A partir do “último e mais radical” texto do poeta e artista plástico, autodidata, nascido em Évora em 1939, João Sousa Cardoso criou e interpreta um espetáculo que vai estar em cena, de hoje a domingo, na sala Estúdio do Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa.

Pôr este texto em cena é, para o artista e docente que foi aluno do pintor na Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto, entre 1994 e 1996, “um pretexto para ler Álvaro Lapa e um método para melhor ler o artista”, disse Sousa Cardoso à agência Lusa, no final de um ensaio de imprensa do espetáculo, na quarta-feira.

Que imagens lhe sugere aquele texto de Álvaro Lapa, como as coloca em prática e como é que as partilha na leitura com os outros, já que a ideia de leitura partilhada “lhe é muito cara”, são pressupostos do espetáculo.

Daí que não seja de estranhar que, ao longo da peça em que João Sousa Cardoso se apresenta sentado a uma mesa – um dos objetos fundamentais da obra de Álvaro Lapa –, vá discorrendo sobre várias personalidades contemporâneas do artista plástico e que, de alguma forma, lhe marcaram o percurso artístico.

São eles pintores como António Charrua, que deu explicações a Álvaro Lapa quando este frequentava o liceu, ao também professor Joaquim Bravo – nascido em Évora quatro anos antes de Álvaro Lapa – e António Areal, e filósofos como Kant e Nietzsche, que remetem para o curso de Filosofia que Álvaro Lapa frequentou na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, entre 1960 e 1962, e que viria a concluir, no Porto, em 1975.

Mas esta peça é também revisitar o tempo em que João Sousa Cardoso frequentou a Faculdade de Belas Artes do Porto, sem que nunca tenha falado com Álvaro Lapa, mesmo enquanto foi aluno do pintor, disse.

Este trabalho, que sucede aos que o criador realizou em 2008 e 2012 – “A carbonária", a partir de “Porque morreu Eanes”, e “Raso como o chão”, a partir da obra homónima de Álvaro Lapa, respetivamente, é também uma forma de João Sousa Cardoso "voltar" à Faculdade de Belas-Artes do Porto, onde se licenciou, ao mesmo tempo que regressa ao "alentejano exilado no Porto, no frio do norte", como se refere a Álvaro Lapa, desde que o artista começou a lecionar na Faculdade de Belas-Artes, na segunda metade da década de 1970.

Foi o espetáculo “Raso como o chão” que deu origem a este que agora se apresenta em Lisboa, já que o primeiro era um “duelo entre um conferencista e uma cantora”, e este "é uma espécie de 'zoom' sobre 'O conferencista'", espetáculo reposto, em 2018, no Museu de Serralves, numa nova versão, e que sucedeu a "O barulheira", efetuado em 2015, disse.

Por isso, João Sousa Cardoso considera "Sequências narrativas completas" como "mais um texto” sobre o pintor com quem conversou apenas uma vez, quando já não era aluno dele, e quando este recusou o convite que lhe endereçara para participar numa exposição coletiva.

Do professor que “não se relacionava em diálogo com os estudantes, que praticava o monólogo”, não restando aos seus alunos outra coisa que não fosse “embarcar essa viagem ou ficar 'no cais'”, João Sousa Cardoso só mais tarde se apercebeu do “eco, da presença, da voz e da inteligência” de Álvaro Lapa.

“Talvez até só mesmo depois da sua morte, em 2006”, sublinhou.

Num cenário despojado, da autoria de André Sousa, que também pinta e que também foi aluno de Álvaro Lapa, no último ano em que este lecionou nas Belas-Artes do Porto, João Sousa Cardoso monta um espetáculo sobre “o pensador que escreve, pinta, desenha e era professor”, o "pintor que cruza disciplinas e é indisciplinado", e que também, devido aos 30 anos de professorado, constitui "uma constelação".

“Ele próprio desenvolve séries na pintura e na escrita que atravessam décadas, séries que são interrompidas e que retoma mais tarde, tendo também ele próprio uma visão de constelação do seu próprio trabalho”, argumenta.

Uma exposição de pintura de Álvaro Lapa “mostra sempre um Lapa truncado e altamente amputado - tal como um texto é como uma fase da lua, é apenas um quarto crescente que estamos a ver", enfatiza.

Todavia, o criador alega que este espetáculo "não é uma forma de idolatria ou mitificação" do pintor, mas sim "uma forma de desdramatizar", porque é assim que "vê o teatro", realça.

“É fazer das coisas matéria-prima, lermos em voz alta com os outros, porque tudo é motor, não é objeto de veneração”, acrescenta, frisando que acredita “num teatro com menos espetáculo e mais trabalho, num teatro como espetáculo do pensamento”.

“Procuro o mínimo a partir do qual é teatro”, indica, parafraseando o que o escultor, pintor e desenhador Ângelo de Sousa - também professor nas Belas Artes do Porto, contemporâneo de Lapa - preconizava em relação ao desenho.

E quando questionado sobre se vai continuar a trabalhar o universo de Álvaro Lapa, remata: “Sinto que este espetáculo é o fechar de um ciclo, um ciclo de dez anos de conversa com este irmão artista”, que impôs "a necessidade de, pela primeira vez, estar sozinho em palco".

Mas “nunca sabemos se a conversa é retomada na próxima esquina”, conclui.

“Sequências narrativas completas”, a partir de Álvaro Lapa, é uma coprodução dos teatros nacionais D. Maria II e S. João, em Lisboa e Porto, respetivamente, do Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães, e do Teatro Viriato, em Viseu, e pode ser visto na quinta e na sexta-feira, às 21:30, no sábado, às 19:30, e, no domingo, às 16:30.