para as visitas, ligeiro. Perguntou a Julião Bomtempo se seguia as instruções sobre a lavoura que ela enviou pelo Padre Cirilo; se sim, estava certa de haver dado algum rendimento dessa vez. E você, meu Frederico, quase homem! Achou-o bem arrumado, apesar das calças justas demais, Em breve não servirão na largura, de nada adianta esse tanto de bainha, mas o corte está impecável, com certeza, Ambrosina sempre teve talento pra costura, era uma moça de qualidades – falou da mãe de Frederico como as pessoas falam dos mortos. Quis ver a correntinha escondida dentro da camisa e aprovou a medalha de ouro, que a Virgem zelasse pelo afilhado e por todas as crianças do mundo; das gavetas do móvel guardador, tirou um punhado de moedas, empurrou uma a uma para dentro do bolso apertado da calça, Um presente da sua madrinha, só pra você. Queixou-se outra vez do calor, por que ainda estavam de pé diante da porta? Que fossem para a sala, sem cerimônias. A outra visita, o compadre Rabelo, contava um caso justo quando chegaram e ela não se aguentava para saber o final.
Dona Praxedes, chamavam-na dona porque não sabiam como chamar um barão do café que não fosse homem. Baronesa é título de esposas, não faz jus às saias da viúva do Cantagalo, as únicas saias nas reuniões do baronato para discutir os rumos das lavouras do Alto Paranaíba depois do garimpo de diamantes, dor de cabeça para todo dono de terra, as pedras, um tormento. Começou quando um garimpeiro de ouro, tonto de cachaça e de sol quente, achou um brilhante na areia do rio. Havia muita pedra bonita de fundo de rio, mas, como aquela, não, translúcida de guardar o sol. Ficou com a pedra, depois descobriu-a resistente, boa para bater bife, era o cozinheiro do acampamento. Um forasteiro comprador de ouro reparou na pedra, perguntou se vendia. O garimpeiro, outra vez bêbado, atirou a pedra para cima, disse que não valia um quiabo assado. O homem pegou a pedra no ar, insistiu em pagar. Desconfiaram no acampamento. Conversa aqui e ali, combinaram de surpreender o comprador em frente à cruz, onde hoje é a capela, quando ele estivesse de saída do povoado. À bagunça se juntou um frade, onde já se viu deixar forasteiro ir embora com o que é nosso, era essa a toada da mente. Mas o homem não passou por ali, nem por outro lugar, sumiu, ele e seu cavalo, um mistério. Uns dizem que nunca saiu do acampamento, outros que nunca houve esse homem. Para Dona Praxedes, não houve nem diamante, conversa de garimpeiro, quando muito um cristal, tão sem valor quanto sem tamanho. O fato, disso está certa, é que quem não segura a língua vira escravo da palavra; a notícia correu e em pouco arriou gente de toda banda por ali, o povoado de Santa Rita agora chamado de Capelinha do Chumbo, pois diziam também que houve bala e sangue pelo tal diamante na frente da cruz. Uma injustiça, terra de gente honesta levar tal nome. Tudo por causa da danação dos diamantes. Até então apareciam por ali atrás de ouro, e isso havia mesmo, vez ou outra se achava uma pepita no leito seco, xibiuzinho de nada, não vale nem a baeta, não faz ninguém perder o juízo e abandonar a lavoura. Inventaram esse diamante, Dona Praxedes tinha certeza de que foi invenção, e a paz acabou; tiveram de trancar as portas e os cavalos e os galpões e as moças em casa. Os libertos e os filhos dos libertos deram de ficar atrevidos. Vou para o garimpo, diziam, e largavam o trabalho na terra, gente sem gratidão; as libertas e filhas das libertas, então, se já andavam sonsas depois da abolição, começaram a se achar donas dos casarões, sim, a comida salgada em excesso por pirraça, a roupa branca já não se lava como antes. As baronesas estão todas muito preocupadas, Dona Praxedes sabe das queixas, pois tem essa vantagem aos outros barões, a de gostar de opinar sobre as miudezas de casa. Às comadres, recomendava resignação aos novos tempos, repetia o aprendido com o pai barão: com os libertos é jeito, não é força, é jeito. Muito se resolve escolhendo uma empregada de maior confiança, uma para ganhar agrados e em troca vigiar as outras. Um corte de tecido, uma leitoa nos dias de festa, apaziguam como nem se pode imaginar. Na falta dos ferros, a simpatia, a conversa. Mandar esse povo à igreja, exigir recato, respeito, guiá-los para o bem, Deus quer assim. O povo na lavoura, onde tem de ser, longe do garimpo. E à toda visita Dona Praxedes maldizia uma vez e outra os diamantes, afirmava adoecer só de se lembrar da história do brilhante no rio e de tudo o que veio depois, apesar de repetir o caso a quem quisesse ouvir. E se o fazia na companhia do Velho Rabelo, então, visita assídua do casarão, surgiam detalhes do que Dona Praxedes tinha certeza de não haver acontecido: o povoado armado de espingarda, facas e enxadas esperando o capangueiro de ouro passar; o frade, com uma cruz do tamanho de um menino nas mãos, foi o primeiro a dar na cabeça do forasteiro. No bate e corre sumiu a pedra, foi. Não era diamante, concordava com Dona Praxedes, pois confiava muito no julgamento da sua comadre, mas dizem, o povo fala além da conta, venderam a tal pedra no Rio de Janeiro, a danada viajou o mar, foi parar na coroa da rainha da Inglaterra, diamante dos graúdos.
