Junho de 1928
Capítulo 1
Ela entrou no meu escritório com aquele andar de fêmea que procura problemas; e problemas era o que mais saltava à vista quando se lhe olhava para o decote magnânimo, por onde a massa do peito soberbo estalava, e para o bambolear das pernas que se cruzavam num andar de gata ao luar. Procurei olhá‐la de uma forma misteriosa e fleumática, mas apenas pareci parvo.
— Procuro o Sr. Ulisses Garcia, o detetive privado — disse‐me, detendo‐se diante da secretária. As pestanas compridas batiam‐lhe sobre os olhos emoldurados com kohl, a massa de cabelo escuro tombava‐lhe pelo ombro nu como uma cascata espessa onde dava vontade de enterrar o rosto e focinhar como um bicho. Terei demorado um nadinha de mais a responder, mas tirei os sapatos de cima do tampo, coloquei‐me em pé e disfarcei como pude o ar atarantado.
— Acabou de o encontrar, boneca — respondi, enfiando os dedos nos suspensórios. O facto de ter metade da altura da maioria dos meus clientes nunca causava aquela primeira impressão que os detetives das revistas baratas, sempre altos, espadaúdos e de resposta fácil, causam aos clientes que lhes batem à porta. Mas quando a vida nos dá limões, temos de aprender a espremê‐los nos olhos dos outros; e, verdade seja dita, ser anão tem as suas vantagens numa cidade onde todos preferem olhar para o alto.
Ela nem tentou disfarçar a surpresa e olhou em redor como se, ao fazê‐lo, pudesse desmanchar a partida que eu lhe estava a pregar. Mirou a parede atrás de mim, com a licença de detetive privado emoldurada, ao redor da qual a vaidade e um sentido fino do negócio me haviam feito pendurar alguns recortes de jornais com os meus principais casos. Preocupava‐me o facto de a maioria deles ter mais de cinco anos, mas quem não se lembrava do rapto do menino Butragueño, do desaparecimento da mulher do industrial Sommer, ou do roubo do colar da baronesa de Queluz? A ventoinha gemia preguiçosa no teto, os estores de ripas deixavam entrar as luzes dos dirigíveis que passavam baixo em direção à torre de atracação junto do Marquês de Pombal, e como o escritório apenas tinha mais um móvel‐bar e um arquivo de aspeto entediante, os olhos dela tiveram de regressar a mim.
— É o Sr. Ulisses?
— Pensei que já tinha dito isso, boneca. Se esperava alguém mais alto, eu esperava alguém com melhor ouvido.
Ela levantou a mãozinha enluvada para se desculpar e perguntou se podia sentar‐se. Eu acenei em silêncio e dirigi‐me ao bar, onde servi dois whiskies com pedrinhas de gelo redondas. As reações à minha estatura haviam deixado de me incomodar há muitos anos, quando ganhara a alcunha de tripé no bordel onde trabalhara como moço de recados e pau para toda a obra. Se não sabem porque é que prostitutas bem‐humoradas decidiriam chamar tripé a um homem, é porque têm pouca imaginação. Ela aceitou a bebida, como eu sabia que aceitaria, pois o ar felino que ostentava, soberbo e quente, apenas procurava disfarçar um medo frio que a consumia por dentro.
— O que posso fazer por si, menina…
— Valéria, Valéria do Rego.
— Hum…
Não lhe disse nada, mas temo que os meus olhos tenham dito tudo.
Enquanto ela levava o copo aos lábios vermelhos como o pecado, tirei‐lhe as medidas ao que conseguia ver. Por baixo do cacho pesado de cabelos, entrevi um crachá com o logótipo da Real Associação Industrial de Lisboa. Estava explicada a farpela justa àquela hora da tarde: ela era uma daquelas bonequinhas que sorriem como tontas nos pavilhões da Grande Exposição do Império Ibérico, ao lado das máquinas que testemunham o poderio industrial do reino. As turbas de fotógrafos que por lá andam apontam as objetivas aos modelos de turbinas e tratores, mas o que querem ver são as modelos de carne e osso. Aos fins de semana, os paizinhos de família, de mão dada às esposas, as crianças às cavalitas e expressões sonsas nos rostos, fazem o mesmo.
— Algo se está a passar comigo — acabou por dizer, cerrando os olhos. E, quando o fez, podia jurar que tudo em redor pareceu escurecer.
— Consegue ser mais específica, menina Rego?
— Não sei o que é, mas ando a fazer coisas de noite de que não me recordo quando desperto...
