Primeira parte

A Lei das Elipses

1997

Segunda-feira: fim de inverno, mau tempo. O rio Alder, engordado pelas chuvas incessantes, atravessou Aldleigh e mais além, levando carpas, lúcios e páginas arrancadas a revistas pornográficas, passando por memoriais de guerra, pubs e novas zonas industriais, até à foz do Blackwater e, a seu tempo, até ao mar. Carrinhos de compras tombados cintilavam na margem do rio; o mesmo acontecia com alianças indesejadas, latas de cerveja e moedas cunhadas por impérios nos anos dos seus declínios. Garças passeavam como enfermeiros de bata branca pelos juncos lamacentos; e às quatro e meia um pescador apanhou uma chávena que não era tocada desde que a tinta do poema A Batalha de Maldon ainda estava fresca, cuspiu duas vezes e atirou-a de volta.

Fim de inverno, mau tempo: a cidade oprimida por nuvens baixas como a tampa de um caixão. Um lugar de que se fala de passagem, se é que se fala de todo: nem Boadiceia nem Wat Tyler lhe lançaram um segundo olhar quando levaram as suas vinganças para Londres; e a guerra só chegou a ela tardiamente, quando um solitário Junkers descarregou a última peça de artilharia e extinguiu quatro almas sem aviso prévio.

Thomas Hart estava à sua secretária no escritório do Essex Chronicle, a observar a cidade através de uma janela que se dissolvia. Àquela hora e daquele ponto de vista, as luzes pareciam fogueiras lançadas por viajantes que atravessavam um pântano encharcado: lâmpadas contínuas nas sapatarias e bancas de jornais que ainda não haviam fechado para a noite, e no cinema e no bowling que abriam as portas a três quilómetros da cidade; luzes de candeeiros no bar do Jackdaw and Crow, e lampiões a percorrer a London Road.

Um homem de cinquenta anos, Thomas Hart, e um homem de Essex, para mal dos seus pecados: alto e conservando tanto cabelo quanto tinha aos quarenta, o que quer dizer mais acima do colarinho do que na testa. Vestido, como sempre foi seu hábito, com roupas escolhidas para serem admiradas pelos observadores — um blazer simples em tweed Harris; uma camisa branca presa com botões de prata; uma gravata em malha de seda. Um rosto que, reconhece, é belo, mas não se ludibria achando ser memorável: o nariz não é simétrico, mas tem um tamanho agradável e enfático; os olhos são grandes, diretos e quase verdes. Um ar de quem ocupa um tempo que não é seu — estaria mais à vontade numa sala de jantar eduardiana, por exemplo, ou no convés de um clipper oscilante? Muito provavelmente.

Jaime Nogueira Pinto junta-se ao É Desta Que Leio Isto no próximo encontro, marcado para dia 28 de novembro, uma quinta-feirapelas 21h00. Consigo traz o seu romance "Novembro", editado pela D. Quixote.

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Thomas examinava um objeto na sua secretária. Dois discos de couro com o diâmetro aproximado da sua própria mão estavam presos com um alfinete manchado; o disco inferior encontrava-se pintado de azul e cravejado com marcas que não conseguiria decifrar, mesmo que estivesse inclinado a tentar. O azul aparecia através de um grande orifício feito na parte superior, e letras douradas na orla indicavam os meses do ano, os dias do mês e as horas do dia. Thomas tocou-lhe como se pudesse transmitir uma doença contagiosa.

— O que acha que devo fazer com isto?

Um homem mais novo estava sentado à beira da secretária, a balançar o pé. Com o olhar abatido dos culpados, rodou o disco superior com o dedo. O buraco moveu-se. O azul manteve-se imóvel.

— Pertenceu ao meu pai — disse. — Pensei que pudesse fazer alguma coisa com isto. — Nick Carleton, editor do Chronicle e filho enlutado, olhava com divertimento incontido para o pequeno gabinete, que, apesar das persianas de plástico e do zumbido do disco rígido do computador a trabalhar arduamente, apesar do século XX a desgastar-se nos passeios três andares abaixo, sugeria que a qualquer momento um gramofone poderia tocar um lieder de Schubert.

