Estávamos em 2008 e uma dúvida assolou as cabeças de Brian King (guitarrista e vocalista) e David Prowse (baterista e vocalista): os Japandroids tinham acabado de compor “Post-Nothing”, o seu álbum de estreia, mas a banda parecia não rumar a lado nenhum, as editoras não estavam interessadas por aí além e a dupla não vislumbrava qualquer apoio por parte da “sua” Vancouver no que aos concertos ao vivo dizia respeito. O plano, que partia de uma enorme frustração, era o de acabar com a banda – cujo nome eventualmente desapareceria no éter, não se tornando sequer numa nota de rodapé na grande e gloriosa história do rock n' roll.

No entanto, os Deuses – e eles existem; basta ouvir rock, de todas as formas e feitios, e sabemos que eles existem – tinham outros planos para a dupla. “Post-Nothing” encontrou o seu espaço numa pequena editora canadiana, a Unfamiliar Records, que o lançou em abril de 2009. Pouco tempo depois, a webzine Pitchfork atribuía aos Japandroids um rótulo invejável: o de “Best New Music”, ou “Melhor Música Nova”, traduzido de forma literal. Numa altura em que a Pitchfork ainda controlava os gostos de quem era jovem e se interessava minimamente por música, este era o melhor empurrão que lhes poderiam dar; um empurrão que encontrou, posteriormente, eco na revista Exclaim! (que nomeou “Post-Nothing” como o segundo melhor álbum de 2009), no Polaris Music Prize (prémio dado anualmente a artistas canadianos, com a dupla a ser nomeada na categoria de Melhor Álbum), e nas tabelas de vendas da Billboard (chegaram ao 22º lugar, nada mau para uma banda estreante e de cariz independente).

Depois disso veio uma longa digressão e a capacidade de incendiar multidões por onde quer que passassem, fosse no Canadá, nos Estados Unidos ou até na Europa. E vieram, também, as inevitáveis comparações. Aquela mistura de ruído e de melodia, que não cedia a pressões e que guardava dentro de si a chave para a juventude eterna, era a mesma dos lendários Hüsker Dü. As histórias que contavam, a cadência dos seus versos, lembrava um Bruce Springsteen nascido no punk rock. Mas, no final, restava apenas Japandroids – algo talvez impossível de descrever, e que é preciso ouvir e ver ao vivo para perceber que por aqui passa, e de que maneira, o que de melhor se faz no rock no século XXI, sem negar o passado e sem se preocupar muito com o futuro. Há o aqui e agora; confirmámo-lo com “Post-Nothing”, com “Celebration Rock” (2012) e, mais recentemente, com “Near to the Wild Heart of Life” (2017).

Regressados a Portugal e ao NOS Alive, já depois de terem gravado um videoclipe (também) no Porto (para 'North East South West'), os Japandroids deram um dos últimos concertos desta sua digressão antes de uma merecida pausa e de se atirarem ao trabalho, para gravar aquele que será o seu próximo álbum de estúdio. E Brian King sentou-se à mesa e esteve tu-cá-tu-lá com o SAPO24, numa onda de familiaridade que atinge todos quantos conhecem já a música da sua banda (os restantes podem juntar-se a nós; prometemos que esta viagem valerá muito, muito a pena). Tínhamo-lo apanhado, pouco antes, a apreciar o espetáculo dos Eels, que tocaram no mesmo dia e palco, logo após os Japandroids. Pelo que a primeira pergunta, que será escusado transcrever, foi precisamente: que achou Brian King do concerto da banda de Mark Oliver Everett?

Foi fantástico. Acho que, às vezes, as pessoas esquecem-se que os artistas são, muitas vezes, os maiores fãs de música do mundo! Gostam tanto de música que não se contentam em apenas ouvi-la, também têm de a tocar. Nós adoramos música... E tocar num festival destes é para nós uma oportunidade de vermos muitas das bandas que adoramos. Mal acabamos de tocar, transformamo-nos em fãs, como toda a gente. Estamos no público a curtir, a ver bandas... As pessoas esquecem-se de quem veem, no palco.

Pensam que os artistas se limitam a fazer música...

Sim, ou que de certa forma são superiores a ela. Mas esquecem-se de que adoramos música, e adoramos outras bandas.

