(No princípio era) O verbo. E o verbo eram os poemas prosaicos de um "3º Capítulo", álbum-vírus lançado em 1997. "Vírus", porque não houve escola que não tivesse escapado aos seus encantos, nessa altura antes da massificação da internet, nesse mundo em que eram os pais, os irmãos mais velhos, a rádio ou a MTV quem formavam os gostos musicais de cada um. É difícil explicar a importância desse disco para uma certa geração, impossível replicar as tardes passadas em pavilhões, refeitórios ou salas de aula - quando o castigo pelo mau-comportamento ou a alternativa à presença num cortejo carnavalesco era ficar quieto e sentado nas mesmas cadeiras, onde no dia-a-dia não se queria aprender nada além da fixeza - a escutar, indolentemente, temas como 'Todagente' ou o romance de putos de 'Dúia'. Na capa, a palma de uma mão, convite ao cumprimento. Na capa, o nome em inglês: Da Weasel, coisa exótica, coisa que soava como música, coisa que batia na língua, primeiro, e obrigava à abertura da boca numa espécie de sorriso, depois.
"3º Capítulo" foi um estrondo, e mesmo que não tenha sido o primeiro trabalho dos Da Weasel foi o seu primeiro passo rumo a um estatuto inegável: o de banda portuguesa mais adorada e cultuada, em segundo apenas para os Xutos & Pontapés. Porque aquilo, como qualquer membro dos Da Weasel dirá, não era só hip-hop: era rock, era punk, era metal, era eletrónica, era soul, era bossa nova, era industrial («A frase mais ouvida na nossa carreira [foi]: "Não gosto de hip-hop, mas gosto de vocês"», afirmou Jay-Jay ao Ípsilon). Era algo de extraordinariamente novo e cativante, uma urgência vinda do goto da Margem Sul para conquistar galáxias atrás de galáxias adolescentes. Putos, mas adultos ao mesmo tempo. Putos, que na cabeça já alimentavam inúmeras revoluções imaginárias. Putos que eventualmente cresceram com "Iniciação A Uma Vida Banal" e "Podes Fugir Mas Não Te Podes Esconder", e que se completaram com "Re-Definições" e "Amor, Escárnio e Maldizer". Putos adultos e adultos putos que não conseguiram senão soltar uma ou duas lágrimas aquando do anúncio de que os Da Weasel iriam cessar atividade, naquele ano de 2010. Onde ficaria a juventude? Teria de se contentar com as memórias em vez de nos dar lições para o presente.
Tudo mudou em 2019. Os Da Weasel anunciaram que se iriam reunir para um concerto especial no NOS Alive, deixando a salivar os fãs. Até que uma pandemia colocou um travão nesses planos, obrigando aquelas hordas de eternos miúdos a aguardar mais algum tempo para os poder rever em palco. Mas todo o tempo vale a espera quando alguém nos dá com a alma. Todo o tempo valeu a espera para escutar a sirene que deu o mote para o espetáculo, que se iniciou com um dos temas mais agressivos do grupo da Margem Sul: 'Loja (Canção Do Carocho)'. O mesmo terão pensado os Da Weasel, que se desdobraram em sorrisos - sobretudo Carlão, que parecia estar a sentir uma felicidade ainda mais extremada que as de quem esteve tantos anos sem o ver em palco, ao lado do gangue. As mãos na cabeça, os olhos azuis a cintilar de espanto, e a língua solta na rima viva do hip-hop hardcore.
Independentemente do facto de este poder ser, ou não, o último concerto de sempre dos Da Weasel (não há qualquer confirmação oficial de que um futuro existe), o que o grupo aqui escreveu foi uma página de história, cheia da 'Força' de outros tempos, os pulmões a cuspir o mais maravilhoso dos venenos. «Custou mas foi, porra!», soltaria o ex-Pacman. Custou, mas as lágrimas de que se falava ali em cima voltaram a escorrer, agora de êxtase. Sal nos olhos e sal nos corpos que gritaram, bem alto, ter a força de mil homens - ou sessenta mil. 'Dúia', a canção que iluminou tantos e tantos bailes de liceu, sobrevoando lentamente o pôr-do-sol. 'Jay', aquela guitarra marada a despejar uma vez mais torrentes de eletricidade pelos amplificadores. 'Dialectos De Ternura' e 'GTA', intercaladas com 'Bomboca (Morde A Bala)', trinta segundos em que os Da Weasel reflectem o seu lado mais grindcore. O rosto de Manel Cruz em palco, durante 'Casa (Vem Fazer De Conta)', o mesmo Manel que atuaria, dali a pouco, no Palco Heineken. E a letra de 'Mundos Mudos', que dá um toque de dor à própria história dos Da Weasel, antes de ter sido anunciada a reunião: Pode ser que o passado fique por onde deve estar / No pretérito imperfeito...