Detive‐me com o copo a meio caminho da boca. Lá em baixo, na maldita Avenida da Liberdade, passaram umas sirenes que, até ali, num oitavo andar, pareciam furiosas. Os motores de um dirigível que rasou a cobertura do prédio agitaram as garrafas no bar. Eu já estava habituado, mas ela não, o que a fez sobressaltar‐se.
— Querida — disse‐lhe, quando se recompôs. — Leu bem o que está escrito ali no vidro fosco da porta, certo?
Hesitou, temendo uma armadilha.
— Ulisses Garcia?
— Refiro‐me ao que está por baixo. Não diz doutor nem alienista, diz detetive privado. Por mais interessantes que sejam as coisas que faz de noite, e a título pessoal adoraria indagar isso melhor, como profissional, devo informá‐la de que apenas investigo crimes e não casos clínicos.
— Não estou louca — disse‐me, levantando a negra cortina das pestanas e fulminando‐me com o olhar. Daquela larga pupila soltou‐se um clarão, uma influência, como a do sol do meio‐dia no deserto que abrasa e vagamente entristece.
Não respondi, pois a voz sai‐me estranha quando tenho uma ereção.
— Há uma semana, acordei de madrugada e estava na minha cama, desnuda, com um homem a arfar em cima de mim.
Como o silêncio dela se arrastou, perguntei:
— Devo depreender que há algo de estranho nisso?
— Não conheço aquele homem, não o convidei para minha casa, nunca aceitaria deitar‐me com ele…
— A menina ficaria surpreendida com o que se faz quando se bebem uns copos a mais.
— Tinha vindo do trabalho naquele dia, Sr. Ulisses. Não bebera nada, nem uma gota.
— E perguntou a esse visitante como foi parar ao seu quarto? Ele devia lembrar‐se.
— Não perguntei! Devo ter voltado a adormecer.
— Hum…
Não sei se sabem, mas pela porta de um detetive privado entram os tipos mais estranhos de pessoas. E eu devo ter alguma espécie de magneto que os atrai como moscas. Uma vez apareceu‐me um antiquário rabeta que, quando estava sozinho, jurava ouvir vozinhas dentro de um relógio de pêndulo e queria que eu descobrisse se eram liliputianos do sexo masculino ou do sexo feminino — até tenho medo de pensar na razão; de outra vez foi uma vidente de turbante que me visitou em pleno verão a jurar que lhe iam roubar as joias na noite de Natal e queria que eu descobrisse atempadamente quem seria. A tentação de aceitar o dinheiro desses papalvos é grande, até porque pagam sem vacilar, mas depois não nos largam as canelas, as notícias espalham‐se e ficamos com uma fama esquisita.
— Mas voltou a acontecer esta noite — disse ela, num sopro, enquanto puxava de um cigarro que me apressei a acender.
— Voltou a despertar com um homem que nunca tinha visto em cima de si e depois adormeceu?
— Eu não disse que nunca o tinha visto.
— Então sabe quem é ele?
— Neste momento estou a trabalhar na Grande Exposição. E desde o primeiro dia em que abriu, vejo‐o a circular na multidão. Não larga o pavilhão da Associação Industrial e mal desvia os olhos de mim, mirando‐me de forma repulsiva, lambendo os beiços como um cão, é nojento. Já me queixei ao meu superior, mas ele é um idiota e ordenou‐me que sorrisse para todos.
A carinha dela enquanto falava desfigurou‐se tanto que até eu senti nojo do homem misterioso. Mas a verdade é que uma beldade daquelas devia estar habituada a parar o trânsito, a ouvir buzinadelas e piropos porcos a cada esquina, a ser despida por todo o tipo de olhares rebarbados. Era o que eu lhe estava a fazer.
— Oiça, docinho, se a atenção desse pervertido a incomoda tanto, é normal que tenha pesadelos. Vou dar‐lhe um conselho e nem terá de me pagar cheta: antes de se deitar, tome um calmante, beba um gin e tudo passa — disse‐lhe, levando o copo aos lábios e certo de que o caso estava resolvido.
— Não é um pesadelo, Sr. Ulisses, é bem real — respondeu‐me, soprando para o alto uma nuvem de fumo que, tal como ela, tinha curvas acentuadas. — É tão real aquele homem ter estado na minha cama como eu estar aqui, sentada a falar consigo.
Inspirei fundo. Se ela fosse uma megera feia, expulsava‐a sem hesitar. Mas a tipa era como uma deusa grega apertada dentro de uma farda institucional, e eu não tinha nada melhor para fazer. No fundo, aquilo até podia ser o início de uma bela amizade. Felizmente ela continuou, pois, se eu falasse, a minha voz ia soar esquisita.
— Quando acordei hoje de manhã, o quarto estava todo arrumadinho, como da outra vez. Nem sinal de que ele lá tinha estado.