Até porque é isso que leva alguém a começar uma banda: gostar de música. A música não aparece por acaso.

É isso. E porque fomos a festivais de música e vimos uma banda qualquer a tocar, e pensámos: "temos de fazer aquilo. Temos de ser iguais àquilo". Ambos adoramos música de forma muito apaixonada. E penso nisso quando tocamos, que talvez haja no público miúdos bastante novos, que estão no seu primeiro festival de música, que nos veem a tocar ou aos Queens of the Stone Age, e que chegam depois a casa e querem formar uma banda... É algo recíproco. E os fãs esquecem-se que os artistas são iguais a eles, adoram música. É por isso que aqui estão.

Em 2008, pensaram em acabar com a banda. Sentem-se satisfeitos por não o terem feito?

Estou muito satisfeito por não o termos feito! Passámos os últimos dez anos a viajar pelo mundo, a fazer algo que adoramos, e nem sequer consigo imaginar aquilo que estaríamos a fazer se não estivéssemos a tocar... Estou muito, muito satisfeito.

Nestes últimos dez anos, já beijaram miúdas francesas à francesa?

[risos] Sem comentários... Próxima pergunta!

Sendo vocês fãs dos Sonics, acham que podem chegar ao patamar deles e continuar a fazer música e a tocar ao vivo daqui a 50 anos?

Acho que é esse o sonho da maioria das bandas: escrever canções que resistam ao tempo. Os Sonics são um bom exemplo de uma banda que escreveu e gravou aquelas canções antes de qualquer pessoa presente neste festival ter nascido. Quase ninguém neste festival era nascido quando eles andavam a fazer isso! E eles ainda andam por aí, a tocar aquelas canções, o que diz muito acerca das mesmas... Para nós, é uma questão difícil de se responder, porque a cada ano sentimo-nos um bocadinho mais velhos que no ano anterior... É impossível dizer que tipo de música irá ressoar no tempo, ou resistir-lhe, ou simplesmente desaparecer. Mas espero que sim! Espero que algo daquilo que fazemos tenha o mesmo impacto em algumas pessoas que a música dos Sonics tem em nós. Não importa que tenha 50 ou 60 anos, ainda soa muito fixe e relevante hoje, tanto quanto no dia em que a gravaram. É esse o sonho. Se perguntares a qualquer banda presente neste festival, eles vão dizer-te o mesmo: "Que sonho! Já estou velho, ou mesmo morto, mas os miúdos ainda aí estão a curtir... Significa algo para eles".

Como é que viver pela primeira vez em cidades diferentes influenciou o processo de composição do "Near to the Wild Heart of Life"?

Quando acabámos a digressão em torno do álbum anterior, o "Celebration Rock", sentimos que era uma boa altura para fazer uma pausa na banda. Não tínhamos feito mais nada para além dos Japandroids durante cinco ou seis anos: fizemos dois álbuns, demos uns 500 concertos, e sentimos que tínhamos superado tudo o que alguma vez imaginámos vir a fazer. Esta é a nossa primeira banda! As bandas que adoramos são formadas por pessoas para quem aquela é a quarta, quinta ou sexta banda a que pertencem... E muitas delas não conseguiram chegar tão longe quanto nós com a sua primeira banda. Quando nos separámos um do outro... O tempo e a distância ajudou. Começámos a ter saudades de tocar e de compor juntos. Julgo que ter feito essa pausa contribuiu para o facto de ainda estarmos juntos. É como se estivesses numa relação durante muitos anos, e de repente alguém arranja um emprego noutro lado, e são forçados a viver longe um do outro. Passa-se um ano e percebes as saudades que tens dessa pessoa, o quão ela é importante para ti, o quão ela faz parte da tua vida. E, depois disso, é como se a tua relação se rejuvenescesse. Foi mais ou menos o que se passou connosco. Houve um tempo em que pensei que já tínhamos feito tudo... E, agora, estou mais entusiasmado do que nunca por tocar na banda. Esta é a nossa última digressão em torno do "Near to the Wild Heart of Life"; depois disto, vamos para casa por algumas semanas e começaremos logo a trabalhar em música nova.

Ou seja: já não haverá esperas de cinco anos...

