São três artistas angolanos cujas idades somadas perfazem 210 anos. "CCX-TRIPTIKUM" é o oráculo da exposição cuja tradução da numeração romana para a indo-arábica resume os dias de vida de Mário Tendinha, Carlos Vilar e António Ole.
“Gostamos de banda desenhada e do Obelix”, explica Mário Tendinha. No papel de cicerone, ao lado do SAPO24, percorre os dois pisos da recém-criada Galeria de Artistas de Angola, na Rua Sousa Lopes Nº 12A, em Lisboa. “Triptikum, porque somos três”, explica a origem do nome.
O novo espaço, na fronteira do bairro do Rego com Entrecampos, cumpre a dupla função de celebrar as artes plásticas dos três autores e amigos de longa data, abrindo com a exposição propriamente dita, e de inaugurar um novo ponto de abrigo de artistas de sangue angolano.
“A ideia da galeria partiu do João Salvado. Ter um espaço em Lisboa, para além do existente em Luanda, que ajudasse a promover a arte dos artistas angolanos”, anuncia Mário Tendinha, pintor autodidata nascido em Moçâmedes, em 1950. “Pessoalmente entendo que existe a arte dos artistas angolanos e não arte angolana. A arte angolana é dos artesãos”, prefacia a conversa.
“Pintura, desenho e fotografia”, resume em três palavras as três técnicas expressas nas obras patentes. São relatos das histórias, vidas e problemas da sociedade angolana. Mas não só. Outras causas do mundo também ali cabem como se verá mais à frente.
“Eu trago pintura e desenho, sou mais visual. O Carlos Vilar trouxe pintura, pinta personagens escondidas e o António Ole, o mais consagrado e a maior referência da arte angolana, tem a fotografia”, releva Mário Tendinha.
Feitas as apresentações sumárias, vira-se para a exposição. “Um tríptico, uma fotografia do António Ole, uma banca do mercado onde se vê os santinhos, as lâmpadas e um rolo Agfa”, descreve, remetendo para a data de criação, no ano 2000. “O Carlos tem Parkinson”, revela ao introduzir três quadros. “São os hemisférios do cérebro. Vê-se a cor de África, a luz, muita luz”.
A ancestralidade dos Khoisan e a beleza da mulher Himba
Mário Tendinha centra-se em obra própria. “O desenho é meu. É um pedido de casamento. Técnica com papel molhado e amachucado”, anuncia. “Sempre gostei de desenhar, é a minha praia. A mão foge-me para a banda desenhada. É uma mulher no deserto do Namibe, mulher de ancas largas, a lavrar, de seios caídos, tristinha, que guarda a joia da princesa Diana”, descreve.
Pausa, por instantes, na visita guiada. Guia-nos pelos caminhos da história e da antropologia para explicar um quadro. “Faço pesquisa sobre o povo Khoisan, o povo mais antigo à face da terra. É a junção dos Khoi e dos San”, explica. “Deixaram marcas e não sei se estão em face de extinção em Angola, há 5 mil, mas tiveram sempre pouca atenção, desde o tempo colonial. É um povo ancestral sem a devida atenção” alerta. “As marcas estão gravadas nas pedras em Moçâmedes e em Walvis Bay (Namíbia)”, refere.
“A expressão artística gravada nas pedras dos Khoisan, a ideia da exterminação, posta cá fora. Desenhavam os animais que caçavam, pinturas rupestres. O quadro mostra-os a saírem das cavernas e o confronto com a humanidade (aponta para o quadro)”. Acrescenta mais um capítulo na lição de antropologia. “São povos nómadas. Os Khoikhoi na África do Sul juntaram-se com um povo e deram origem aos Khosa - de onde advém Nelson Mandela – a língua é o Kung, a língua dos estalidos. Falam por estalidos”, revela.
Noutra incursão por povos ancestrais dos territórios de Angola e Namíbia, apresenta a mulher Himba retratada na tela. “Besuntam-se com óleo de casca de árvore vermelha. Serve para proteger do sol e afugentar mosquitos. Têm muitos cuidados com a beleza e andam sempre com os seios à mostra”, informa Tendinha.
Os retratos sociais não se resumem ao continente africano. Mário Tendinha dá relevo a duas obras, criadas em dois locais distantes, assinada por dois autores, sem conhecimento prévio de cada qual e com a particularidade de ambas retratarem um olhar sobre o mesmo assunto.
“Ambas chamam-se Gaza. A minha, pintada em Lisboa e do Carlos Vilar, em Luanda. São duas visões do bombardeamento na faixa de Gaza”, confidencia. “Não sabíamos que tínhamos feito sobre o mesmo assunto. As nossas atenções não estão só focadas em Angola, mas sim no que se passa no mundo”, reforça.
“Os anjos que Luanda devia ter e não tem”
A ocupação territorial aviva-lhe a memória e transporta-o para a terra onde nasceu. “Angola viveu uma guerra colonial e uma guerra civil. Tivemos a tentativa de ocupação do nosso espaço pelos sul-africanos. Vivia no Lubango quando os sul-africanos invadiram a nossa terra. Perdi a casa, atelier e obras, perdi tudo. Estive 25 anos sem pintar. Desde 1975”, recorda. “Já passou e estou aqui a fazer esta exposição”, frisa.
A visita prossegue no piso de cima. “Fotografias de azulejos português na fortaleza de Luanda, de António Ole, mais Khoisan e um quadro que reflete a bonanças depois da tempestade em Luanda”.
Soletra a palavra Los Angeles. “Os anjos que Luanda devia ter e não tem”, exclama. Aponta para uma imagem de lixo acumulado na cidade. “Quando chove vai tudo para o mar”, alerta. “É uma chamada de atenção, uma crítica ao impacto ambiental”, avisa. “Não queremos ser políticos, mas tem a ver com a questão ambiental e chamamos à atenção participando nesta luta”, atesta.
A viagem pelas três formas de arte, pintura, desejo e fotografia, termina em música. Um quadro batizado com o nome da fadista Kátia Guerreiro. “Não aprecio o fado”, avisa antecipadamente. “A Kátia é filha de uma prima minha. A bisavó, avó e mãe são de lá”, refere.
Fim de visita ainda a tempo de um último reforço do recado dado no início de conversa. “A galeria serve para mostrar a arte dos angolanos. A intenção, a partir de agora, é dar continuidade. O que nos move é que os artistas angolanos saibam que têm aqui uma galeria e há que dar movimento e dignificar o espaço”, resumiu Mário Tendinha.
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