Não a interrompi para lhe dizer que não estava surpreendido. Deixei‐a falar. E então ela surpreendeu‐me.
— Só uma coisa estava errada, um pormenor que prova que não sonhei e que ele esteve mesmo lá...
Levantei as sobrancelhas. São espessas, dizem que, quando faço isto, nem preciso de abrir o bico.
— Ele vestiu‐me as calcinhas ao contrário.
— As calcinhas ao contrário... — repeti, antes mesmo de perceber que o tinha feito. Isto há coisas...
— Exatamente.
— Essa é a sua prova?
— Não preciso de outra.
— Não havia umas ceroulas dele no chão, uns pelinhos perdidos no chuveiro, um relógio de homem esquecido no aparador?
O olhar dela voltava a fulminar‐me e desta vez soprou na minha direção, atingindo-me com uma espécie de flecha de fumo que me abrasou os olhos e a garganta. Foi os diabos para não tossir.
— Apenas as calcinhas, Sr. Ulisses.
— Menina Rego, se eu tivesse uma moeda por cada vez que visto as ceroulas ao contrário...
Ela levantou‐se sem pressa. Como se o rosto e o peito soberbo tivessem tomado um ascensor lento, as curvas das ancas começando a espreitar por cima do tampo da secretária; raios, ela era alta! Com o cigarro entre os lábios, levou as luvinhas à borda do vestido e começou a subi‐lo, mostrando‐me as coxas, as ligas que lhe seguravam as meias e, por fim, as calcinhas. O vestido não deve ter demorado mais de quatro ou cinco segundos a subir, mas agora percebo o sábio — acho que um tal Tesla —, que afirma que o tempo é relativo. Eu confirmo! Naqueles segundos todo o meu corpo formigou, dos dedinhos dos pés que encolhi dentro dos sapatos, às sobrancelhas que me subiram outra vez e lá ficaram, a meio da testa. Prendi a respiração sem dar conta, a minha temperatura deve ter aumentado alguns graus, estou certo de que um médico coçaria a cabeça azamboado se me estivesse a examinar naquele momento. Ali estavam as famosas calcinhas, em cor de pele; eu pensava que sempre as preferira negras ou vermelhas, mas não, descobria agora que aquela era a minha cor de eleição. Eram transparentes o suficiente para ver que estava rapadinha por baixo, e tão justas que exibiam aquelas duas bossas que deixam os homens estúpidos. No alto, mas não tão alto assim, pois eram apenas uma amostra de calcinhas, tinha três medalhinhas do tamanho de moedas de mil‐réis penduradas na costura. Àquela distância não percebi as figuras que exibiam, e ainda que gostasse de me aproximar para as inspecionar, não arrisquei mexer um músculo.
— Está a ver estas três medalhas?
Acenei afirmativamente e não abri o bico pelas razões que conhecem. — Estavam viradas para dentro, a arranhar‐me a pele quando despertei. Não preciso de lhe explicar que nenhuma mulher vestiria a peça dessa forma; e, fazendo‐o, bastariam segundos para notar o engano. — Começou a puxar o vestido para baixo enquanto bamboleava os quadris para facilitar, e eu tentei, em vão, travar‐lhe o movimento com a força do meu olhar. De seguida, sentou‐se, sacudiu a cinza do cigarro no meu cinzeiro em forma de sapo com a boca aberta, e olhou‐me desafiante.
— E o que é que pretende exatamente que eu faça, menina Rego?
— Que passe os próximos dias na exposição e, ao final da tarde, me siga até casa. Que descubra como é que aquele canalha consegue fazer o que faz.
Uns dias de trabalho a seguir uma mulher bonita até casa; já fizera sacrifícios maiores. Disse‐lhe quanto é que teria de cobrar por dia, ao que acresciam as despesas. Ela abriu a bolsinha, daquele tipo minúsculo que as mulheres conseguem que sejam maiores por dentro do que por fora, e puxou de uma carteira vermelha de onde tirou o suficiente para três dias de trabalho.
— Sabe onde se localiza o expositor da Real Associação Industrial de Lisboa? — perguntou, depois de me virar as costas e se aproximar da porta, os seus quadris de égua nervosa, que o vestido azul justo apertava como uma segunda pele, enfeitiçando‐me o olhar e o entendimento.
— Sim! Hum... Não... Bem, não se preocupe, boneca, lá estarei, para ficar de olho em si.
Valéria sorriu sem mexer os lábios e fechou a porta de mansinho. Eu fiquei a olhar para o vulto dela a desaparecer do outro lado do vidro fosco, ouvi‐a descer no ascensor, e, mesmo assim, não me mexi por um bom bocado.
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