A história de “Diamantino”, que chega aos cinemas portugueses na sexta-feira, passa-se em Portugal, mas num país de fantasia. “É um universo paralelo, que pega no lado mais complicado e escuro do que está a acontecer hoje em dia, mas fizemos uma comédia disso tudo”, referiu o realizador português Gabriel Abrantes, em entrevista à agência Lusa.

Gabriel Abrantes e o norte-americano Daniel Schmidt queriam, na primeira longa-metragem, “fazer um filme principalmente sobre uma pessoa muito rica que adotava uma pessoa muito pobre e os problemas políticos inerentes a essa situação”.

Aí entraram “a crise dos refugiados e um certo tipo de racismo ou xenofobia que existe na Europa, e daí veio o Brexit e o [presidente dos Estados Unidos, Donald] Trump e a muralha do Trump”. “E inventámos esta ideia de Portugal como um país que pega em todas estas ideias: é um Pegxit, em vez de um Brexit, a muralha em vez de ser entre os EUA e o México é entre Portugal e Espanha, aplicámos estes eventos contemporâneos a Portugal, a um Portugal fantástico, que não existe”.

As ideias foram chegando como “uma bola de neve”. “Pegamos numa ideia e vai aumentando e aumentando. No início era um filme que brincava com figuras como a Angelina Jolie, a Madonna, a Mia Farrow, que fizeram adoções internacionais, e brincar um bocado com problemas associados a isso. Tirar um puto do seu contexto e levá-lo para outro lado do mundo, um puto que nunca viu riqueza e de repente está numa das maiores mansões de Los Angeles, toda essa complexidade socioeconómica e psicológica dos miúdos, querer brincar com isso”, explicou Gabriel Abrantes.

Quando pensaram em quem seria “a celebridade mais conhecia internacionalmente, mais rica de Portugal”, decidiram que a personagem central do filme seria um “craque de futebol, que adotava um miúdo refugiado”.

Diamantino, o protagonista do filme, interpretado por Carloto Cotta, é o melhor jogador do mundo, cuja carreira entra em crise depois de falhar um penalti num jogo decisivo.

Em determinados momentos do filme, as parecenças físicas entre Carloto Cotta e aquele que muitos dizem ser o melhor jogador do mundo, Cristiano Ronaldo, são evidentes, mas qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência.

“Estamos a falar de um universo absolutamente satírico. É uma comédia inteligente e não existe colagem absolutamente nenhuma, porque existiram muitos ícones que o Gabriel e o Daniel foram trazendo”, referiu a atriz Anabela Moreira, também em entrevista à Lusa, que no filme é uma das irmãs de Diamantino.

“Por acaso temos o melhor [jogador de futebol] do mundo, que é o nosso Cristiano, mas este Diamantino não tem nada que ver com o Cristiano”, acrescentou a atriz Margarida Moreira, gémea de Anabela, que dá vida a outra irmã de Diamantino.

Os realizadores quiseram “fazer uma paródia e satirizar este género de estereotipo do craque de futebol – com atenção ao corpo, ao físico, a musculação, as sobrancelhas todas depiladas, o peito depilado, o brinco de diamante, todo um certo tipo de vaidade -, mas o Diamantino também pega um bocado do [futebolista francês] Zidane, do [basquetebolista norte-americano] Michael Jordan, do [pugilista norte-americano] Mike Tyson, do [ciclista norte-americano] Lance Armstrong e o ‘doping’ que houve na equipa dos EUA durante a Volta a França, dos atletas da China e da Rússia que durante as Olimpíadas tiveram ‘doping’ financiado pelo próprio Estado”.

A criação da personagem principal “pega também em referências fora do desporto, como no ‘Cândido’, de Voltaire, personagem super ‘naïf’ – o mundo está a cair aos bocados e ele continua otimista – ou no Forrest Gump, que é o ‘naïf’ que atravessa [no filme com o mesmo nome] os momentos mais complicados da história política norte-americana”.

Diamantino, a personagem, “é um bocado um Frankenstein destas personagens todas e encontra-se a si próprio”. “Com o Carloto trabalhámos imenso e inventámos uma personagem que é um novo tipo de herói português”, referiu Gabriel Abrantes.

