Foi em 2010 que a vimos, quando o NOS Alive ainda era Optimus, a atuar num dos palcos secundários, que praticamente transbordou de fãs ansiosos por testemunhar in loco toda a magia das canções de "Lungs", o álbum de estreia (2009). Foi em 2010 e, para muitos, parece ter sido ontem, dada a extraordinária capacidade que Florence Welch tem em não envelhecer. Aqueles que ouviram, nessa altura, canções como 'You Got The Love', 'Dog Days Are Over' ou 'Kiss With A Fist' pela primeira vez são hoje, provavelmente, gente casada, com empregos minimamente estáveis, um ou dois filhos por cuidar. Ela, a inglesa de cabelo ruivo e energia aparentemente inesgotável, permanece impassível. Qual será o segredo? Terá a ver com sacrifícios humanos, os mesmos que Welch pediu, no final do concerto desta noite? Terá a ver com o poder que existe na (sua) música, transportando os presentes de novo para a juventude? Terá a ver com os genes?

Estas perguntas ficarão por responder, mas na verdade pouco importa. No segundo dia de NOS Alive, um dia marcado (sobretudo) pelas mulheres, foi inteira e merecidamente seu o destaque principal. Escreve-se Florence + The Machine, ou Florence and the Machine, por vezes até F+TM, como foi possível ver em palco, em formato logótipo, pouco antes de o espectáculo começar. Mas a verdade é que tudo aquilo que ali está em palco - e o que se faz em palco é um concerto pop/rock fenomenal, sem quaisquer artifícios que não um manancial de excelentes canções - é Florence Welch, 35 anos de idade, um vozeirão de arrepiar e um sorriso do tamanho do planeta. Um sorriso que contagia e faz bater mais forte os corações, sobretudo os daqueles que tiveram a bênção de a abraçar, como aconteceu com uma fã extremamente efusiva em 'Dream Girl Evil'.

"Bênção", porque, como Welch afirmou no final, os Florence + the Machine são um culto religioso. Os «sacrifícios humanos» que pediu antes de se atirar a 'Rabbit Heart (Raise It Up)', já no encore, e que consistiram em levar pessoas a colocar outras pessoas às cavalitas, foram prova e complemento dessa espécie de missa de exaltação da vida, dois anos após o início de uma pandemia que nos impediu de, coletivamente, dançarmos. Tudo começou com as palmas de 'Heaven Is Here', Santa Florence entrando em palco com um longo vestido vermelho que ondulava a cada passo, a pode final imitando um Cristo. Passou por 'What Kind Of Man', que do sussurro inicial desemboca num grito e em rodopios e correrias palco afora. Continuou no punk rock puro - três acordes e uma só verdade - de 'Kiss With A Fist'. E poderíamos estar aqui a noite toda a dissecar cada canção como quem recita um versículo.

Com as primeiras notas de 'Dog Days Are Over', o público lançou o seu primeiro grande grito catártico, tema-maná eclodindo no PA onde, a meio, Welch mandou calar os presentes (o que foi imediata e rigorosamente acatado) para que só a sua voz ecoasse pelo éter. Falando dos virgens ali presentes, isto é, aqueles que nunca a tinham visto antes, pediu aos anteriormente convertidos que os auxiliassem. E, no melhor momento da noite, quiçá do ano porque já ninguém se preocupa e é sempre excelente que haja alguém, lançou-se numa cruzada anti-telemóveis em concertos: «Guardem-nos. Passamos demasiado tempo a olhar para ecrãs, não precisam de partilhar isto, estejam uns com os outros», afirmou, como quem escreve um mandamento numa tábua. Até final, o house de 'My Love', a fenomenal 'Big God' e a luz da lua, real e virtual, que deu espaço a 'Shake It Out' marcaram de forma indelével cada crente. Que, a julgar pelos sorrisos que se iam vislumbrando antes, durante e depois, já só estarão a pensar na próxima peregrinação.