Frederico achou o Velho Rabelo cinza, idêntico ao São Pedro do oratório de Dona Praxedes, de barba e dedo erguido na posição de ensinar; ficou com um rastro de fumo nos lábios depois de beijar a mão do velho, como a madrinha mandou. A sala com o oratório e as cadeiras para as visitas abria para outra ainda maior, com uma pintura de parede toda: um homem de barba vermelha e sua mulher, sentados, cercados de moças e meninas de todos os tamanhos, muitos laços e vestidos. Frederico não sabia que se pintavam pessoas, só santos e anjos. A madrinha seguiu o olhar: Frederico, vê se adivinha quem sou eu aí no quadro.
Até agora, Frederico não havia tido coragem de encará-la. Alguns anos depois, constataria que Dona Praxedes é pequena e de estrutura frágil, mas, no dia da visita, os ombros duros, o corpo dentro do vestido preto, apresentaram -se com a mesma densidade da porta com o brasão. Não queria contrariá-la por nada. Analisou cada molecota, devagar. Eliminou primeiro as de cabelo vermelho, depois as de semblante alegre. Ficou entre a menorzinha de sobrancelhas cismadas e outra de mãos dadas com o homem de barba, apontou para esta.
– Como! Sim, sim, certíssimo, esta sou eu! Todos erram, pois eu era a caçula até então, mas sempre fui a mais alta.
– É o colar, senhora madrinha.
– Colar? Uso colar na pintura?
– A menina está olhando para o colar da mãe. É igual a este da senhora madrinha.
– De fato, é o mesmo camafeu. – Dona Praxedes cobriu o colo com o xale, num reflexo.
Velho Rabelo considerou Frederico muito sagaz. Julião Bomtempo se animou, disse que não é porque Frederico é seu filho, nunca viu um menino com a vista tão boa, se fosse padre conseguiria ler letrinhas pequenininhas em latim.
– Sem dúvida terá futuro, o seu menino. – Dona Praxedes bocejou, queixou -se do calor. Mas continuou envolta no xale, não quis deixar abrir as janelas. Se o fizessem agora passavam mal de calor à noite, com certeza, no Cantagalo só se abrem as janelas quando refresca, depois de entardecer, aprendeu com seu pai o barão a fazer assim. Além do mais, a claridade dá dor de cabeça, prefere a penumbra. Julião concordou, disse que no rancho também faziam dessa maneira, embora tivessem só uma janela. E o pior é a falta de chuva, continuou depois do silêncio de Dona Praxedes, não chove nem a terra flore como antes, disso estava certo, e os empregados hoje em dia custam ouro, quem tem lavoura a cuidar sozinho como ele sofre; trabalha, trabalha e ainda precisa contar com a ajuda dos parentes e amigos.
– Deus põe chuva a quem molha a terra com suor e fé – Rabelo ergueu o dedo.
– Compadre Rabelo, o senhor foi inspirado! Verdade!
O homem trabalha e Deus abençoa, sim! Deus ajuda os merecedores, disso eu estou certa, creio na Providência. Meu pai o barão dizia, de trabalho não se queixa, trabalho se agradece.
– Seu pai o barão, Dona Praxedes, eu e Ambrosina concordamos, nunca se viu homem tão generoso, de bom coração, ajudava até quem não conhecia, os parentes nem se fala. Ambrosina acha nosso filho muito parecido com o tio dela, seu pai. Em Capelinha já comentaram como Frederico lembra o barão...