Na construção da personagem, Carloto Cotta tentou criar “uma imagem que todas as pessoas pudessem reconhecer, ninguém em particular, sendo que quase todos os jogadores de futebol hoje em dia usam o mesmo penteado, andam em carros semelhantes e até as mulheres normalmente são parecidas”.

Apesar das semelhanças com Cristiano Ronaldo, a personagem, salienta o ator, “é muito mais do que isso”. Carloto Cotta reforça a ideia de que Diamantino é “quase uma espécie de Frankenstein, porque mistura outro tipo de referências e vai muito mais fundo do que uma imagem icónica de um jogador de futebol, seja ele quem for”.

“Quem for ver o filme vai perceber isso. Parte desse cliché, desse lugar comum, para explorar coisas muito mais profundas”, afirmou.

O trabalho de preparação exigiu muito do ator a nível físico. “Pensava que ia ter seis meses para preparar, e afinal foram três semanas. Acordava às 04:30 corria dez quilómetros, às 07:30 ia fazer um treino, ia para os ensaios, depois ia fazer outro treino. No meio disto tudo, não podia comer açúcar, não podia comer hidratos de carbono e essas coisas todas. Ninguém me aturava nessa altura”, recordou.

Ao longo do processo, acabou por dar a Diamantino um sotaque dos Açores, ‘culpa’ do ‘personal trainer’ que o acompanhou ao longo das semanas de preparação física, o açoriano Pedro Medeiros.

“Ele era bastante incisivo comigo e motivador e o sotaque dele ficava-me na cabeça, eu ia dormir com aquilo na cabeça, ia ler o guião com aquilo na cabeça, então uma vez que estava a estudar as cenas fez-se um clique – ‘isto se calhar até resulta’ – e depois li o argumento todo à luz dessa nova ideia, e sugeri ao Gabriel e ao Daniel, eles gostaram da ideia e fomos para a frente com isso”, partilhou o ator.

Carloto Cotta reforça a ideia de que “Diamantino” é um filme que “mistura muitos géneros”. “À partida parece só uma comédia louca ou um delírio ‘non sense’, mas depois é uma sátira política e uma reflexão sobre os medos coletivos, o perigo de uma ameaça de extrema direita, o perigo do preconceito, o perigo da impunidade das pessoas que roubam milhões e quase não pagam por isso ou não pagam mesmo”, referiu.

Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt já tinham trabalhado juntos antes, mas em curtas-metragens.

“Para muitos realizadores – e eu não me safei dessa -, de ‘curtas’ para ‘longa’ é uma passagem que pode demorar e pode ser difícil. Para mim e para o Daniel foi extremamente longo”, referiu Gabriel Abrantes, recordando que o primeiro apoio para o filme, depois de este estar escrito, foi conseguido em 2012.

“Só rodámos em 2016, saiu em 2018 e agora nos cinemas só em 2019. Já foi uns sete ou oito anos para fabricar o filme, mas estou muito feliz de ter chegado a este fim e está a ter esta resposta bastante positiva da crítica e também do público”, disse.

Prova disso é o Grande Prémio da Semana da Crítica do Festival de Cinema de Cannes, em França, que o filme venceu em maio.

“Não estávamos nada à espera”, confessou o realizador, que, para a estreia em Portugal, está “mesmo a cruzar os dedos à espera que as pessoas tenham coragem de ir ver este filme que é um bocado maluco e pode parecer muito estranho, mas que é um divertimento e é para ser uma comédia que toda a gente possa ver e possa curtir e rir”.

“Mas também tem referências a situações políticas que todos nós confrontamos no dia a dia nas notícias e que nos faça pensar um pouquinho sobre isso”, partilhou.

Também Anabela Moreira espera que as pessoas “vão descobrir que é uma comédia inteligente, onde a sátira política é pertinente, onde existe a abordagem de uma série de temas que são pertinentes”, bastando para isso darem “uma oportunidade a si próprias de entrarem naquela viagem, porque tem que se entrar e há coisas em que tens de estar disponível”.

Carloto Cotta espera que as pessoas “vão ao cinema e que deem uma oportunidade”. “Como diz o Diamantino ‘toda a gente merece uma oportunidade, o Portugal merece uma segunda oportunidade’ e acho que o cinema português também merece uma segunda e uma terceira oportunidade”, defendeu.

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