Poderá pensar-se que a história já foi contada duas mil vezes. Tantas quantos anos hão de ter passado desde a crucificação de Jesus, o símbolo maior da religião cristã. Aqui, porém, é-nos dada outra perspetiva: a de Maria Madalena. É pelos olhos dela que nos são contados os últimos dias da vida de Jesus, numa tentativa de ressuscitar a personagem bíblica, afastando-a dos mitos que a cultura popular e a Igreja lhe puseram à volta.
No cinema, muitas vezes já esses dias foram retratados. Baseiam-se na Bíblia, uma das maiores influências na narrativa Ocidental. As histórias e as formas de as contar encontram naquele livro parte do seu reflexo. Há quem diga que a própria Bíblia tem dentro influências primitivas, anteriores à sua redação.
Mudar a perspetiva do narrador dá uma maior importância a essa personagem, cujo papel, hoje sabemos, vai muito para além dos mitos a que a cultura nos habituou. Maria Madalena não era uma prostituta. Atualmente, os investigadores bíblicos não corroborarem a identificação de Santa Maria Madalena com outras duas eventuais personagens bíblicas, entre elas a “pecadora que ungiu e perfumou os pés” de Jesus Cristo, quando este visitou a casa do fariseu Simão, e a irmã de Lázaro e Marta, e que testemunhou a ressurreição de Lázaro, como conta a Bíblia.
A fama da tal pecadora, que não será Maria de Magdala, nem a irmã de Lázaro, originou, escreve o padre Gonçalo Portocarrero de Almada, “a má fama que desde então persegue, inexoravelmente, a apostola dos apóstolos”. Todavia, como escreveu o evangelista Lucas, dela “tinham saído sete demónios”, expulsos por Jesus Cristo, o que não abona muito em seu favor”.
Porém, “muito mais importante do que averiguar o passado, mais ou menos pecaminoso, de Santa Maria Madalena, interessa a sua virtude, o seu amor a Cristo”, sublinha Portocarrero, para quem esta foi “uma grande santa, porque amou muito e foi também muito amada por Cristo, não ao jeito que certos ignaros gostam agora de romancear”, adverte.
Em 1930, o português Nuno de Montemor, escreveu uma biografia de Santa Maria Madalena, agora reeditada pela Paulus Editora, com um prefácio do padre Portocarrero, que assinala a “oportunidade” da reedição. Montemor, pseudónimo do padre Joaquim Augusto Álvares de Almeida (1881-1964), adere à opinião popular de serem “os pecados da carne” aqueles pelos quais se penitencia Maria Madalena.
Portocarrero adverte que “sempre foram muito indulgentes os homens para com os pecados desta natureza”, e atesta que “pode ser mais grave a soberba e a ira”.
E numa altura em que a sociedade se obriga a rever a posição de homens, mulheres e todos os outros entremeios, recordar a história de Jesus e da influência que Maria Madalena realmente teve ganha uma importância maior. Aqui, Garth Davis concentra-se apenas na mulher. Vemos sangue, mas somos poupados à Via Sacra completa. Vemos sangue, mas somos poupados à crucificação.
Há, contudo, alguns pormenores que desiludem. Joaquin Phoenix não é o Cristo mais convincente. Falta-lhe qualquer coisa. A barba está lá, os longos olhares contemplativos também. As parábolas idem. Mas há um determinada profundidade em falta, é que, apesar da barba farfalhuda, Phoenix não tem a voz de Deus.
Pelo contrário, Mara surge com um poder intenso. O olhar que diz sem voz, os olhos que gritam sem se ouvir. Num universo de parábolas, o próprio filme acaba a servir de metáfora ao que Hollywood tem testemunhado nos últimos meses.
