Nasceu para dar uma resposta social às necessidades da vizinhança, na Freguesia de Santo António, em Lisboa. Batizada de Associação Boa Vizinhança, a instituição particular de solidariedade social (IPSS) criou uma rede de voluntários, ergueu uma loja social e estendeu a ação ao lado cultural e ambiental.
A partir da freguesia, o projeto de um grupo de amigas cresceu com o tempo. Em ação e responsabilidades. E alargou muito para lá das fronteiras locais. Passou de uma venda pontual no Dia Mundial do Vizinho, num quiosque no Jardim das Amoreiras, e deu um passo de gigante que o fez entrar pelos portões de ferro do Mercado do Rato, de portas encerradas desde 2014. E, a partir daí, o seu impacto chegou a outros territórios e passou a ser global.
Onde outrora se comercializava peixe, carne e fruta, a realidade do atual número 64 da Rua Alexandre Herculano, em Lisboa, é outra. Paredes-meias com um moderno supermercado, a íngreme e alcatroada rampa antecipa um novo mundo de oportunidades.
“Dona Ajuda – Loja social da boa vizinhança”. Está feito o anúncio dos novos inquilinos de quase todo o espaço do histórico mercado de cuja memória sobrevivem ainda dois restaurantes, que coabitam com esta ampla loja social. Nas suas 22 bancas vende-se roupa em segunda mão, livros, CD’s, discos, filmes, artigos de decoração e brinquedos. Mas não só. Há mais.
“Nem luxo, nem lixo, é digno de dar o que é digno de usar”. O slogan, escrito numa parede, antecipa o lema da IPSS.
Processos simples, ajuda rápida. Roupas, livros e discos
O SAPO24 visitou a Dona Ajuda, guiado por um dos voluntários, Pedro, e ouviu a história da instituição pela boca de Cristina Velozo, presidente da associação.
De conversa fácil e desempoeirada, Pedro acompanha com o dedo a rapidez da voz, ao mapear as zonas de venda do antigo mercado datado de 1927.
“Somos uma loja social e o conceito é muito simples. Tudo o que está aqui são doações que nos chegam. Quase tudo particular. Também temos algumas empresas, mas é pouco”, sumariza.
As doações que recebem transformam-se em venda com fins sociais ou ganham nova dinâmica e transformam-se em novas doações.
“A roupa passa por um processo de triagem antes de ser colocada na loja e depois sai de duas formas. Ou é vendida diretamente ao público, quem compra, paga na caixa, ou aos beneficiários referenciadas pelas associações”, refere.
“Todo o dinheiro das vendas da loja serve para dar apoio às associações, seja na parte social, mas também cultural”, especifica.
Explica o processo de triagem feito num espaço fechado e habitualmente preenchido até ao teto. Um trabalho feito por mão-de-obra voluntária.
“Coisas que estão boas, mas não temos espaço, por exemplo, uma t-shirt branca, vai ter utilidade, mas mais vale se calhar ir diretamente para uma associação beneficiária do que ser posto à venda aqui”, esclarece. “Produtos estragados vão diretamente para uma empresa, a Sarah Trading, que paga à tonelada”. O resto vende-se a preços acessíveis a qualquer bolsa.
Abre a porta do armazém dos fundos onde, entre estreitos corredores, peças de vestuário, vestidos, blusas, calças, sapatos, malas e tudo o mais que cabe na imaginação da compra e venda estão catalogados por estação do ano. Uma disposição de tal forma organizada que faz corar qualquer grande marca internacional de moda.
“Temos boa eficiência. Devido aos nossos processos serem relativamente simples, conseguimos ajudar rapidamente”, enfatiza
Pedro fez-se voluntário pela força da vontade altruísta. Aponta para um quadro que mostra os números de novembro de 2024 e o bolo de 2023. Em voluntários, apoios, famílias apoiadas e artigos doados. “Estamos a crescer”, sublinha, orgulhoso.
Um crescimento multidisciplinar que se estendeu para lá das bainhas da roupa usada e fez uma parceria com a fruta-feia.
