Aquela tarde-noite de 9 de julho de 2022 ainda está bem presente nas memórias de todos os que a viveram. Foi a tarde em que, demasiados anos depois, os Da Weasel voltaram a pisar um palco após um fim demasiado abrupto, um fim com o qual os fãs não contavam e que, ainda hoje, se interrogam sobre o porquê de ter acontecido. Escrevia-se, então, assim: “o que o grupo aqui escreveu foi uma página de história, cheia da 'Força' de outros tempos, os pulmões a cuspir o mais maravilhoso dos venenos […] O público, que veio aqui para reviver o passado, acabou por existir apenas no agora. Uma hora e meia em que o tempo parou, em que os Da Weasel simplesmente pousaram e, como Fernando Pessoa escreveu, disseram: «arre, vou existir!»”.
É precisamente com esse concerto, no NOS Alive, que Ana Ventura abre “Uma Página Da História”, biografia oral do grupo, editada esta quinta-feira. À altura, não sabíamos se este era um regresso apenas para colocar um ponto derradeiro na sua história, apenas para se despedirem do seu público. Sabemos, agora, que os Da Weasel decidiram seguir a tal ideia pessoana: novamente em julho, atuarão no MEO Marés Vivas. Ou seja, aquele 9 de julho não foi um sonho, mas “muito mais do que um sonho”, como indica a autora, que tem aqui a sua terceira biografia de um projeto português, depois dos Xutos & Pontapés e de Magazino.
Construído a partir de 60 horas de conversas com cada elemento do grupo, o que salta primeiro à vista em “Uma Página De História” é o seu tamanho: 564 páginas. Certamente que, ao vislumbrá-lo em livrarias, ao pegar-lhe, muitos fãs dos Da Weasel pronunciarão a palavra “calhamaço”. É puro engano. A sua disposição, onde aquilo que se tem diante dos olhos são, quase apenas e só, as falas dos intervenientes (e é “quase apenas e só” porque há esse prefácio sobre o concerto no NOS Alive) permite uma leitura fácil, descomplexada (porque mantém as marcas discursivas de cada elemento), e, dado o nosso apego pessoal pelo material, também bastante rápida (que é como quem diz: não é fácil pousá-lo uma vez aberto, se gostarmos realmente da banda).
Muitos, certamente, irão querer lê-lo para, por fim, entenderem o porquê de os Da Weasel terem acabado em 2010. Outros focar-se-ão nas partes mais sumarentas, nas partes mais rock n' roll, como o abuso de drogas por parte de Carlão, o mítico Sudoeste em que Virgul parte a perna, as saídas de Yen Sung e Armando Teixeira do grupo. O que resta no final é parte da história dos Da Weasel, segundo os Da Weasel e mais ninguém. Eles sabem-na melhor que qualquer outra pessoa. Estavam lá. E é “parte”, porque a história dos Da Weasel ainda não acabou – como o próprio título do livro parece indicar. Haverá muitas páginas ainda por escrever.
É um livro bastante fácil de se ler.
Que bom, ainda bem. Eu percebo que, quando se pega no objeto, pode parecer um bocadinho intimidante. São 600 páginas...
A forma como está disposto apela a isso mesmo.
Que bom, ainda bem.
Quando entraram no palco do NOS Alive só estavam mesmo a pensar naquilo que ia acontecer naquele momento (...) Acabou por se tornar evidente, para eles, que não podia ser um concerto único, tinha de haver mais alguma coisa
Os Da Weasel reuniram-se para um concerto no NOS Alive, foram a primeira banda portuguesa a esgotar um dia num festival, já têm outro espetáculo agendado para o MEO Marés Vivas. Era esta a altura ideal para lançar uma biografia do grupo?
Na verdade, quando lhes fiz a proposta para o livro, nem eu fazia, nem eles faziam ideia do que é que ia acontecer a seguir ao concerto no NOS Alive. Eu própria, e tendo convivido com eles ao longo da contagem decrescente para o concerto, achava que era conversa deles quando diziam aquela coisa do: “ah, não, estamos só focados no próximo jogo”. Essa era a metáfora que eles usavam. E eu achei que, na cabeça deles, já tinham decidido se iam fazer mais alguma coisa ou se não iam. A verdade é que não. Quando entraram no palco do NOS Alive só estavam mesmo a pensar naquilo que ia acontecer naquele momento. Depois, o que aconteceu a seguir é que eles foram tão avassalados por aquilo que aconteceu ali, como todas as pessoas que estiveram no público. Acabou por se tornar evidente, para eles, que não podia ser um concerto único, tinha de haver mais alguma coisa.
Enquanto fã da banda, o que é que significou voltar a vê-los em palco?