Recorde-se que o filme deveria ter sido distribuído pela empresa de Harvey Weinstein. No mercado norte-americano, ainda não está certa a distribuição, já que a empresa acabou por falir, afogada nas ondas das acusações feitas ao cofundador. Assim, numa altura em que a sociedade discute a forma como olha para as mulheres, após Weinstein ter sido deposto do trono aonde o sentaram durante anos, um filme que põe o destaque numa mulher, acaba na sombra.
Entrando filme dentro, não há momento inédito. Segue-se a linha bíblica, embora Pedro não chegue a negar Jesus, nem os homens cheguem a perceber a mensagem do filho de Deus — só Maria Madalena a entende.
No princípio havia uma mulher. Poderá dizer-se que era rebelde, se não quisermos assumir que seguia apenas a vontade que era a dela e não a expectativa que tinha o pai, o irmão, a sociedade paternalista que acredita que sabem sempre os homens o melhor para as mulheres. Madalena não faz nada do que lhe esperam. Quando a querem casar com um tal indivíduo, põe-se à noite no templo; reza. Mas a hora de as mulheres não é aquela e logo os embaixadores divinos denunciam o trespasse aos homens por ela responsáveis.
Perseguida, foge em direção aos rumores de um suposto profeta ou curandeiro que anda salvando, ou vidas ou almas, pelas terras do lugar. Nele encontra olhos vagos e um desafio. Junta-se ao bando de homens que o acompanham, pondo em causa o papel da mulher, mas também o dos apóstolos. Com esta revisão do estatuto de Maria Madalena, põe-se também em causa o equilíbrio das forças que insistem em manter homens e mulheres afastados nos momentos críticos da humanidade.
Ao contrário de outros exemplos — e apesar de Mara e Phoenix serem um casal fora do cinema —, Maria Madalena não é nem mulher, nem concubina, nem huri de qualquer um dos homens que fazem as fundações da Igreja Católica. É apenas mais um membro do grupo. De tanto direito como os outros que o fazem. Testemunha como as testemunhas.
É certo: a tensão nos olhares meditativos que Jesus e Maria Madalena trocam no cume das montanhas que os escondem (e o ciúme de Pedro — Chiwetel Ejiofor) podem permitir adiantadas análises, porém, a intenção dos autores é clara: Madalena e Jesus não são um casal.
E este pormenor é importante na ressurreição da personagem bíblica de Maria de Magdala. Porque permite vê-la como personagem de pleno direito e não com a esposa ou amante de Jesus. Tampouco é a prostituta, que, absolvida pelo filho de Deus, se despe com ele na cama.
Se não há suspeitas da intenção dos apóstolos homens que seguem Jesus, porquê duvidar das motivações de Maria Madalena?
É essa a mensagem neste filme. Mensagem que é descodificada na explicação das intenções de Judas (Tahar Rahim) quando denunciou Jesus aos carrascos. Em certa medida, também ele, “o traidor”, sai revisto da história. Porque mais importante do que julgar as ações, talvez seja olhar para as motivações que as ditam.
Passando o desenrolar da história, chegamos à forma como isso é feito. Há planos belos, mas não brilhantes. A força do filme não está na cinematografia, antes, no desempenho de Mara, cujos olhos vazios acalmam as dores de uma mulher que tem um filho e de um moribundo que soçobra. E esse contraste entre a falência do corpo e a serenidade do olhar é sólido e interessante.
Rooney Mara dá um forte contributo à tentativa de ressurreição de Maria Madalena. Porém, ao tentar eliminar quaisquer ligações a essa versão tradicional de Maria Madalena, explorada no ‘Código Da Vinci’ ou na peça “Jesus Cristo Superstar”, acabamos com uma história pudica. Poderá ser um bom filme para ver na sessão de catequese nestes dias que antecedem a Páscoa, mas valerá mais pela discussão que fomenta, do que pelos argumentos que põe em cima da mesa.
"Maria Madalena", de Garth Davis, com Rooney Mara, Joaquin Phoenix e Chiwetel Ejiofor, estreia esta quinta-feira, 22 de março, nas salas portuguesas.
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