Diz o provérbio popular que a necessidade aguça o engenho. No caso, a necessidade não é apenas uma. Há a da música, ao mesmo tempo presente e ausente da nossa vida em tempos de isolamento social: à beleza a que temos assistido, vinda de janelas italianas e espanholas, contrapõe-se a crise económica que atravessa e atravessará todo o setor da cultura, atingindo especialmente os artistas menos conhecidos e que não dispõem das redes de segurança providenciadas pelas grandes editoras.
A esta junta-se a necessidade de normalidade, posta em quarentena pela quarentena ela própria. "Normal" seria poder ir para uma qualquer sala de espetáculos, encontrar ou reencontrar amigos, beber umas cervejas e assistir a um concerto, rodeado de pessoas, de fãs, de melómanos, sem o medo do desconhecido que nos tem gasto as energias e a sanidade. Um "normal" que foi substituído pela necessidade - incontornável - de se ficar em casa, longe do mundo que se ama, até que esta pandemia se restrinja apenas e só aos livros de história e/ou a uma página na Wikipedia.
O engenho partiu do @FestivalEuFicoEmCasa, iniciativa que pretende não só alertar para esse explícito facto - ficar em casa durante uns tempos é o melhor que podemos fazer para combater o vírus - como também para as dificuldades que a música e a cultura em geral, especialmente num país tão curto (de vistas e de território) como Portugal, irão ter nos próximos meses. Os "contratados" foram muitos, de nomes maiores aos mais pequenos, de nomes históricos aos mais recentes: Fausto Bordalo Dias, David Fonseca, Samuel Úria, Chico da Tina, Carolina Deslandes, Xinobi, Pedro Abrunhosa... Uma lista que ninguém desdenharia ver num evento de dimensões bem maiores que a de um ecrã de telemóvel.
Foi essa, aliás, uma das principais críticas dos fãs e melómanos ao festival: só quem tivesse conta no Instagram e um smartphone à mão é que poderia assistir aos concertos, que não ultrapassaram a meia hora de duração. Ao silêncio – das ruas, dos centros comerciais, dos parques de estacionamento, dos postos de abastecimento, das estações ferroviárias – juntou-se a ausência. Neste caso, do público em concertos. E, fôssemos nós cínicos, diríamos que o @FestivalEuFicoEmCasa é o melhor festival de música do mundo, já que estamos todos nas grades e não há ninguém a incomodar-nos, filmando com o seu telemóvel à nossa frente... Mas, fora de brincadeiras, isso pouco importou. Durante cada uma dessas meias horas, quem sintonizou pôde, por momentos, esquecer os temores e aflições provocados pelo Covid-19. E pôde – melhor que qualquer outra coisa – lembrar, ainda que brevemente, o que é isto de ser humano.
Nessa onda, e neste primeiro dia de festival, ninguém o fez melhor que Boss AC. Não porque tenha dado um concerto extraordinário, até porque será difícil dar um concerto “extraordinário” nestes moldes virtuais. Mas porque foi o mais humano de todos os participantes na iniciativa, quase como que colocando a música (que foi surgindo, de 'Boa Vibe' a 'Hip Hop (Sou Eu És Tu)' a 'Lena') em segundo plano. Mais que cantar ou versar, o veterano rapper deu a quem assistia uma dose de bom humor em família, fosse por ter tido as suas filhas diante da câmara («ó pai, 'tás a suar» / «o papá 'tá armado em artista...»), fosse por ter jantado uma cachupa perante uma audiência de mais de 20 mil pessoas («a Altice Arena já não chega para o Boss AC!»), fosse por nos ter feito cair a ficha ao dizer que 'Sexta Feira' “doía”, já que «vamos mesmo precisar de emprego». Só um homem, encerrado em sua casa, rodeado daqueles que mais ama e a mostrar esse mesmo amor – do qual tanto precisaremos nos próximos dias – ao mundo. Isto não foi um concerto. Foi um espetáculo, um espantar do medo, do desconhecido. Se lhe tivermos de colocar uma palavra, que ela seja “obrigado”.