Rita Sousa Vieira / MadreMedia

Ainda sob um sol abrasador, Celeste (norte-americana, apesar do nome luso) subiu ao Palco NOS quando ainda eram poucos os corajosos que arriscaram sair do fresco e da sombra para testemunhar, ao vivo, todo o poderio da sua voz. Penteado em colmeia, olhos pintados, naquela garganta vivem os blues e o jazz, uma garganta que nos deixa de boca aberta assim que a ouvimos cantar 'Ideal Woman', belíssima canção anti-sofrimento: para o amado não é ela a mulher ideal, mas que importa isso, quando há tantos peixes neste mar? Apesar de se notar algum nervosismo, que rapidamente se esfumou assim que ela percebeu que, sim, havia gente disposta a apaixonar-se pela sua música, Celeste assinalou um concerto notável cujo maior condão foi o de nos fazer sentir - e isto não é tão fácil quanto parece - que estava a cantar para nós, indivíduos, e não para uma plateia. 'Tell Me Something I Don't Know', mais mexida, assim como 'Stop This Flame', onde desceu para junto das grades de protecção, foram dois momentos altos de um concerto que poderia muito bem ter durado para sempre.

Igualmente dona de uma senhora voz, a fadista Sara Correia apresentou-se com a sua banda no espaço EDP Fado Café, dedicado à mais popular entre as músicas de tradição portuguesa - o fado, claro está. Naquele espaço intimista, que procura replicar o ambiente das casas de fado elas próprias, nem todos puderam entrar: houve quem tivesse de se contentar em ouvir do lado de fora, no meio da turba que passava. No primeiro de dois concertos que aqui deu, Sara Correia surgiu por detrás da cortina já depois de se terem começado a escutar as guitarras, com 'Agora O Tempo', tema presente no seu álbum de estreia, homónimo (2018). Prometendo levar até ali a sua «história de vida», exposta nos dois álbuns de estúdio que já lançou, a fadista (e não faltaram gritos de ah, fadista!) trouxe ainda canções como 'Solidão' ou 'Dizer Não', encantando quem ali se encontrava. Fica a questão: porque não num palco a sério?

Rita Sousa Vieira / MadreMedia

O sol estava prestes a pôr-se quando Jorja Smith entra no Palco NOS, acompanhada pela sua banda, naquela que foi a sua segunda presença neste mesmo festival. Em 2019, escrevemos que teria sido melhor escutá-la em tais moldes, e os deuses parecem ter acedido a esse nosso pedido. Mesmo sem editar um LP desde "Lost & Found", de 2018, a cantora britânica mostrou-se dona e senhora da situação, desenrolando canções como 'Be Honest' ou 'Addicted', R&B onde o "R" é mais "rooftop" (dada a sensualidade calma que Jorja imprime à música, quase que a pedir um gin tónico) do que o "rhythm" original. «Obrigado por me terem de volta», atirou, e na verdade somos nós que agradecemos: estávamos de facto a precisar de (re)ouvir 'Wandering Romance' ou 'Blue Lights', desta feita no cenário ideal. Pelo meio, ainda acrescentou ao alinhamento uma versão de 'Stronger Than Me', de Amy Winehouse. Que mais poderíamos ter pedido?

Nilüfer Yanya teve um grave problema: o seu concerto começou uma hora após o início do de Florence Welch, o que significou que a esmagadora maioria das pessoas que estiveram neste segundo dia de NOS Alive se alhearam de marcar presença no Palco Heineken. Poucos, mas bons: há alguém que lhe atira um «adoramos-te», impondo-lhe um sorriso envergonhado no rosto enquanto afinava a guitarra. Nilüfer Yanya talvez não estivesse à espera de ter à sua frente uma plateia tão despida mas, por outro lado, talvez também não estivesse à espera de que os que lá estavam fossem tão fiéis. Se o são é por culpa sua, logicamente, e de uma música que ora passa pelo 'soft rock' (guitarradas simples e catitas e um teclado), ora pelo minimalismo dos Young Marble Giants, ora pelo rock mais rasgado e alternativo. Do que se viu, foi pena que não tenha sido testemunhado por mais gente. Por outro lado, há bons segredos que é melhor guardar só para nós, antes que alguém os estrague.

O NOS Alive prossegue esta sexta-feira, com concertos de Metallica, M.I.A., Royal Blood, St. Vincent, Três Tristes Tigres ou Sea Girls, entre muitos outros. O dia está esgotado.

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