Para mim foi uma coisa muito estranha. Tive de gerir a pessoa que tinha crescido com a música dos Da Weasel e a profissional que estava a fazer uma parte do livro, do livro que é deles. Para mim, foi quase uma luta interna entre querer desfrutar tudo, aproveitar e aproveitar cada palavra, mas ao mesmo tempo também queria registar tudo aquilo que estava a acontecer, para depois poder transpor para o livro. Foi um bocadinho uma luta interna onde acabou por ganhar a pessoa. Depois pensei que, com todas aquelas emoções, seguramente que ia conseguir colocá-las em página. Essa emoção também faz parte deste livro. Pousei o livro, pousei a caneta e limitei-me a desfrutar do concerto.
Nesse sentido, escrever este livro foi uma espécie de mistura entre a fã e a profissional. Ou houve ali alguma dificuldade em separar as águas?
No início, confesso que temi que não fosse capaz de separar as águas. E que aquela linha ténue, entre aquilo que nos faz ter vontade de contar uma história, se misturasse demasiado com a minha perspetiva de apreciadora da obra deles. Mas acho que a partir do momento em que o gravador se ligou pela primeira vez, a Ana seguidora dos Da Weasel retirou-se e surgiu a Ana que agora assina a biografia deles. Acabou por ser muito mais fácil do que aquilo que pensei.
Foi mais fácil este do que os anteriores sobre os Xutos & Pontapés e o Magazino?
Todos eles foram muito diferentes. Tanto no caso do dos Xutos como no do Magazino, a ideia não foi minha. Logo, eu não tinha tanta responsabilidade, não tinha nada a provar a ninguém. Aqui sentia que não só tinha de provar a eles, à banda, que tinham tomado a decisão certa ao aceitarem o meu desafio, mas também tinha muito a provar a mim mesma, de que era capaz de estar à altura do desafio ao qual me tinha proposto. Nesse aspecto, a abordagem foi muito diferente dos outros dois.
O facto de só os membros atuais do grupo terem prestado declarações foi uma escolha deliberada?
Foi escolha minha. Foi um dos elementos deste processo no qual a banda me deixou completamente à vontade. Aquilo que eu achei é que o que fazia sentido, neste momento, era contar, fazer o registo oral dos Da Weasel em 2023. Claro que a Yen Sung e o Armando Teixeira são parte fundamental daquilo que os Da Weasel são hoje, mas não fazem parte da banda atual. O que eu queria era contar a história dos seis elementos atuais da banda.
Esses elementos esconderam alguma coisa ou mostraram-se sempre muito abertos?
Não esconderam nada.
Se calhar, consoante o olhar de cada leitor, assim vai ser compreendida a razão pela qual os Da Weasel em 2010 anunciaram o seu final
Pergunto porque a razão pela qual acabaram não é muito explícita.
Acho que a mensagem está lá, mas também acho que como em qualquer divórcio... O divórcio também não acontece só por uma razão. Numa banda as coisas acabam por acontecer. Porque o divórcio é só entre duas pessoas e aqui são seis, há ainda mais razões. Se calhar, consoante o olhar de cada leitor, assim vai ser compreendida a razão pela qual os Da Weasel em 2010 anunciaram o seu final. Pela minha parte, eu acho que está bastante evidente. Agora, um dos aspectos que mais me orgulha neste livro é precisamente eles nunca me terem dito: “eu não quero falar sobre isto” ou “não quero falar sobre esta pessoa”. Não tinha nenhum assunto tabu, nada. Permitiram-me fazer todas as perguntas e responderam-me a todas as perguntas também.
Em todo o livro há apenas uma fotomontagem com todos os membros dos Da Weasel, na sua juventude, e as imagens das capas dos discos. Também foi deliberado?
Também foi deliberado. E há ainda a imagem do palco no final do concerto no NOS Alive, mesmo no fim do livro. Aí, foi uma escolha feita entre a banda, comigo. Isto é uma biografia, não é uma fotobiografia. Eles têm um espólio imenso em termos de imagem, mas não era neste objeto que essa história seria contada. Aqui é a história verbal, digamos assim. A história visual, seguramente, será contada noutra altura.
É uma promessa?
Os Da Weasel vieram para ficar, portanto... Acho que tudo é possível.
Das 60 horas de conversa que teve com a banda houve alguma coisa que tenha ficado de fora? Para não estragar a narrativa, digamos assim.
Não. Aliás, a certa altura acabou por ser uma luta comigo mesma... Era um medo, a partir de uma certa altura comecei a temer que o livro ficasse mesmo muito grande. Mas pensei: vou escrever tudo, vou fazer tudo e depois, se se vir que há necessidade de reduzir, logo escolho. Mas a fazer figas para que isso não tivesse de acontecer. E não aconteceu. As várias dezenas de horas de entrevista estão no livro. Não houve nada que tivesse ficado de fora.
não têm noção da importância que continuam a ter na vida das pessoas
No livro o Carlão afirma, e vou citar: "Só um ano ou dois depois dos da Weasel terem acabado é que me caiu a ficha da dimensão que a banda teve e da importância que teve". Foi o mesmo com os outros elementos, ou houve alguém que, de forma mais tímida ou autodepreciativa, tenha considerado que um livro destes não fazia sentido porque ainda não lhe tinha caído a ficha?
