Este artigo foi escrito originalmente a 14 de fevereiro de 2017. Recuperamo-lo hoje, 16 de agosto de 2018, dia em que o mundo se despede de Aretha Franklin.


A notícia não deixou de ter o seu quê de surpresa: na passada semana, Aretha Franklin, rainha incontestada da música soul, anunciou a sua “reforma”, mais de sessenta anos após ter dado início a uma longa e galardoada carreira com "Songs of Faith", álbum gospel que gravou quando tinha apenas 14 anos, com a ajuda do seu pai, Clarence Franklin, pastor de uma Igreja Baptista em Detroit. De lá para cá, Aretha não só influenciou toda uma geração de cantores, como George Michael e Whitney Houston (com quem colaborou), como ainda chegou a uma marca comercial invejável – cerca de 75 milhões de discos vendidos por todo o mundo –, pelo meio conquistando 18 prémios Grammy e “dando” o seu nome a um asteróide descoberto pela NASA em 2010.

Tida como uma das grandes vozes do período de luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, ela que foi amiga de Martin Luther King, Jr. e galardoada com a Medalha Presidencial da Liberdade em 2005, é dela a voz que se ouve numa das canções mais emblemáticas da pop dos anos 60: “Respect”, original de Otis Redding de 1965 que, dois anos depois, ficou para sempre associado à cantora. É sobretudo em “Respect” que se pensa quando se fala de Aretha, sem desprimor para os outros grandes singles - “Baby I Love You”, “Chain of Fools”, “Rock Steady”... - que editou.

Uma associação que é feita, evidentemente, pela qualidade da canção. No início é a secção de sopro e a guitarra, a dar o balanço necessário, em registo funky. E, de imediato, é a voz de Aretha a apoderar-se por completo do tema de Otis, transformando o lamento de um homem desesperado num hino às mulheres e num apelo à igualdade e ao respeito entre géneros. Não espanta que muitos, mesmo na altura da sua edição, vejam na versão da cantora uma pequena revolução feminista, feita em pouco mais de dois minutos. Aliás: é de Aretha a parte mais emblemática da canção, quando perto do final soletra a palavra “respect”, letra por letra, de forma a que o intuito que lhe atribuiu não se perca.

A palavra, portanto, às mulheres; neste caso, a uma mulher, detentora de uma voz que nos merece o mesmo respeito: Marta Ren, que com os “seus” Groovelvets editou, em 2016, Stop Look Listen, portento de música soul feita em Portugal e que foi considerado um dos melhores discos do ano por várias, e respeitáveis, publicações. Marta, que descobriu a música de Aretha Franklin «por volta dos 4, 5 anos», salienta – como não poderia deixar de ser – a voz da norte-americana. «Os meus pais tinham aulas de ginástica, e lembro-me que a playlist era de categoria. O “Respect” rolava lá e em casa, sempre adorei o groove e a vibe do tema», conta.

A sua própria música é, naturalmente, influenciada por Aretha. A explicação é simples: esta é «a rainha da soul», e poucas, desde então, lograram alcançar esse estatuto. Agora que a sua reforma foi anunciada, o trono deixará de estar ocupado, o que poderá permitir às “rivais” (se acaso houver rival para a voz de Aretha) subir uns degraus na hierarquia. «Acho que a Aretha Franklin tem uma obra e uma carreira vasta, e muito rica, que falará por si para sempre», explica Marta, que não deixa de expressar uma certa tristeza. «Por egoísmo, porque nunca tive a oportunidade de a ver cantar ao vivo», esclarece, e pergunta: «Se ela acha que chegou a hora de se retirar dos palcos, com tudo que já nos deu, quem somos nós para questionar essa decisão?».

Depois de tudo o que Aretha nos deu, de facto não a poderemos questionar. Aliás; quem somos para questionar as decisões de uma mulher, ainda para mais a de uma mulher tão poderosa quanto Aretha Franklin? O “Respect” que ela nos cantou teremos de o aplicar, uma vez mais, agora a esta nova realidade. Um “Respect” que ela ensinou às gerações de mulheres de 1967, 1977, 1987... e poderá continuar a ensinar em 2017. «Todas as mulheres enchem o peito e abrem bem a boca para cantar R-E-S-P-E-C-T, find out what it means to me... [Canções como esta] Podem ajudar as pessoas a terem respeito por elas próprias, e consequentemente a serem respeitadas», explica Marta.

“Respect”, palavra de apenas sete letras que guarda dentro de si, e através da interpretação de Aretha, a vontade de um grupo inteiro. Mesmo que ainda haja muito por fazer, as alterações vividas na sociedade neste último meio século, em que as mulheres deixaram de ser as donas da casa para almejarem tornar-se donas do mundo, têm também ligações a esta canção, de um amor tornado bandeira. Nada mais lógico, portanto, que fosse lançada em pleno Dia de São Valentim. É mais que uma declaração de lealdade à pessoa amada, que durante milénios tem sido requisitada apenas às mulheres – a velha máxima do “Don Juan” (o homem que se deita com imensas mulheres) vs. “a prostituta” (a mulher que se deita com imensos homens). É um sério aviso de que, a partir daqui, o campo já não estará inclinado.