"É como um filme pornográfico feito por um computador: descarrega gigabytes de informação sobre sexo, descobre o nosso caso amoroso com carros e combina-os num algoritmo equivocado. O resultado é desafiante, corajoso e original — uma dissecação da mecânica da pornografia. Admirei-a, embora não possa dizer que gostei dela. Depois, dei por mim a desejar que um grande realizador pudesse dedicar este tipo de amor e atenção a um filme sobre os meus fetiches".

Assim termina a crítica de Roger Ebert de Crash, filme de David Cronenberg que estreou originalmente em outubro 1996 em Portugal, mas que por finais de 2020 foi meritório de uma versão restaurada em 4K. E, a partir de hoje, já é possível ver ou rever o drama/thriller protagonizado por Elias Koteas, Holly Hunter e James Spader nas salas portuguesas.

Título original: Crash
De: David Cronenberg
Com: Elias Koteas, Holly Hunter, James Spader
Género: Drama, Thriller
Classificação: M/18
Ano: 1996
Duração: 100m

Falar de Cronenberg é falar numa lista de trabalhos que vão dos thrillers psicológicos aos filmes de gangsters, com passagens pela ficção científica, drama de fantasias e até mesmo o mundo desportivo. Mas Crash (1997) é um assunto incontornável que figura no seu largo espólio enquanto realizador. É um filme controverso e que divide opiniões. Para uns repele, para outros a ousadia é um chamariz. Mas será que volvidos mais de 20 anos a receção será a mesma? Será que gera hoje a mesma controvérsia ou este mundo perverso do sexo em automóvel espatifado é apenas mais um fetiche macabro que apenas já não choca tanto na era da Internet? 

Em Inglaterra, por alturas da sua estreia original, a sua visão de acidentes de carros em mescla erótica recebeu denúncias azedas de boicote de publicações como o Evening Standard e Daily Mail. Westminster (Londres) até ordem deu para que fosse o filme proibido de ser exibido nos cinemas na famosa West End.

Atualmente, o The Guardian considera que no século XXI o apetite da imprensa para denunciar filmes chocantes desvaneceu e dá conta de que se calhar noutros tempos o ataque e indignação neste capítulo era maior. Contudo, frisa que apesar de a controvérsia ter envelhecido mal, Crash "aguenta-se bem" às duas décadas de condução pouco prudente.

O jornal britânico também enfatiza que não é o melhor trabalho de Cronenberg e não consegue reproduzir "o frio macabro" da prosa de J.G. Ballard no romance original de 1973. Além de acrescentar que "não há nenhum papel para Elizabeth Taylor como há no livro", explica que o lado assustador permanece, assim como o lado ameaçador e hipnótico e as cenas eróticas que não acrescentam muito à história. 

A crítica continua frisando que Crash já não é tão contemporâneo e que já no final dos anos 90 não tinha propriamente "a carga zeitgeisty" do livro — que tinha sido escrito 23 anos antes. Mais, enfatiza que os carros "não são realmente assim tão sexy", uma vez que os próprios automóveis tornaram-se muito mais aborrecidos e fiáveis e seguros na nossa era. "Hoje em dia, o airbag da banalidade está implantado", remata.

Um termo frequentemente em quase todos os artigos que exploram o mundo de Cronenberg vem com o termo auteur, quase como se fosse um sufixo inerente ao seu currículo. E isto deve-se ao facto do realizador explorar uma amplitude de criatividade onde é possível encontrar reflexões sobre identidade, família, violência e sexualidade. E, nesta última, Crash tem de sobra.

A sinopse oficial informa que estamos perante um filme demencial sobre o fascínio do sexo e da morte sobre rodas. "Uma macabra visão sobre a combinação entre erotismo e mutilação, autodestruição calculada e desejo sexual, morte violenta e acidentes rodoviários". 

Baseado no romance não menos controverso de J.G. Ballard, escritor e autor britânico não só de Crash, mas também de Império do Sol, o filme segue os passos (acidentes) de James Ballard (James Spader), um produtor de filmes publicitários que se junta a Vaughan (Elias Koteas), um cientista e fotógrafo fascinado pela beleza erótica dos ferimentos e das mutilações originadas por acidentes de viação.

David Cronenberg

O cineasta, hoje com 77 de anos, é o autor de filmes como Videodrome (1983), A mosca (1986), O Festim Nu (1991), Uma História de Violência (2005), Promessas Perigosas (2007) e Cosmopolis (2012).

O canadiano recebeu prémio de carreira no Festival de Cannes, em 2006, galardão que se junta a outras distinções, nomeadamente dos governos do Canadá e de França. 

Mais tarde, em 2018, foi a vez de Veneza distinguir "um dos mais ousados e estimulantes realizadores de sempre, um incansável inovador de formas e linguagens" que no começo de carreira este relevado para "as margens do género horror".

Nascido em 1943 em Toronto, é conhecido pelo seu gosto pelo horror, pelas manipulações e mutações genéticas, a realidade virtual e o ciberespaço. Antes de atingir a fama mundial, David Cronenberg — filho de uma pianista e de um editor especializado em banda desenhada e policiais — estudou ciências e literatura, iniciando posteriormente uma obra coerente, onde se destaca o tema das metarmorfoses. 

O cineasta adaptou ao cinema obras de William Burrough, Stephen King ou J.G. Ballard.

Criou escândalo em Cannes, mas levou prémio em Júri — e Coppola não ficou satisfeito 

Em 1996, Crash causou o assombro e o escândalo em Cannes devido aos ritos sexuais com bólides, couros, metais e cenas sadomasoquistas. A violência dos fantasmas perversos de um homem e de uma mulher, casados, que vivem num apartamento por debaixo das autoestradas e dos viadutos esteve na origem da discórdia. Contudo, o júri justificou entrega deste prémio "pela sua audácia e a sua imaginação". 

Mas isto não deixou Francis Ford Coppola satisfeito. E a história foi contada numa conversa para promover esta versão restaurada a 4K pelo próprio Cronenberg, que falou com a The Canadian Press (via Yahoo! News) sobre o filme e abordou especificamente a sua estreia mundial no Festival de Cinema de Cannes naquele quando Francis Ford Coppola era presidente do júri.

O IndieWire conta que Coppola não se fez de rogado para que o mundo soubesse que nem todos apoiavam filme — e que por sua vez haviam outras pessoas que se opuseram à entrada da Palma de Ouro à carta de amor à pornografia automóvel de autor. E, por essas pessoas, de acordo com Cronenberg, entenda-se apenas Coppola.

"Coppola era totalmente contra", começou por explicar o realizador canadiano. "Penso que ele era o principal. Quando me perguntam qual a razão para que o filme recebesse este Prémio Especial do Júri, penso que foi a tentativa do júri de contornar a negatividade de Coppola, porque tinham o poder de criar o seu próprio prémio sem a aprovação do presidente. E foi isso que fizeram. Mas Coppola foi certamente contra", completou.

Cronenberg disse também que a aversão de Coppola pelo filme galgou até à cerimónia de entrega de prémios do festival. "O estranho é que já o encontrei várias vezes em vários festivais. A primeira coisa que ele diz é sempre: lembra-te, nós demos-te este prémio. Jurei a mim mesmo que da próxima vez que ele dissesse isso, eu lembrar-lhe-ia que ele não estava entre aqueles que queriam atribuir o prémio", recorda.


Artigo atualizado às 20:43 para corrigir a informação do primeiro parágrafo