No final dos anos 90, veio viver para Portugal para fugir à instabilidade política e social que então se vivia na Rússia, continuando os estudos na Escola Profissional de Música de Espinho, onde o seu tutor, também russo, dava aulas. Hoje, sente-se portuguesa e sonha em português.
Em 2008 presta pela primeira vez provas na Orquestra Sinfónica do Porto, onde é atualmente a primeira violinista. É lá, na sala da Invicta, que dá o adiado pontapé de saída para a tour de "RaiVera", o seu primeiro longa duração, editado em agosto do ano passado.
Desde cedo que soube que queria tocar violino, e era "muito feliz a fazê-lo", mas faltava-lhe a sua "identidade". Encontrou-a em IAN, projeto que nos trouxe à conversa.
Pode reconhecer o seu nome da passagem pela edição deste ano do Festival RTP da Canção, com "Mundo" e um visual muito comentado pela Internet (envolvia radiografias e uma barriga de grávida).
Como é que alguém com uma carreira feita na música sinfónica faz esta transição para a pop — ou, melhor, para uma pop eletrónica?
Diria pop contemporânea.
A IAN é um culminar de toda a bagagem que adquiri como violinista clássica, que tocou com os GNR, com os Gift ou com bandas metal. A vontade de criar algo meu, a minha identidade, crescia de ano para ano. Até decidir aventurar-me e criar o meu projeto.
Diz que apenas como violinista sentia que não tinha voz. Mas como foi fazer dela um instrumento?
A transição foi bastante natural. Durante anos expressei-me apenas através da música e da expressão corporal. De repente, tive vontade de compor. Bem, já lá vão alguns anos [risos]. O "Vera", que fecha o álbum, já foi escrito em 2006 ou 2008. Acho mesmo que foi uma das primeiras músicas que escrevi, e por acaso foi para um concurso do Ryuichi Sakamoto [músico e compositor japonês] —, que ganhei. Depois, a vontade de compor foi crescendo. Foi, e é um grande desafio — que vou ultrapassando... Colina a colina, em vez de ser tudo plano. A voz é uma dessas colinas, e sinto que ainda não subi até ao topo.
"Sempre quis fazer algo diferente e hoje sinto-me completamente realizada com a IAN"
O que é que está no topo dessa colina? Qual é o grande objetivo?
O "RaiVera" é o primeiro capítulo de um livro, digamos assim. Agora faltam outros; é continuar. Embora desde muito nova soubesse que queria tocar violino, e sou muito feliz a fazê-lo, faltava encontrar a minha identidade. Sempre quis fazer algo diferente e hoje sinto-me completamente realizada com a IAN.
Stockhausen ou Tricky são influências assumidas. Que outras cabem pelo meio?
Pelo meio há o [Dmitri] Shostakovitch ou [Serguei]Prokofiev. Compositores russos, claro. Mas porque os estudei mais a fundo, ainda em Moscovo. Ou o Heiner Goebbels, alemão, uma enorme inspiração para a IAN. Ele não é apenas um compositor, assume a conceção cénica e o desenho de luzes dos concertos. Depois, há o grunge — Kurt Cobain! Na adolescência adorava Sex Pistols ou Wu-Tang Clan — os russos tentaram imitar o clã norte-americano [risos]. Quando a música é boa e bem feita... Quando a história passa, independentemente do estilo em que a música está escrita, é de reconhecer.
E Björk, claro!
Estava à espera desse nome.
Ela criou uma identidade... Quando ouvimos, sabemos que é a Björk. Isso é de admirar.
Uma identidade que vai para além da música. Aproveitando isso, o que está por trás do visual da IAN?
Na altura já havia quem me conhecesse como violinista, porque trabalhei durante muitos anos com os GNR. Mesmo saindo do mundo clássico, continuava a ser a Ianina, violinista. Quando surgiu a IAN pensei que tinha de me diferenciar. Além disso, há um sentido muito prático [risos]. É 'só' colocar a peruca.
Como é que os seus colegas da Orquestra Sinfónica do Porto Casa da Música reagiram ao surgimento da IAN?
Na Orquestra há 22 nacionalidades, mas somos uma grande família. Somos todos muito diferentes, mas muito unidos. E eles já conheciam este lado. Muitas vezes, depois dos ensaios ou concertos, até brincavam: "ainda vais trabalhar?". Faço questão de os celebrar nos meus concertos, eles estão presentes através das suas vozes — que gravámos na Casa da Música. Começar a tour do "RaiVera" lá fazia todo o sentido. Para mim vai ser muito emocionante.
"Escrever em português é difícil, faço-o quando o sinto"
O que significa “RaiVera”?
É um neologismo. "Rai" significa paraíso em russo; e "Vera" fé. São duas palavras que estão muito presentes na minha vida. Eu entendo o paraíso como um estado de felicidade, profissional e pessoal. A fé, independentemente da religião ou crenças, é uma palavra que a humanidade precisa — muito! É bom ter fé, ter esperança em algo melhor. Mas eu sou muito optimista.
O disco tem um tema em alemão (“Freiheit”) e outro parcialmente cantado em português (“Again”). O resto é em inglês, mas nunca na sua língua materna — como o título do álbum. Há alguma razão especial para ter sido assim?
Não aconteceu, como no segundo EP (que tem um tema em inglês e russo). Eu uso a língua como um instrumento. A sonoridade de cada língua é muito diferente e às vezes vai ao encontro de determinada música. Não falo fluentemente em alemão, mas nessa música tinha de ser. Fazia todo o sentido, as influências de Berlim estavam lá. Tal como a voz do Pedro Oliveira no "Again" faz todo o sentido. Conhecia-o dos Sétima Legião e imaginei-o logo neste tema, que é muito importante para mim.
