O que é que torna uma pessoa sexy? Os contornos do seu corpo, as feições do seu rosto? A sua inteligência, a sua sagacidade, o seu sentido de humor? A sua veia criativa, a sua escrita, a sua voz? A sua fiabilidade? A sua lealdade? Uma personalidade forte e viril? Uma timidez solitária? Talvez não exista uma resposta correta a esta pergunta. Afinal de contas, a beleza – ou, neste caso, a sexyness – estará nos olhos de quem a vê.

Mas há quem tenha definido sexy por si só, descrevendo, de forma exímia, a palavra de um modo que se possa considerar dogmático e universal. Bastou-lhe, para tal, uma única canção: 'Let's Get It On', o sexo e o amor unos e contidos em quatro minutos e pouco de música. Lançada em 1973, 'Let's Get It On' tornou-se quase um cliché do mundo do cinema, em especial do romântico e do cómico: se há duas personagens prestes a realizar o amor a determinado momento, a probabilidade de escutarmos os primeiros acordes do tema é altíssima...

O seu autor? Marvin Gaye, nascido a 2 de abril de 1939, fruto da relação entre um pastor pentecostal – Marvin Gay, Sr. - e uma trabalhadora doméstica – Alberta Cooper. Antes da sensualidade, teve, (como muitos negros, tanto naquele período como hoje) uma infância complicada. Cresceu num bairro social, rodeado de miséria, descobrindo (também como muitos negros) a música através da igreja, onde começou a cantar aos quatro anos, acompanhado pelo pai.

O pai de Gaye acabaria ser a figura maior da sua vida, e também da sua morte. A meras horas do 45º aniversário do músico, o homem que o colocou neste mundo de cá o tirou, após uma altercação violenta, uma das muitas que tiveram ao longo da vida. Na infância e na adolescência, Marvin Gaye foi por várias vezes brutalmente espancado pelo pai, que nunca aprovou a sua carreira musical. Na noite de 1 de abril de 1984, o círculo fechou-se: Marvin Gay, Sr. puxou de uma pistola, que lhe havia sido oferecida pelo filho, e disparou; duas vezes, a segunda à queima-roupa.

Há rumores de que o homicídio foi premeditado, mas não pelo velho pastor, e sim pelo próprio Gaye. Em “Divided Soul: The Life of Marvin Gaye”, de David Ritz, a irmã de Marvin Gaye, Jeanne, afirma que este se tentou suicidar apenas quatro dias antes da sua morte, atirando-se de um carro em movimento. E, em “Marvin Gaye, My Brother”, Frankie Gaye – outro dos irmãos do músico – alega que as últimas palavras deste foram «não consegui matar-me, por isso fiz com que ele me matasse».

É que, apesar da fama, da música, da sensualidade, Gaye não era um homem feliz. Em 1969, tentou suicidar-se devido ao desmoronar do seu casamento com Anna Gordy, irmã de Barry Gordy (o “patrão” da Motown Records) e 17 anos mais velha que Marvin. Dez anos mais tarde, engoliu quase 30 gramas de cocaína, em nova tentativa. A depressão era a grande culpada. «Não me sentia amado. E, devido a isso, sentia-me inútil», explicou, pouco depois.

O facto é que o era. Isso mesmo o provaram – e continuam a provar – os milhões de fãs que, por todo o mundo, choraram a sua morte. E, evidentemente, também os seus colegas de profissão, que tinham nele um amigo, um ícone, uma influência, como Jermaine Jackson, Diana Ross, Chuck D ou até mesmo os Duran Duran. Porque ele era – e continua a ser – um dos grandes, se não o maior da soul.

A voz que gerou essa soul, e a alma que a alimentou, começaram por baixo, como qualquer boa história de homens que superam as suas misérias e se tornam estrelas. Primeiro, através de grupos doo-wop, ainda no liceu. Mais tarde, formou os Marquees, um quarteto vocal, com Resse Palmer, seu grande amigo. Um single escrito em parceria com o “mestre” Bo Diddley acabou por não dar frutos, e a banda acabaria por mudar de nome para Harvey and the New Moonglows, antes de acabar. Após um breve período como músico de sessão, Marvin Gaye encontrou a primeira pessoa que havia de lhe dar a fama, e vice-versa: Berry Gordy.

