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Quando o meu irmão e eu éramos crianças, o meu pai fez‐nos prometer‐lhe que passaríamos com ele a véspera do Ano Novo de 2000. Recordou‐nos várias vezes esse compromisso ao longo da nossa adolescência e a sua insistência incomodava‐me. Com o tempo acabei por interpretá‐la como o seu desejo de estar vivo para essa data. Ele teria setenta e dois anos e eu quarenta, e o século XX estaria a chegar ao fim. Na minha adolescência esses marcos não podiam parecer mais distantes. Depois que o meu irmão e eu nos tornámos adultos, raras vezes se mencionava a promessa, embora com efeito estivéssemos todos juntos na noite do novo milénio na sua cidade favorita, Cartagena das Índias. «Tu e eu tínhamos um acordo», disse‐me o meu pai com timidez, porventura também pouco à vontade devido à sua insistência. «É verdade», disse‐lhe eu, e nunca mais voltámos a abordar o assunto. Viveu mais quinze anos.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia e por Elisa Baltazar, co-fundadora do projeto de escrita "O Primeiro Capítulo”.

Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar à leitura e à discussão à volta dos livros. Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Para o fim dos seus sessenta, perguntei‐lhe o que pensava de noite, depois de apagar a luz. «Penso que isto já está quase acabado.» Depois acrescentou, com um sorriso: «Mas ainda há tempo. Ainda não temos de nos preocupar demasiado.» O seu otimismo era sincero, e não apenas uma tentativa de me consolar. «Um dia acordamos e somos velhos. Assim sem mais nem menos, sem aviso. É avassalador», acrescentou. «Há anos ouvi dizer que chega um momento na vida do escritor em que já não consegue escrever uma extensa obra de ficção. A cabeça já não consegue conter a vasta arquitetura nem atravessar o terreno traiçoeiro de um romance comprido. É verdade. Já o sinto. Por isso, de agora em diante, serão textos mais curtos.»

Quando tinha oitenta anos, perguntei‐lhe o que se sentia.

– O panorama visto dos oitenta é impressionante. E o fim aproxima‐se.

– Tens medo?

– Dá‐me uma enorme tristeza.

Quando recordo esses momentos, comove‐me de verdade a sua franqueza, sobretudo dada a crueldade das perguntas.

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Livro: "Gabo e Mercedes – Uma Despedida"

Autor: Rodrigo García

Editora: D. Quixote

Data de Lançamento: 26 de setembro de 2023

Preço: € 15,50

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Telefono à minha mãe num dia de semana, uma manhã de março de 2014, e ela diz‐me que o meu pai está há dois dias de cama devido a uma constipação. Não é raro nele, mas garante‐me que desta vez é diferente. «Não come e não se quer levantar. Já não é o mesmo. Está apático. Foi assim que o Álvaro começou», acrescenta, referindo‐se a um amigo da geração do meu pai que tinha morrido no ano anterior. «Desta não escapamos», é o seu prognóstico. Depois do telefonema não me preocupo, porque a previsão da minha mãe se pode atribuir à ansiedade. Há algum tempo que está numa etapa da vida em que os velhos amigos morrem com uma certa frequência. E atingiu‐a com muita força a recente perda de dois dos seus irmãos mais novos e mais queridos. No entanto, o telefonema faz a minha imaginação voar. É assim que começa o final?

A minha mãe, que sobreviveu duas vezes ao cancro, tem de ir a Los Angeles para fazer uns exames médicos, pelo que se decide que o meu irmão irá de avião de Paris, onde vive, até à Cidade do México para estar com o nosso pai. Eu estarei com a nossa mãe na Califórnia. Mal o meu irmão chega, o cardiologista e médico assistente do meu pai informa‐o de que o meu pai tem uma pneumonia e que as coisas seriam mais fáceis para a equipa se pudessem hospitalizá‐lo para fazer mais exames. Parece que tinha estado a sugerir isso à minha mãe pelo menos nos últimos dias, mas ela mostrara‐se reticente. Talvez tivesse medo daquilo que um exame a fundo viesse a descobrir.