— Lamento — disse Thomas gravemente — pela sua perda. A morte de um pai — disse, franzindo o sobrolho para a janela — é simultaneamente muito lógica na ordem das coisas e incompreensivelmente estúpida.

— Nunca o vi usá-lo — disse Carleton, contendo as lágrimas — e não sei como funciona. É um planisfério. Um mapa das estrelas.

— Estou a ver. E o que acha que devo fazer com ele?

A noite estava a chegar com força. O vento soprava no parapeito da janela de betão, e um pombo desnorteado bateu no vidro e desapareceu de vista.

— É o nosso colaborador mais antigo — disse Carleton, encolhendo-se com o estrondo. — Aquele que mais admiramos. Na verdade, diria que é o mais popular. — Estou a começar a falar como ele, pensou: Thomas Hart é contagioso, o problema é esse. — Já ouvi dizer muitas vezes que é um regalo, é esse o sentimento geral, como disse à direção, acordar na quinta-feira de manhã e deparar com os seus pensamentos sobre fantasmas de Essex e literatura, etc., antes de passar aos assuntos do dia.

— A literatura — disse Thomas suavemente para o planisfério — é o assunto do dia.

— O seu trabalho tem o toque dos tempos antigos — insistiu Carleton. — Permita-me dizê-lo. Acho que é esse o seu encanto. Outros jornais podem procurar um jovem para ser a voz da sua geração, mas no Essex Chronicle orgulhamo-nos da nossa lealdade.

— Dificilmente poderia ter pedido para ser a voz de uma geração — disse Thomas —, uma vez que só existo eu.

Carleton refletiu brevemente sobre o outro homem, de quem fizera um estudo tão aprofundado que poderia ter sido nomeado professor de Estudos sobre Thomas na Universidade de Essex. Sabia, por exemplo, que Thomas era um solteirão convicto, como se costuma dizer, nunca visto na companhia de alguém jovem e belo ou de uma pessoa claramente mais velha; que tinha o ar religiosamente melancólico de um padre destituído de batina e que era conhecido por frequentar uma capelinha peculiar nos arredores da cidade. Tinha modos corteses, considerados afetados por aqueles que não gostavam dele e irresistíveis por quem gostava; e, se não se poderia dizer que era estranho, havia certamente a impressão de ser o único representante da sua espécie. Sobre a família, os companheiros, a política, os gostos musicais e as atividades de fim de semana de Thomas Hart, Carleton nada sabia, interrogava-se frequentemente e nunca fazia perguntas. O facto de Thomas ter trabalhado para o Chronicle desde 1976 era facilmente comprovável, tal como o facto de ter publicado três breves romances desde essa data. Por uma questão de delicadeza, Carleton nunca mencionou que os possuía aos três e que os considerava elegantes e elípticos, vertidos numa prosa com a cadência da da Bíblia na versão do rei Jaime e enredados em sentimentos profundos, suprimidos até às páginas finais (quando se seguia algum acontecimento confuso, geralmente sob mau tempo). Se Carleton fosse o seu agente literário, poderia ter pedido ao outro homem que se permitisse, pelo menos na ficção, dizer o que realmente sentia, e não encobrir tudo com atmosferas e metáforas; mas limitou-se a olhar de relance, por vezes, para os cadernos verdes baratos que acompanhavam Thomas como um rasto e que estavam agora empilhados em três camadas, em cima da secretária (segunda-feira, leu sub-repticiamente; fim de inverno. Mau tempo...). Não lhe ocorrera que Thomas não reconheceria um planisfério quando lhe pusesse as mãos em cima ou que uma sugestão tentadora de que olhasse para as estrelas pudesse ser tão indesejável. Pestanejando, recalibrou a ideia que tinha de Thomas Hart e tornou-se persuasivo:

— A lealdade — disse — é uma das nossas maiores preocupações. Mas sentimos cada vez mais que poderia beneficiar de material novo, e ocorreu-me que talvez gostasse de escrever sobre astronomia. Veja. — Pegou no planisfério e moveu-o. — Esta é a data de hoje e, portanto, encontrará Orionte a sul.