A velocidade do discurso do voluntário aumenta à medida das necessidades de explicação sobre todos os campos do raio de ação.
Saltita entre as duas naves de venda. Do lado esquerdo, mais roupa e, do lado direito, a P.R.A.Ç.A, mais cultural. Dois mundos separados pelo alcatrão da tal rampa. “Este lado, mais do que uma loja social, é um espaço de eventos. Tivemos recentemente um almoço com 50 pessoas da Câmara do Comércio Portugal Holanda”, exemplifica.
“Temos espetáculos culturais, concertos e workshops”, adianta. “Há espaço para as artes, escultura, pintura e não cobramos nada aos artistas”, assegura.
“Temos um atelier de costura, fazem pequenos arranjos e trabalham com a Dressagirl, uma instituição americana que faz vestidos para crianças em África. Somos um polo associado”, carateriza.
“Aqui, temos livros, divididos por temáticas, infantis, arte, cinema, design, fotografia, arquitetura e zona da ficção”, cataloga. “Fazemos também ações de voluntariado com empresas que nos ajudam em função das nossas necessidades e temos ainda leilões solidários”, finaliza, antes de passar a palavra a quem melhor está habilitada a falar deste projeto que há muito saltou as fronteiras de uma freguesia de Lisboa.
Um cartão cliente para famílias referenciadas: 40 euros de plafond por mês
“O Pedro tirou gestão na Universidade Católica. Começou a trabalhar na VDA (sociedade de advogados) e era voluntário aos sábados. A Dona Ajuda começou a crescer, e achávamos que tínhamos de pôr um gestor e, desde agosto, está a trabalhar connosco. É um fora de série, é o homem dos números, da gestão temperada com humanismo”, elogia Cristina Velozo.
Mentora da obra, fala do crescimento da Dona Ajuda. “Nos últimos anos deu um pulo, um bocado quase sozinha. É aquele género de projetos que parece que ganham asas e descolam. Tínhamos começado num registo mais local, de fazer aqui só qualquer coisa em termos das instituições da zona, apoiar o que se passava aqui à volta, e depois, de facto, as grandes invenções acontecem muitas vezes por acaso, descobrimos um modelo que funciona”, refere.
“A ida para o mercado, espaço cedido pela câmara de Lisboa, a sorte de ter voluntários com competências muito variadas e as pessoas não saberem o que fazer às coisas a que nós damos nova vida e um destino sustentável, ecológico e social. É a economia circular no seu melhor”, discorre ao falar do modelo que vingou.
Feito esse trabalho de campo, “depois é fácil arranjar instituições e pessoas que precisam, não é preciso procurar muito”, assegura. “O apoio mais musculado, digamos assim, é feito junto às instituições com quem trabalhamos”, realça.
Por opção, a Dona Ajuda não tem assistentes sociais. “As instituições que fazem o acompanhamento no terreno das pessoas apoiadas, referenciam-nos essas pessoas e dizem: estão aqui 10 famílias, com estes nomes e estes agregados familiares. As pessoas vão à Dona Ajuda, fazem um cartão cliente com limite de 40 euros por pessoa por mês e podem fazer as compras que quiserem”, detalha.
“Garantimos o prioritário, que é, no fundo, a roupa, sapatos ou lençóis, mas também possibilitamos, que é uma coisa que nos dá muita alegria, um aconchego de futilidade, que não é futilidade nenhuma, mas é comprar um cachecol, um jogo para as crianças ou um livro quando não o podem fazer [de outra forma]”, enumera.
“Funcionamos como uma loja em segunda mão para quem pode comprar. E esse dinheiro [obtido nas vendas] é para apoiar as nossas instituições”, explica.
Dá dois exemplos de como as vendas em loja produzem efeito imediato. “A Casa do Gaiato precisou há dois meses de mudar o telhado. Um lar no Sobral de Monte Agraço não tinha cama articulada para dois velhinhos”. Entram em campo e resolvem.