O público, que veio aqui para reviver o passado, acabou por existir apenas no agora. Uma hora e meia em que o tempo parou, em que os Da Weasel simplesmente pousaram e, como Fernando Pessoa escreveu, disseram: «arre, vou existir!». Foi com 'Re-Tratamento', tema que até os nossos avós sabem de cor e salteado, que se assinalou o momento mais arrepiante: um mar enorme de gente a cantar o refrão a cappella, sem que outros gritos ou palmas se escutassem, sem que o feitiço fosse quebrado. Virgul bem explicou: «esta pode ser a última vez, pedimos a ajuda de todo o pessoal!». 'Bora Lá Fazer A P*** Da Revolução', só Carlão e Pedro Quaresma, foi igualmente bonito, mas não lhe chegou perto no que toca a erguer os pêlos do antebraço. 'Todagente' e 'Toque-Toque', esta última com um prego de Carlão («Demos alguns pregos mas temos uma responsabilidade acrescida», acabaria a explicar Virgul: «Temos cá os nossos filhos, que não existiam antes»), levou o MC a descer para junto do golden circle para erguer a sua própria filha nos braços. E, sem encore mas com hardcore, a Doninha-Cinderela saiu do palco depois de 'Adivinha Quem Voltou', 'God Bless Johnny' e o essencial 'Tás Na Boa', despedindo-se até daqueles que lamentavelmente já não estão entre nós para testemunhar o seu retorno: o que se escutou no PA, por cima dos abraços, e depois do Verbo, foi 'A Palavra', de Bernardo Sassetti. Não víamos a hora de ter o people todo, todo o people reunido. Saímos dali em ritmo de beatitude. Os Da Weasel agradeceram ao público. Nós agradecemos aos Da Weasel. Por tudo e mais alguma coisa.
Horas antes, no Coreto, Evaya conseguiu deixar-nos de boca aberta: como é que uma música tão estranha(mente extraordinária) encontrou o seu espaço num festival como o NOS Alive? Ainda bem, porque a sua voz tímida, que ia deslizando por camadas suaves de eletrónica, afigurou-se como uma das belíssimas surpresas desta edição. Pensámos nela como uma Síria mais pop e menos experimental, é possível que Evaya tenha passado boa parte dos últimos anos a ouvir os Ermo e todo o catálogo da Cafetra. Dona de uma voz sonhadora e glossolálica, Evaya foi saltitando como uma fadinha por temas como 'Na Dança da Mudança', 'Contemplação' e 'Atenção', ao mesmo tempo que admitia ter pensado que «não ia estar ali ninguém». Quem esteve - e quem prestou atenção - terá saído extremamente agradado.
As HAIM, que tinham como tarefa aquecer o público para os Da Weasel, acabaram por não aquecer sem arrefecer. No palco, lia-se o título do seu terceiro álbum de estúdio, "Women In Music", que é também sua definição: três irmãs que ora andam pelo rock mais bojudo, ora se atiram à pop de guitarras mais descomplexada. Equipadas de biquíni por causa do calor, as norte-americanas passaram por temas como 'Now I'm In It' e 'Want You Back', antes de um momento bizarro patrocinado por Este Haim: a baixista fingiu atender uma chamada telefónica de "Dominic", um tipo imaginário com o qual teve relações sexuais numa casa de banho do festival Mad Cool, em Madrid, onde atuaram antes do NOS Alive. A "chamada" deu o mote para '3 AM', deixando algumas pessoas a perguntar o que raio se passava. Antes, deixou o maior elogio de sempre ao público português: «Vocês beijam bem».
A enchente rivalizava com os Da Weasel, e os Imagine Dragons não desapontaram quem marcou presença no festival para os ver - e só para os ver. A banda de Las Vegas entrou em palco depois da exibição de uma espécie de curta-metragem, arrancando desde logo com 'It's Time', num espetáculo que foi sobretudo uma celebração: deles, dos fãs, do festival, do direito a ser diferente. «Nunca peçam desculpa por serem quem são», lançou a dada altura Dan Reynolds, vocalista com uns calções capazes de rivalizar com os de Henry Rollins. Musicalmente, porém, os Imagine Dragons estão muito longe do punk hardcore; o que tocam é a pop mais épica que se possa imaginar, o objetivo é o de manterem os corações e as vozes sempre lá no alto. Porque era uma celebração, não faltaram os confettis e os fogos de artifício, nem canções como 'Believer' ou 'Radioactive', a fechar, nem as memórias: «Lembro-me do nosso primeiro concerto [em Portugal], só tínhamos algumas centenas... É uma honra», garantiu Reynolds. A honra, parece-nos, foi dos milhares em frente ao palco.
O NOS Alive irá regressar em 2023, e já há datas: 6, 7 e 8 de julho.
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