— Astronomia — disse Thomas, com o ar de quem está a pro- var uma substância amarga. Rodou o disco. Extinguiu as estrelas.

— Na verdade — disse o editor —, ocorreu-me que poderia escrever sobre este novo cometa. — Fez um levantamento do depósito de conhecimentos herdado do pai: — É um grande cometa, sabe, com visibilidade a olho nu. As pessoas adoram esse tipo de coisas. Uma vez, a Bird’s Custard pôs um cometa nos seus anúncios. Talvez seja um mau presságio e ocorra uma catástrofe, e então teremos algo para a nossa primeira página. — Neste ponto, animou-se perante a perspetiva de incêndios catastróficos.

— Que cometa?

— Thomas! Nunca olha para cima? Chamam-lhe Hale-Bopp.

Tem aparecido nas notícias.

Hale-Bopp — disse Thomas. — Compreendo. Nunca vejo o noticiário. — Levantou o planisfério na direção do editor. — Não tenho qualquer interesse em astronomia. Este cometa poderia atravessar a janela e aterrar-me no tapete, que eu não teria nada a dizer sobre o assunto.

Carleton recusou o planisfério com um gesto.

— Fique com ele. Experimente. Temos de pensar em alguma coisa, Thomas: a circulação anda pelas ruas da amargura. Quer escrever sobre aquela ovelha que clonaram na Escócia ou sobre as eleições gerais? Mexericos de celebridades, talvez, ou sobre os escândalos sexuais do gabinete Tory? — Recebeu um olhar de admoestação, como se tivesse manchado um daqueles punhos brancos imaculados.

— Estou demasiado velho — disse Thomas — para truques novos.

— Hoje em dia — disse Carleton, endurecendo o coração e esgotando o tesouro da sua herança —, uns bons binóculos oferecem mais ou menos a mesma magnitude que o telescópio de Galileu. Quinhentas palavras, por favor. Porque não começa com a Lua?

— Temos Lua esta noite?

Livro: "Iluminação"

Autor: Sarah Perry

Editora: Minotauro

Data de Lançamento: 7 de novembro de 2024

Preço: € 21,90

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— Como hei de saber? — Carleton estava à porta; Carleton estava quase livre. — Sempre a achei mentirosa. Quinhentas palavras, por favor, seiscentas, se a noite estiver clara.

— Hoje em dia — disse Thomas —, as noites nunca são claras. — De má vontade, levantou o planisfério contra a luz fraca que entrava e rodou a parte superior. A perfuração deslizou sobre o couro pintado, e nomes semifamiliares apareceram no fundo azul: Aldebarã. Bellatrix. Híades. Muito bem, então. Quinhentas palavras, seiscentas se a noite estivesse clara; e, entretanto, estava atrasado na correspondência. Uma carta solitária no tabuleiro de aço, com a aba levantada e o carimbo torto; a carta assinada a tinta azul, em letras garrafais:

James Bower
Essex Museum Services
17 de fevereiro de 1997

Caro Sr. Hart

Penso que tenho algumas informações que lhe poderão interessar.

Como decerto sabe, estamos a fazer obras de renovação na Lowlands House e descobrimos alguns documentos interessantes. Pensamos que poderão estar relacionados com uma mulher que viveu em Lowlands no século XIX, a qual desapareceu e nunca foi descoberta. Sempre gostei da sua coluna e lembro-me especialmente da história em que fala de ir à procura do fantasma de Lowlands — ocorreu-me por isso que a lenda até poderá estar relacionada com este desaparecimento! Será que o poderia convencer a vir visitar-me ao museu? Estamos abertos todos os dias das 10h00 às 16h00. Encontra-me à minha secretária.

Com os melhores cumprimentos,
James Bower

Thomas pousou a carta. Seria possível que a faixa de luz tivesse esmorecido, por breves instantes, fazendo surgir das sombras o vulto de uma mulher desaparecida, agora regressada? Não era. Thomas sorriu e voltou-se de novo para a janela. Um pombo atordoado deixara a sua marca gordurosa no vidro e erguia-se como o Espírito Santo por trás das persianas.