Estou mais habituada a escrever em inglês. Por isso é que o Festival da Canção também foi um desafio, ao escrever em português e inglês. O "Again" não fui eu que escrevi, foi o Nuno Gonçalves [produtor do disco e fundador dos Gift]. Escrever em português é difícil [risos], faço-o quando o sinto.
Como é que foi receber o convite para o Festival da Canção?
Ter a oportunidade de pisar aquele palco, na RTP, durante a pandemia foi... Foi tudo maravilhoso. O facto de não ter nascido cá, embora me sinta mais portuguesa que russa, fez com que não estivesse à espera do convite. O Festival abraça tantas causas positivas... Tinha de as fazer passar na minha música ["Mundo"], sem desvirtuar a minha identidade e a minha veia eletrónica.
O Festival da Canção e a Eurovisão eram eventos que juntavam a família à frente da televisão. Como é que era na Rússia — que participa no eurofestival desde 1994?
Era uma tradição também, assim como era a patinagem artística [risos]. Em minha casa víamos sempre a Eurovisão. Ainda agora eu e o meu primo demos as nossas votações. Eu com meu papel, e ele, em Moscovo, com o dele. Ele acertou, disse logo que ganhava a Itália. Para mim tinha vencido a França.
E o tema da Rússia?
Gostei bastante. Talvez não fosse um tema para vencer, mas era um bom tema. O fato, o ter cantado em russo e em inglês, o tema... A Manizha canta muito bem. No meu papel coloquei 12 pontos. Mas também dei a pontuação máxima a três [risos]: à França, à Rússia e à Islândia. Os islandeses são os maiores.
"RaiVera" era para ter saído na Primavera, mas a pandemia atrasou-o. Isso afectou de alguma forma o que tinha preparado para a estreia com um longa duração?
Afetou, e não. Olhando para trás, estava tudo preparado para sair em março. A pandemia bateu-nos com a porta a cara, a mim e a todos os artistas. Ainda pensámos se fazia sentido adiar, mas tinha um pressentimento que o tinha de lançar. Porque as coisas têm o seu tempo. A pandemia parou a indústria, mas não nos matou. Continuámos a trabalhar e a criar. Achei por bem lançar o disco previsto para 2020 ainda nesse ano — a 21 de agosto. E foi bom porque a Antena 3 começou a passar. A Patrícia Sequeira [realizadora], por acaso, estava parada num semáforo a ouvir rádio e passou a"Good Girl". Pensou que era algo americano e que seria complicado de ter para a série ["O Clube" na Opto, SIC]. Quando percebeu que eu era portuguesa... Se eu não lançasse em agosto nunca teria a oportunidade de ter o tema no genérico da série.
"A pandemia parou a indústria, mas não nos matou"
"Quando percebeu que eu era portuguesa". É como se sente, já?
Sim, sim. No outro dia perguntaram-me em que língua sonho, e sonho em português.
Nasceu em Moscovo e veio em adolescente para Portugal. A que se deveu essa mudança e porquê o nosso país?
Foi um conjunto de circunstâncias, digamos assim. Familiares e políticas. A minha família mandou-me para um país mais tolerante e onde pudesse ter um futuro. E assim vim para Espinho. Porquê? Porque o professor de análise musical, em Espinho, era de Moscovo e enquanto fui menor ficou como o meu tutor em Portugal. A minha mãe continuou na Rússia e passados dois anos também veio.
Aqui deu continuidade à formação musical. Sentiu diferenças?
Senti alguma diferença na pontualidade. Alguma não, muita [risos]. E isso aprendi rápido. Mas isso já não acontece, estamos cada vez mais pontuais. No que toca ao ensino, os meus professores continuaram a ser russos...
Há uma ideia de rigor associada ao ensino, não só na Rússia mas em todos os países de leste. Foi assim?
Aprendi dessa forma, mas tem de se ter em conta o ambiente. Tenho uma filha com quase 18 anos, e ela começou a estudar violino com cinco... comigo aos berros. Porque foi assim que me ensinaram. A miúda tem ouvido absoluto, mãos perfeitas, tudo perfeitinho... Aos 10 anos chegou a casa e disse que não queria mais. Não aguentou e nunca mais pegou no violino. Passados alguns anos voltou ao piano. Mas eu sei que fui eu a culpada dela ter deixado o violino. Exagerei. Não se pode exigir de alguém um comportamento estando fora desse contexto. As outras crianças iam passear e ela ficava em casa a estudar.
Essa exigência mantém-se ainda hoje? Aplica-a naquilo que faz?
Sim, sim. Na pop há uma exigência diferente daquela que existe na música clássica. Hoje em dia já não há "punks", que sobem a palco e dão um concerto sem ensaiar. Já não existe isso, o público já está habituado a um certo grau de profissionalismo. Fora isso, a concorrência é grande. É muito injusto quando se diz que o mundo da pop é menos profissional ou menos exigente que o mundo da clássica. São exigências diferentes, continua a ser preciso estudar, ensaiar e ter igual rigor — ou até maior.
Os concertos do Porto (Casa da Música, 6 de junho) e Lisboa (Maria Matos, 8 de junho) são datas muito desejadas. O que é que o público pode esperar?
Estou muito contente por voltar a tocar, outra vez. Os obstáculos existem, é respirar fundo e continuar. O público pode esperar a minha música, a minha energia em palco, e a minha história. Mas também a minha vontade e felicidade por estar ali. E vão dançar, certamente. As datas de Porto e Lisboa são as mais desejadas, porque são as primeiras depois desta pausa tão longa, mas seguir-se-ão mais.
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