– O barão do Cantagalo, seu Julião? Não acho. Papai era alto, o homem mais alto que já conheci, papai tinha porte. Frederico no máximo vai ficar da altura do senhor, veja as pernas curtas. E cuidem para ele não ficar corcunda, Frederico anda curvado, eu notei, o senhor e Ambrosina precisam corrigir.
Atento aos detalhes dos tapetes, do lustre, a uma figura da Paixão de Cristo, os soldados descendo o lanho no pobre Jesus, e tantas outras novidades a se olhar e guardar para pensar nelas depois, Frederico foi surpreendido com um cutucão do pai para acertar a postura; levantou -se no susto, teso, e recitou o retalho de salve-rainha num fôlego, as palavras no fio que conseguiu puxar da mente. Percebeu-se um tolo ainda enquanto falava, mas susteve, botando fora as palavras na ordem em que chegavam; teve a impressão de Dona Praxedes apertar os olhos quando ele soltou «santa adoçada» com força de orador, e então se perdeu de todo, salve rainha, rainha, repetiu asnas vezes, amém. Caiu prostrado no tamborete, sem coragem de levantar a cabeça. Deve ter deixado o pai bravo, apanharia de mão aberta logo saíssem dali, costumava ser assim.
– Então você é rezador – a voz de Dona Praxedes ria com os soldados da Paixão.
– Nunca vi tão cristão. Esse menino reza pra comer, pra dormir, gosta de ir na capela ver os santos, brinca de padre, senhora – o pai não tinha se dado conta. Frederico não se aliviou, vexou-se ainda mais.
Velho Rabelo deve ter simpatizado com sua falta de jeito, pois pediu licença para emendar um caso que Frederico acabou de fazer a bondade de lembrá -lo, um caso acontecido em Capelinha há anos e anos, o de um parto difícil, acontecido por milagre porque a mulher rezou a salve-rainha aos gritos. Quiseram até chamar a Iamiana das Folhas para virar o menino na barriga com ervas e cantigas, mas a bendita era de Deus, quis se apegar à Virgem; berrou a reza na noite fechada, sangue nos panos, a cachorrada doida com os gritos, uivando pra lua branca. Nisso, entrou pela janela uma bruma grossa, não uma neblina, seu Julião, não, diferente de tudo, um mingau de água, desse tipo, veio planando, planando, pousou sobre a mulher. As irmãs, as vizinhas, todas de terço na mão, viram o mistério: o menino saiu, vivinho e gordo, foi – o Velho selou o cigarro com a língua, satisfeito com o silêncio pensativo de todos; piscou para Frederico com muita amizade.
– Louvada seja a Virgem, eu creio! E esse calor? Deus perdoe, tira a vontade de viver. Frederico, ajude sua madrinha, vá ver se Fia traz esse café ou não.
A mulher mexia na brasa do fogão, os pãezinhos da mãe agora colocados dentro de uma louça pintada, tão delicada, nem pareciam assados no rancho. A água fervia para o café, as panelas cheirosas. Teve fome. Anos depois, Frederico entenderia que existe fome vivida e sentida. A fome vivida fica escrita no corpo e se reconhece nos outros. Mal o viu, a mulher cavou uma das panelas com a colher, passou no açúcar, mandou Frederico abrir a boca: inhame cozido; os cristaizinhos na língua quase o fizeram se esquecer da humilhação da reza. Quis ficar ali, perto do fogão, a fumaça protetora tal a santa de mingau. Fia ofereceu outro bocado de doce. Frederico gostou dela, A senhora é a filha encardida da dinda Praxedes?, quis saber. Fia tomou um leve susto, olhou ao redor para conferir se ninguém tinha ouvido, a colher suspensa no ar; confirmando -os a sós, estourou a rir, rir de sacudir o peito, a mão sobre as gengivas. Ria e apontava para o janelão: de fora a horta, depois o portão de grade, um caminho de terra varrido de sol, e Frederico viu. Duas moças vinham muito juntas debaixo de uma sombrinha, passo apressado. Uma, vermelha como o barbudo da parede, pediu a bênção de padrinho ao Velho Rabelo logo se sentou na sala; a outra, cabelos puxados no alto da cabeça, as mesmas mãos e braços de Fia, passou direto para os quartos, as botinas cantando nas tábuas. Dona Praxedes deu falta dela na hora do café: Tonica, vá chamar sua irmã, ligeiro, meu afilhado quer ouvir música.
– Leopoldina não vem, mamãe... Ela está indisposta – as sardas tremiam sobre a boca.
– Indisposta. Mas não estavam vocês duas andando à toa ao redor de casa, agora mesmo? Quero Leopoldina aqui, e com o acordeão, meu afilhado não vai embora sem ouvir acordeão.