Ai está... Essa é uma das perguntas para um milhão de euros. Eu, vendo de fora, acho que eles continuam a não ter noção da importância, da relevância e do peso que os Da Weasel têm. Se por um lado acho que é inacreditável, por outro acho que é muito bonito. Acho que é muito representativo da inocência no sentido da total verdade que eles colocam em tudo o que fazem. Porque acho que eles não têm noção, não têm noção da importância que continuam a ter na vida das pessoas. Só a forma como eles entraram, por exemplo, no palco do NOS Alive, mostrou isso perfeitamente. Eles estavam completamente surpreendidos com aquela reação e com aquela receção. Acho isso muito bonito. E quando eles saem do palco estão sem acreditar naquilo que aconteceu, mas é bonito também que, alguns meses mais tarde e quando estamos em conversa, a tentar fazer o balanço do que foi o NOS Alive, eles continuarem a ter duvidas sobre se as pessoas continuavam a querer ouvir mais Da Weasel. Acho isso mesmo muito bonito. É como se 30 anos depois do nascimento da banda, eles continuassem muito puros. Não é aquela coisa do politicamente correcto...
É mesmo uma questão de personalidade.
Eles têm dúvidas. Eu falava com eles e não percebia: como assim, têm dúvidas? “Vocês não percebiam?”. E não, não percebiam. E, se calhar, a metade da banda que não se manteve tão próxima do grande público como a outra metade... Se calhar, até consigo perceber que tenham perdido um pouco a perceção. Mas, quer dizer, o Virgul, o Carlão, o Glue, que continuam tão ativos e que se mantiveram tão ativos ao longo destes dez anos, e tão próximos do público... Como é que não compreendem a importância que os Da Weasel têm?
Eles já o leram?
Eles leram tudo. Foram lendo ao longo do processo. Só partia para um novo capítulo quando o capítulo anterior estava pronto, entregue, enviado. Eles foram lendo ao longo do último ano.
Que reações foi tendo ao longo desse processo?
O e-mail que para mim foi mais nervoso foi mesmo o primeiro, quando enviei os dois primeiros capítulos. Porque ali é que eles iam perceber como é que ia contar a história, iam-se ver retratados pela primeira vez e iam dar o seu aval a este formato. A partir de aí, a coisa processou-se de uma forma muito natural e muito fluída. Alguns deles respondiam-me no dia seguinte, a dizer que já tinham lido e já tinham algumas correções a fazer. Correções, porque eu percebia mal nomes de amigos, coisas assim, pormenores muito específicos. Acabou por ser muito prazeiroso, também, ir acompanhando que eles não só se estavam a permitir dar a conhecer, mas como eles próprios estavam a conhecer outras nuances não só da banda, mas dos seus parceiros de banda. Acho que cada um deles se conhece um bocadinho mais, mas também conheceu as pessoas que têm feito esta viagem com eles um bocadinho melhor.
A Ana menciona que a última entrevista de fundo que fez para a Blitz foi precisamente aos Da Weasel. Este livro é uma espécie de fechar de ciclo ou a abertura de uma nova porta?
Eu adorei aquela entrevista que fiz. Se tinha de sair em grande, não podia ter saído melhor. Porque foi uma entrevista da qual gostei muito, da qual a própria banda gostou muito, e foi uma entrevista que teve como mote o meu álbum preferido dos Da Weasel [“Amor, Escárnio e Maldizer”, de 2007]. Por aí, eu estava em total paz com os Da Weasel. Não acho que seja um fecho de ciclo, pode ser a abertura de algo novo porque... Lá está, é aquilo que digo: fiz dois volumes da biografia dos Xutos. Se os Da Weasel continuarem a ter história, eu continuo disponível para fazer mais um volume.
Seria precisamente a minha pergunta final. Se o livro poderá vir a ter uma atualização e, nesse sentido, que perguntas ainda se podem vir a fazer aos Da Weasel?
O lado incrível quando se lida com pessoas tão criativas quanto o são estes seis músicos e estas seis personalidades é que as perguntas nunca acabam. Há sempre mais para saber, há sempre mais para perguntar, para descobrir e para partilhar. Tenho a certeza que eles, agora que estão a preparar o concerto do MEO Marés Vivas, já têm mais coisas para contar, já estão a descobrir novas nuances das suas canções de sempre e já têm novos olhares. Acho que, quando se tem tanta criatividade como os Da Weasel têm, e quando se tem tanta cor quanto estas pessoas têm, há sempre muita história para contar.
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