Não, não. Vamos tentar gravar muita música nova rapidamente, que esperamos poder lançar para o ano e voltar imediatamente à estrada com ela. É um bocado como "a segunda vaga", ou "a segunda geração", algo assim...

O título do álbum tem origem num livro de Clarice Lispector ["Perto do Coração Selvagem", 1943]. Que significado tem para ti este livro?

Leio muito, adoro ler. É como ouvir música ou apreciar qualquer tipo de arte: se gostares muito, se te expuseres a muitas coisas diferentes, de vez em quando aparece alguém que te afeta pessoalmente. Acontece o mesmo na música - podes ouvir muita música mas, de vez em quando, aparece um álbum que te faz pensar: "é mesmo isto!". Foi o que aconteceu comigo em relação a ela. Deparei-me com o livro dela, comecei a ler... Ela é o tipo de autora que, quando acabas de ler um seus livros, não se te ocorre passar para o próximo ou para outro autor; só te dá vontade de o reler. Adorei a escrita dela e fiquei muito feliz por a ter descoberto. Comecei a ler mais sobre as suas influências - e isso também acontece com a música: procuras saber de onde veio certa banda, o que é que eles andavam a ouvir... É o mesmo na literatura. Comecei a ler os livros que a influenciaram, e isso teve um forte impacto no disco na medida em que ela escrevia de uma forma muito crua, muito direta, de uma forma que penso que muitos autores diriam ser errada: "Não é suposto escreveres desta forma, não é suposto escreveres sobre estas coisas, não é suposto seres tão pessoal... Deves pegar naquilo que sentes e torná-lo mais 'literário'". E ela fê-lo de forma muito crua e direta. Julgo que é isso que tentamos fazer com a banda, reduzir tudo à sua forma mais pura e simples.

E estás familiarizado com quaisquer outros escritores de língua portuguesa?

Agora vivo na Cidade do México, e por isso comecei a absorver muitos autores latino-americanos. Acho que a resposta óbvia à tua pergunta é [José] Saramago... Que tenho de ler em inglês - pelo que talvez não esteja a conhecer a história a fundo. Mas estou a começar a descobrir muitos autores, e gosto bastante. Já li muitas coisas escritas em português, mas traduzidas para o inglês. A maioria do Brasil, mas quero ler mais autores de Portugal! Há qualquer coisa na forma como as pessoas escrevem em português que julgo ser muito diferente da forma como os autores ingleses escrevem. Pelo que, quando lês as traduções, não consegues pensar em ninguém que dissesse certas coisas... Sou um bebé, ainda estou a começar. Mas quero ler mais. Se tiveres algumas recomendações...

Por acaso, tenho. Mas, para já, vou fazer-te duas perguntas "difíceis". A primeira tem a ver com o vídeo da 'North East South West', gravado durante a vossa última digressão, boa parte dele na cidade do Porto. Já que eu apareço nele, posso processar-vos por violação de direitos de imagem?

[Risos] Não acredito! Estás mesmo? Podes processar-nos o que quiseres, mas não vais ganhar dinheiro nenhum com isso, porque não o temos... E se o tivéssemos, eu não me vestiria assim! Quando é que apareces no vídeo?

Por volta do minuto 1:12. No meio do público.

Incrível.

A segunda pergunta tem a ver com o facto de nunca terem tocado a 'Heavenward Grand Prix' ao vivo. Têm noção que é uma das melhores canções de sempre, certo?

Tem piada que o digas, porque muita gente que ouviu essa canção disse-nos: "não é por isto que gostamos dos Japandroids, é demasiado diferente"... As pessoas não gostaram nada! E nós esquecemo-nos dela. Mas à medida que o tempo tem passado... Não és a primeira pessoa que me vem perguntar isso. E, sinceramente, não tenho uma boa resposta para isso. Não há qualquer motivo para não a tocarmos. Deveríamos fazê-lo de vez em quando. Adoro essa canção. Quer dizer, fui eu que a compus... Mas creio que tens de conhecer os Japandroids a fundo para sequer conhecer essa canção. Se a tivéssemos tocado, a maioria das pessoas iria ficar impaciente, à espera de ouvir algo que conhecessem... Mas devíamos tocá-la um dia destes. Vou lembrar-me disso quando voltarmos a Portugal...

Recorde o concerto dos Japandroids NOS Alive em imagens