Em pouco, a moça de cabelos presos se sentou de pernas cruzadas, a barra da anágua e as botinas expostas, sujas de barro. O acordeão enchia seus braços. Os dedos alcançaram os botõezinhos, o fole estendeu, apertou, buscou a melodia igual mamãe catando o buraco da agulha na pouca luz, um quase -quase e então entra o fio, a linha lisa do som, Frederico atento à costura da filha de Dona Praxedes; ouvia música só nas missas no povoado, quase nunca, mas estranho, aquela melodia, parece, ele conhece... pois sim!, conhece. É a mesma música de todas as manhãs do rancho, sim, a canção do cocho dos porcos. De lá. Não é que a filha de Dona Praxedes sabe fazer a folia dos sabiás no bebedouro do cocho? Música de asas na água. Desejou se aproximar da sanfona e receber as gotas no rosto. Devagar, devagar, os sabiás deixam chegar muito perto.
– Leopoldina, pode parar, lundu não! – Dona Praxedes agitou o leque. – Meu afilhado quer ouvir música boa, música santa, e você toca batuque de rua? Você estudou em Mariana pra isso? Não foi o que você aprendeu no colégio das irmãs vicentinas, isso não.
As pernas da moça cruzaram para o outro lado, a sanfona posicionada com impaciência. Frederico constatou, num arrepio feliz, uma medalhinha da Virgem dentro do vestido folgado no peito, igualzinha à dele, bem ali, na linha do coração. Os dedos iniciaram uma canção de missa, a botina marcando a cadência sem surpresas. Os movimentos de Leopoldina lembravam os da mãe no trabalho do rancho: um saber fazer direito as coisas, mas de um jeito triste.
– Ah não, Leopoldina! Ainda não, vá, toque uma das difíceis, daquelas que você alcança todos os botões de uma vez com os dedos, são as melhores.
– A senhora espere, mamãe, eu vou tocar essa agora – o corpo em ameaça de suspender o concerto. – A senhora espere.
– Não pare, faça como quiser, menina. Estão vendo? O que Leopoldina tem de talento, tem de teimosia. Podia estudar, tocar melhor, perfeito, mas não, faz mais ou menos só pra me irritar. Mesmo assim ninguém a supera por aqui.
– A perfeição é uma donzela arisca.
– Ah, meu compadre Rabelo, belas palavras! Ou o senhor esconde uma biblioteca em casa ou anda de sopro com os anjos, só pode. Tonica, faça o favor de anotar as palavras do seu padrinho, sua irmã vai pensar nelas antes de dormir.
– Nem as moças da capital puxam o fole tão bem como sua filha, senhora!
– Julião Bomtempo, por lá nem devem tocar acordeão. Certamente preferem o piano.
– Parece a Santa Rita – as palavras rasgaram a garganta de Frederico, olhos de pedra em Leopoldina. Dona Praxedes quase sorriu; perguntou se ele gostava de doce de figo, o pai dela o barão gostava, comia do jeito certo, com uma fatia fina de meia cura. Mandou Fia separar uma compota para levarem, já ficava tarde e ela não queria fazer seu afilhado viajar à noite. Aliás, já passou da hora de abrirem as janelas para a fresca, como podiam ver, mas Fia nada, ainda. Todo dia isso, Fia nunca abre as janelas, parece fazer de pirraça, talvez queira causar dor de cabeça nos da casa, ou suadeira e essas outras doenças de calor, só pode.
Atordoada, Fia ficou sem saber se embrulhava a compota ou se abria as janelas. Leopoldina pôs o acordeão de lado, foi ela mesma destravar as tramelas dos janelões; empurrava as folhas com braveza, a batida seca da madeira na parede de fora. Entrou o resto de luz da tarde, nenhuma fresca, o vento parado. Espancou as janelas uma a uma, suas botinas nas tábuas atravessando o falatório de Dona Praxedes sobre ser muito comum parentes de longe lembrarem um ao outro no físico, mas isso acontece até entre desconhecidos, nada especial, As coisas importantes não se passam por simples parentesco, Julião Bomtempo, plante a melhor semente em terra sem sumo e veja como as qualidades da linhagem não maturam... Não demora a escurecer, vão!, levem meu abraço à Ambrosina, sinto saudades de quando ela era solteira, estávamos sempre juntas. Compadre Rabelo, o senhor janta conosco?
(1) Expressão oral, em Minas Gerais. Neste contexto, significa «Imaginar».
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