Fim de inverno, pensou Thomas, mau tempo — abotoou o casaco; saiu do escritório do Chronicle — era um bom começo. O planisfério estava no seu bolso e picava-o com o alfinete de latão dobrado. A nuvem inflexível era polida pela luz da rua; e, algures por trás dela, pensou, o cometa de Carleton estava escondido como uma carta num envelope, trazendo sem dúvida más notícias.

Já eram cinco da tarde, e o trânsito prosseguia para fora da cidade; Aldleigh começava a avistar-se, e Thomas passava por mulheres afadigadas com sacos de plástico e por alunos que discutiam e praguejavam. A chuva transformou-se em partículas de neblina que se aglomeravam nos candeeiros como moscas, e Thomas conversava consigo próprio. O que poderia explicar a sua indiferença em relação às estrelas? Ocorreu-lhe o pensamento inquietante de que talvez receasse que a vastidão aniquiladora da órbita de um cometa acabasse com a sua fé hesitante. Por outro lado (consolava-se Thomas), Virginia Woolf escrevera sobre um eclipse solar, e havia o deslizar do cometa de Gerard Manley Hopkins a considerar: eram precedentes.

— Bellatrix — disse, sentindo o desconforto do planisfério, mas relutantemente encantado com as sílabas: — Híades. — Estava agora num cruzamento, onde o tráfego se dirigia apressadamente para Londres ou em direção às lojas e blocos de escritórios de Aldleigh. Esgueirando-se entre os carros, Thomas atravessou para o passeio oposto e ficou parado por algum tempo. À sua esquerda estava a estrada larga para a cidade; à direita, a estrada que afunilava até uma ponte rasa sobre o rio Alder. Thomas não olhou nem para a esquerda nem para a direita, mas para uma capela atrás de grades de ferro na London Road. Estava ladeada por um muro coberto de musgo e por um terreno abandonado que ele conhecia pelo nome de Potter’s Field; o seu portão de ferro encontrava-se preso com uma corrente. Em silêncio, a capela fitava-o sobre um parque de estacionamento enevoado pela chuva. A porta fechada fora recentemente pintada de verde; ao lado dela, um loureiro verde florescia como o ímpio do salmo trigésimo sétimo. Um vento de leste que soprava do Alder deslocava o ar frio e iluminado, e o loureiro dançava no seu pequeno canteiro negro. A capela não dançava. Os seus tijolos eram pálidos, as proporções, austeras: era um contentor fechado para Deus. Nenhum transeunte a tomaria por um local de culto, e as crianças de Aldleigh acreditavam tratar-se de um crematório onde os velhos eram transformados em cinzas e fumo. Não havia esculturas sagradas a ladear a porta nem sinos a tocar; o seu telhado de ardósia brilhava, azul, quando molhado. As sete janelas estreitas tinham o aspeto de olhos semicerrados contra o sol, e, em dias mais claros, a luz fazia sobressair um único disco de vidro colorido colocado no vértice de cada janela. Era a capela de Bethesda, tão imutável no fluxo do tempo como uma pedra num rio: Aldleigh passava por ela e contornava-a, nunca poderia mudá-la. Por cima da porta, uma placa estreita dizia 1888 e, para lá do tapete de cerdas da soleira, persistia esse ano de 1888. Todos os terríveis acontecimentos do mundo moderno — as suas taxas de câmbio, torneios, profanações, publicações, eleições, música e mudanças de administração — embatiam na porta verde e eram repelidos, represados.

— Bethesda — disse Thomas, encostado ao portão, falando consigo próprio e com vontade de sorrir; depois, a corrente de ferro, que devia estar fechada, abriu-se e caiu-lhe em cima do pé. Thomas, surpreendido, espreitou desconcertado, por entre a bruma.

— O que foi isto? Viste aquilo? — Ninguém ouviu ou soube responder. Adentrou-se mais e duvidou de si próprio: eram sombras deslocadas pelo trânsito a passar, nada mais. Ainda assim: — O que será isto — disse. A corrente moveu-se sobre o seu sapato. Thomas sentiu o animal que havia no seu corpo reagir: os pelos da nuca e dos antebraços eriçaram-se; as câmaras do coração comprimiram-se; é a mulher-fantasma de Lowlands, disse para si próprio, divertido com o seu próprio medo. Saltou o muro e vem aí!