Continua. “Alguém nos diz que é preciso um frigorífico, na reunião de direção [mensal] a pessoa leva esse pedido, qual é a instituição e compramos o frigorífico na semana a seguir. Temos esta ação muito rápida”, sintetiza.
Ao todo, apoiam “à vontade 50 instituições”, número atirado por alto, instituições que já não se resumem à vizinhança e o raio de ação e impacto já não é meramente local. “Já apoiámos projetos no Sudão, no Zimbabué, nos PALOP, Guiné, Cabo Verde. Somos globais”, remata.
Vestuário emprestado para teatro emergente, um coro e um prémio literário
A dirigente e fundadora da Dona Ajuda recua à mudança para o ex-mercado do Rato. “Estava completamente abandonado”, recorda. Mudaram-se e mantiveram toda a estrutura, por várias razões. “Primeiro, porque não temos dinheiro para mudar. E depois, achamos que é um património da cidade, fizemos e temos feito algumas pequenas obras de conservação, mas tentamos não mudar nada da traça estrutural do mercado”, acrescenta Cristina Velozo.
Recupera o core da ação social para falar de uma nova roupagem. O vestuário e calçado que ocupa a montra do peixe, carne e legumes, antes de ser vendida, começa por ter uma outra finalidade. “Estamos a apoiar companhias de teatro emergentes e emprestamos os figurinos. Os artistas vão à loja, escolhem a roupa, fazem o seu espetáculo e depois devolvem”, conta.
A Dona Ajuda alargou, entretanto, o âmbito. “Há 15 dias, começámos um projeto de Coro Comunitário e já estamos com 50 pessoas. É um maestro novo, de 30 e poucos anos, mas que tem muita experiência em coros comunitários”, informa.
Homenagearam um amigo da associação ao introduzir “um prémio literário, 10 contos, o parente pobre da literatura. Fazemos uma edição de autor e este ano tivemos 90 contos a concurso”, quantifica.
Da literatura, “onde já temos um clube de leitura, mas podíamos ter dois ou cinco”, segue para a música. “Temos uns parceiros (ARCA), um coletivo de músicos, espécie de incubadora de jovens talentos, estavam em Monsanto e começaram a trabalhar connosco e já fizeram dois espetáculos [na Dona Ajuda]”.
De segunda a sábado, o espaço está aberto às várias comunidades. “Num mundo ideal, num cenário ideal, a ideia era preencher todos os dias com workshops, conferências, cultura, tricô, pintura, etc, nessa área há muita coisa ainda que se pode fazer”, sublinha.
Crescer na parte ambiental
O crescimento de voluntários e doações é notório, mas a Associação Boa Vizinhança não quer ter dores de crescimento. “Isto tem corrido bem, porque tem crescido tudo um bocado harmoniosamente. Aumenta o número de doações, aumenta o número de voluntários, aumenta o número de beneficiários e não foi de um dia para o outro”, conta.
Faz o balanço e olha para o que pode ser no futuro. “Vai muito para além da roupa e é muito mais do que uma loja social. A nossa ideia é, de facto, crescer, por exemplo, na área ambiental, que está muito incipiente ainda”, assume.
A esse propósito recorda a vitória no projeto do Orçamento Participativo da CML, Lisboa Participa 2021. “O projeto chamado Reviravolta foi o mais votado”, relembra, projeto que visa reciclar e reutilizar desde “brinquedos” aos “eletrodomésticos”, esclarece Cristina Velozo.
“Estamos a patrocinar um projeto chamado Urban, que são microflorestas urbanas”, adianta. “Além da parte ambiental, vai ter uma parte importantíssima em termos pedagógicos para os doentes no Júlio de Matos. Fazemos um banco de frascos, juntamos rolhas, tampas e reciclamos os têxteis”, acrescenta ainda.
“Temos uma série de atividades ainda em carteira, há ainda imensa coisa para fazer e a associação ainda aguenta crescer mais, portanto a ajuda voluntária e social vai onde a imaginação terminar”, conclui a responsável.
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