Dado que todas as prestações foram transmitidas através do Instagram, também foi possível – num jogo algo irrelevante, mas ainda assim interessante – perceber quem ganhou no campeonato das visualizações: Diogo Piçarra, que atuou imediatamente a seguir a Boss AC, e que no primeiro minuto de direto já contava com 35 mil pessoas a vê-lo, número esse que subiu até um máximo de 58 mil (ou «um Estádio de Alvalade», conforme brincou, mostrando as suas cores em semana sem bola). Longe do público que costuma encher os seus concertos, Piçarra apresentou-se isolado, interpretando temas como 'Tu e Eu' e 'Paraíso' à guitarra, juntando-lhes um medley de Linkin Park ('Crawling', em versão mais sentida que a original, 'Numb' e 'In The End') ao piano. E ainda conseguiu mostrar um trecho de uma canção nova, que «em princípio» terá como título 'Silêncio'.
Silêncio, o supracitado, e o dos músicos que costumam acompanhar Cristina Branco. A fadista apresentou-se sozinha, a cappella, mostrando toda a força da sua voz em temas como 'Ai Esta Pena De Mim' ou 'Água e Mel', o ponto alto da sua atuação, onde a maior lástima foi não escutar, imediatamente a seguir, uma sala cheia a aplaudi-la. Mostrando também dois temas de “Eva”, novo álbum a sair brevemente, deixou uma (de muitas) mensagem aos que a ouviam: «O importante é que estejamos seguros em nossas casas, com a nossa família. Espero que os dias voltem a ter nome». Imediatamente pensamos que esta última frase daria um excelente fado. Se Cristina Branco nos estiver a ler, fica a dica.
Ao longo do dia, foi possível testemunhar vários momentos introspectivos – nomeadamente, todas as mensagens e apelos deixados pelos músicos –, mas também alguns divertidos, como o espetáculo dado por David Fonseca, que supriu a ausência de aplausos com uma gravação bem colocada entre canções. Por entre “confissões” («tenho feito muitas canções que espero que nunca vejam a luz do dia, porque são terríveis») e histórias envolvendo caixas de supermercados e a mulher de Jorge Palma, um dos momentos do dia: 'Borrow', resgatada aos anos 90 e aos Silence 4. Como alguém escreveu nos comentários, e muito bem, «aposto que está tudo a cantar nostalgicamente». Difícil era não o fazer.
Como se estivesse num Coliseu ou bem maior que isso, João Pedro Pais mostrou-se um verdadeiro entertainer, terminando 'Havemos de Lá Chegar' ou 'Louco Por Ti' com os maiores gritos rock n' roll do dia, apresentando-se como «um monólogo musical» e pedindo aos fãs (como Luís Severo, que encheu o direto de corações e comentários emocionados) para que fizessem «o favor de ser felizes». Uma felicidade que Samuel Úria transformou mais tarde em ternura, tocando 'Mãos' (lembrete: lavem-nas), 'Fica Aquém' ou 'Teremos Sempre Paris', pelo meio dando a conhecer um tema novo e dedicando 'É Preciso Que Eu Diminua' ao falecido Xico da Ladra.
Encarregue de abrir as hostes, Bárbara Tinoco não escondeu o nervosismo, mas encantou com temas como 'Outras Línguas' e 'Antes Dela Dizer Que Sim', numa guitarra que, disse, lhe foi emprestada por Miguel Araújo. André Henriques abandonou momentaneamente os Linda Martini para tocar as canções que compõem o seu primeiro disco a solo, e que literariamente não fogem àquilo que já lhe conhecemos na banda. E antes de Boss AC houve também quem tivesse de lançar alguns olhares à família: Elisa Rodrigues, cujo filho bebé acordou a meio do concerto (que contou com um stream de um “convidado especial”, Feodor Bivol, numa espécie de Inception do streaming), e Filipe Gonçalves, cuja filha, Maria, berrou desalmadamente quando o músico afirma que iria tocar uma canção a ela dedicada. Buba Espinho, cujo lag não deixou perceber grande coisa do concerto, o rapper algarvio Domi e Branko, com o after que se exigia, fecharam o cartaz do primeiro dia.
Amanhã, cá estaremos novamente de olhos postos no ecrã. E no futuro. Entre os alinhavados estão nomes como Tiago Nacarato, Filho da Mãe, André Sardet, Chico da Tina, Márcia e Noiserv, entre outros.
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