O ar húmido clareou, e, por breves instantes, pareceu que uma sombra se adensava e comprimia contra a porta verde, desaparecendo depois de vista. Então, sob a breve iluminação dos faróis, Thomas viu uma marca pintada junto à aldrava de ferro da capela: como que uma cruz, se bem que mal feita, e manchada com um círculo. Os faróis esmoreceram. A marca regressou às sombras. Thomas, em quem a incredulidade igualava a curiosidade, atravessou o portão. O som do trânsito mal-humorado, das raparigas na rua principal a chamarem-se umas às outras dos passeios; o som também de algum movimento furtivo junto ao loureiro verde. Então, abruptamente, formou-se uma sombra, tornando-se substancial e atravessando o parque de  estacionamento em direção a Thomas. Avançava com tal velocidade que ele gritou «Cuidado!», inutilmente bem-educado, e tropeçou quando uma criatura de capuz branco colidiu com ele de passagem. Em resumo, três coisas: rosto magro; olhos pálidos; mão magra agarrada a uma lata de tinta. É possível que algo também tenha sido pronunciado, mas foi subsumido pelo trânsito e pelo ar abafado — depois Thomas, virando-se lentamente, viu o intruso infiltrar-se na pequena multidão que subia para a cidade.

— Meu Deus — disse Thomas. Aproximou-se da porta. A tinta escorria entre as tábuas; o círculo que encimava a cruz pingava como uma boca aberta. Os jovens, ao que sabia, tinham por hábito grafitar os túneis do caminhos de ferro em alegres atos de desafio; mas não havia nada de alegre naquele símbolo inescrutável, já borrado pela chuva, transmitindo uma espécie de malícia incompetente que deixou Thomas obscuramente deprimido. Tirou o caderno do bolso e, uma a uma, rasgou páginas que amoleceram rapidamente sob o ar húmido; com elas, limpou a porta o melhor que pôde. Depois virou costas e dirigiu-se para a cidade, deixando o resto ao sabor do tempo.

Bethesda recuou. Mantinha a paz. À frente, os quiosques e as mercearias estavam a fechar as portas para a noite, e um comboio que partia para Liverpool Street fazia chocalhar os vidros do Jackdaw and Crow. Um homem com um casaco de veludo vermelho estendeu caixas de cartão junto ao memorial de guerra e fez uma almofada com o News of the World:

— Boa noite — disse Thomas e recebeu um aceno imperioso. Desceu um beco inclinado e entrou na Upper Bridge Road, que passava em Essex por uma colina, de modo que os terraços de tijolo vermelho que transpunham a lomba tinham o aspeto da longa coluna articulada de um dragão adormecido. Então, subiu a colina, descendo e entrando depois na Lower Bridge Road, que passava por baixo do arco ferroviário gotejante e não levava nem a Aldleigh nem para fora da cidade... na verdade, não levava a lado nenhum. Ali, trinta e quatro casas vitorianas em socalco, construídas para os engenheiros que haviam trabalhado na linha de Londres, posicionavam-se umas em frente às outras, ocultas atrás dos seus carros, jardins e cartazes que incitavam os transeuntes a votar no Partido Trabalhista ou no Conservador ou a ter cuidado com o cão. Só uma casa resistiu à era moderna. Ali nunca se ouvia música atual ou exclamações de telenovelas ou filmes; nem seguramente provas de fidelidade a qualquer partido político ou tribo social. Em vez disso, havia uma quietude insistente e a impressão de ser uma casa escondida atrás de uma névoa ténue mas impenetrável. Thomas Hart estava em casa.

