No espaço de 35 anos, o homem médio irá nascer, crescer, educar-se, casar e ter filhos. Serve isto para dar uma ideia daquilo pelo qual já passaram os GNR, desde que se fundaram pelo desejo de ver Portugal na CEE, até chegarem à "Caixa Negra" dos dias de hoje. É tempo mais que suficiente para criar culto, explodir de popularidade e, sem pretensiosismos ou arrogâncias diversas, celebrar esse bonito número perante milhares de pessoas que enfrentaram a chuva miudinha para marcar presença nesta noite, desde os amantes anónimos às figuras estelares que adornaram o Campo Pequeno.
Nenhuma delas tão estelar, claro, quanto Rui Reininho, que entra em palco com a classe que lhe é conhecida e reconhecida quando pouco passa das dez da noite, dando início às festividades com “Bem-Vindo Ao Passado”, tema retirado de "Popless" [2000]. Antes disso, o público ali presente havia assistido a um desfilar de fotografias e parangonas antigas, como se os GNR não quisessem que este se esquecesse que o concerto era de celebração histórica. Olhar para o passado antes de prosseguir com o futuro.
Logo ali, aqueles mesmos milhares assistiam à sagacidade muito própria do vocalista dos GNR, que troca “fundido” por outra palavra mais chula de uma forma quase impercetível, mas deliciosa; é esta uma das suas grandes virtudes, o misto entre calão e glamour, Reininho enquanto representante fiel das duas faces de um povo. Jorge Romão, baixista, encarna o espírito rock n' roll, pulando por todo o palco, vestido com uma camisa grunge que lhe confere um certo toque de magia juvenil. Porque os GNR são rock, sim, mesmo que as melodias e os versos ressoem pop acima. Olhe-se para a mui dançável “Vídeo Maria”, um dos seus temas mais irreverentes, que surge logo em segundo lugar no alinhamento e que leva alguns a aplaudir de pé quando termina.
Não há lugar nos GNR para o meio-termo: ou se é fã e se dá azo à exultação ou não se é fã sequer. Durante duas horas de concerto, há espaço para homenagens a Leonard Cohen – não por via da canção, mas pelo “esquecimento” de Reininho em trazer um chapéu semelhante ao do poeta -, há quem se dispa para “Efectivamente” não moralizar, há agradecimentos a André Tentúgal, mais conhecido como We Trust, e que esteve encarregue das filmagens do espetáculo para posterior edição em DVD. E há uma “Ana Lee” em versão bar da praia, como se Mac DeMarco e demais slackers indie houvessem nascido há mais de três décadas.
Em “Homens Temporariamente Sós” entra em palco a primeira convidada desta noite especial, Rita Redshoes, que ainda ficou para “Dançar Sós”, do último álbum dos GNR, no qual também participa. Uma pequena pausa leva-nos à segunda de cinco partes distintas deste concerto, em que alguns temas antigos e outros nem tantos foram apresentados com as roupas de "Afectivamente", que é como quem diz, sem eletricidade ou quaisquer outros juízos sonoros de maior valor. Este será, talvez, o primeiro ponto menos positivo da noite – canções como “Asas (Eléctricas)” e “Sete Mares” mereciam ser escutadas no seu formato original. Mas destacou-se, nestes moldes, uma “Valsa Dos Detectives” que encheu o coração a toda a sala, que fez duas deficientes motoras gingar o corpo e um casal de invisuais sorrir largamente, acompanhados pelo seu cão-guia, enquanto os restantes acompanhavam com palmas.
“Sangue Oculto” vai buscar outra figura importante no passado dos GNR: a de Javier Andreu, que já em 1992 havia cedido a sua garganta a este tema, um dos mais populares da banda portuense, e também um dos mais bem recebidos esta noite. Segue-se “Las Vagas”, a um ritmo alucinante, qual tsunami varrendo a capital. E chega-se à ternura de “Santa Combinha”, espécie de folk psicadélica à portuguesa que conta com a participação de Isabel Silvestre, antes de se escutar bem alto ao que soa essa maravilhosa “Pronúncia do Norte”. Explicamos: soa a 35 anos de uma carreira invejável para milhentas outras bandas.
Não poderíamos sair do Campo Pequeno, naturalmente, sem nos deitarmos ao som das “Dunas”, a canção que fez com que os GNR saíssem desse armário cultuado e entrassem definitivamente no imaginário de toda uma nação. Por esta altura já nos encontrávamos no primeiro de dois encores, e já o público havia respondido ao apelo de Romão para se chegar mais perto do palco. Dito e feito. O final, com uma versão de “Quero Que Vá Tudo Pro Inferno”, de Roberto Carlos, que teve direito a nova participação de Andreu e a um twist de Reininho, tanto a nível de pernas como de sílabas (a sagacidade, uma vez mais: quero que você me aqueça no trabalho... E o público que imagine o resto não sendo difícil fazê-lo), colocou um ponto final numa celebração merecida. O resto foi um post scriptum: “Sub-16” e “+ Vale Nunca”, esta última com a ajuda de um coro infantil. Ficaram de fora, infelizmente, os singles de estreia e os dois primeiros – e maravilhosos – álbuns dos GNR, "Independança" e "Defeitos Especiais". Mas ficou a ideia de que este grupo irá, ao contrário de muitos outros ídolos, viver para sempre. Assim seja.
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