O sucesso chegaria em 1963, com o seu primeiro grande êxito internacional: 'Can I Get a Witness', que no ano seguinte seria alvo de uma versão por parte dos Rolling Stones. Era o primeiro passo de uma carreira apenas ao alcance dos gigantes. A esta, seguir-se-iam temas hoje icónicos como 'How Sweet It Is (To Be Loved By You)', 'Ain't That Peculiar' e 'It Takes Two', em dueto com Kim Weston. Nenhuma delas, porém, tão icónicas quanto 'I Heard It Through the Grapevine', que atingiu em 1969 o primeiro lugar das tabelas de vendas norte-americanas e vendeu mais de 4 milhões de cópias por todo o mundo.

Mas há um momento em que Gaye deixa de ser um artista de sucesso, um ícone, para passar a fazer parte da história: aconteceu em 1971, com o lançamento de 'What's Going On', tema inspirado por uma situação de abuso policial testemunhada pelo músico, durante uma manifestação contra a guerra, e numa altura em que, como se sabe, a situação política vivida nos EUA era bastante volátil. Inicialmente, 'What's Going On' foi rejeitada por Berry Gordy, que a considerou “demasiado política”; a canção só seria lançada após Gaye entrar em “greve”. Tinha razão: 'What's Going On' chegou, também, ao primeiro lugar das tabelas e é hoje vista como uma das maiores canções de protesto de sempre.

O músico acabaria por chocar de frente com a história, isto é, com o seu patrão. Gordy, e a Motown, recusaram-se a editar “You're the Man”, álbum que funcionaria como sequela para “What's Going On”; de facto, só no passado dia 29 de março é que os fãs puderam finalmente escutar, pela primeira vez, os temas que o compõem, numa reedição da Universal. Mas do choque nasceu a bonança, a felicidade, a canção e o álbum que serão responsáveis por quase tantos nascimentos quanto uma vitória num Campeonato do Mundo: “Let's Get It On”.

A estes, seguiu-se uma aclamada digressão pelos EUA, em 1974 e 1975, e uma digressão europeia, em 1976. Dois anos depois, Marvin Gaye voltava ao poço, tornando-se viciado em cocaína e debatendo-se com problemas de natureza financeira, nomeadamente com o fisco, que o levaram a mudar-se para Londres no início da década de 80. Em 1981, seria a Bélgica a acolhê-lo; e seria nesse país que se livraria do vício e ganharia toda uma nova confiança.

O que é que acontece quando se tem confiança? Faz-se magia. Se 'Let's Get It On' era o supra-sumo da sensualidade, 'Sexual Healing' era a sua conclusão lógica. Lançado em 1982, o tema acabou por se tornar no maior sucesso da carreira de Marvin Gaye, valendo-lhe ainda dois prémios Grammy em 1983. Se pensarmos na sensualidade e no sexo como uma mixtape, 'Let's Get It On' será a primeira faixa, 'Sexual Healing' estará algures pelo meio e, no final, só mesmo no final, talvez se possa incluir algo como 'Cigarettes and Coffee', de Otis Redding...

Os dias bons, no entanto, acabariam depressa; Marvin Gaye seria morto em 1984 e o mundo perdia uma das suas grandes vozes, alguém que «transcendeu as fronteiras do R&B como nenhum outro», conforme afirmou o autor Michael Eric Dyson. Foram as suas gravações, talvez mais do que nenhuma outra, que ajudaram a Motown Records a tornar-se numa das maiores editoras da história da música, e uma sem a qual a música não teria história. Os “corredores da fama” do rock, do R&B e até de Hollywood têm todos o seu nome lá inscrito. A conclusão deverá, então, ser: o que é que torna uma pessoa sexy? Simples; basta escutar Marvin Gaye.