Nick Carleton, perguntando-se como o outro homem vivia, imaginou, com piedade afetuosa, uma vida solitária num apartamento arrumado e uma cama estreita, feita todas as manhãs sem falta. Estava enganado. Thomas vivia onde nascera e onde (assim pensava muitas vezes, sem rancor) muito provavelmente morreria; e, se vivia sozinho, não era solitário, pois esse estado não era uma condição da solidão mas do desejo, e Thomas não era um homem descontente. Os hábitos e gostos dos seus pais, que haviam sido os de austeros filhos do Deus peculiar de Bethesda, haviam sido descartados com o papel de parede e os tapetes, e agora só restava o próprio Thomas. Era tudo exatamente como ele queria que fosse. A mesa de carvalho junto à janela estava polida por décadas de refeições e trabalho, brilhando sobre amplas pernas torneadas. O sofá era profundo e azul, e estava parcialmente escondido por uma colcha que a mãe não tivera tempo de acabar. Candeeiros eduardianos, vitorianos e art déco combinavam uns com os outros para agradar a Thomas, brilhando do aparador e no chão. Uma ampla janela de sacada virada a leste permitia uma única hora de sol nascente antes de a sala escurecer na sombra da ponte ferroviária; e, quando se acendia o lume na lareira, floresciam malmequeres amarelos nos azulejos circundantes. As paredes estavam cobertas de livros em disposições que poderiam ter agradado a um bibliotecário, só que os de Thomas Hart colocavam-se de permeio, aqui e ali, uma vez que agradava à sua vaidade imaginar os fantasmas da sua imaginação a conversarem a noite inteira com Emma Bovary no seu vestido vulgar ou com Mrs. Dalloway, afadigando-se em torno de listas de compras. Os quadros estavam pendurados numa desordem cuidada: uma litografia assinada por Picasso na placa, um óleo habilidoso de um mar turbulento. Ocupando um grande espaço que não merecia, uma pequena fotografia mostrava a capela de Bethesda no dia da sua inauguração, em 1888, e um sol impiedoso a brasear o relvado, enquanto homens barbudos se encontravam sombriamente com mulheres envergando os seus chapéus de verão, e, para lá do muro da capela, no terreno não consagrado de Lowlands Park, uma mulher de cabeça descoberta aparecia à sombra de um olmo, eternamente a olhar para cima. Thomas, acendendo os candeeiros, olhou-a durante algum tempo. Temia-a em criança, pois o seu rosto na sombra era descaracterizado; mas no presente considerava-a uma hóspede, o seu vestido e o pescoço curvado cada vez mais discerníveis por trás do vidro.

Preparou uma refeição: rabanetes num pires com sal de Maldon e azeite aromatizado com ervas; um bom pão de centeio e vinho tinto servido com o prazer de um homem que escolheu prevaricar. Levou-os para a mesa com a carta e o planisfério e observou-os enquanto comia e bebia. Talvez ocorra uma catástrofe, dissera Carleton; e Thomas sentiu novamente o golpe da criatura encapuzada a fugir da capela com tinta nas mãos. Mas aquilo não fora uma catástrofe, apenas algo estranho e logo esquecido na ordem e no sossego de sua casa — então Thomas, que tinha um dom para a autopersuasão, comeu placidamente um rabanete.

Era tarde: o homem de casaco vermelho a dormir sobre o News of the World, os últimos pedidos no Jackdaw and Crow; um pisco desconcertado a cantar no candeeiro da rua, a carta de James Bower manchada de vinho. A mesa estava cheia de cadernos verdes baratos encostados a um computador portátil que parecia insolitamente moderno contra o carvalho polido e o copo vazio com rebordo dourado. Suspirando, Thomas abriu a tampa e olhou com a ânsia e a relutância do escritor para o documento em branco que lhe magoava os olhos com o seu brilho. Só queria escrever, preferia-o a qualquer outra coisa; era o propósito da sua vida, a sua maldição.

— Seja como for, não vale a pena — disse ele à mulher da fotografia —, nada destrói tanto uma coisa como tentar descrevê-la. Além disso, não tenho nada para dizer. — Som do canto do pisco; som, talvez, da mulher da fotografia a falar por trás do vidro, por trás da parede da capela de Bethesda: Despacha-te com isso, está bem? Tens cinquenta e um anos, e o tempo está a passar.

Vamos lá, então. Fim de inverno, mau tempo. Um começo tão bom quanto qualquer outro. Desanda com isso, Thomas Hart.