INTRODUÇÃO

Um poder «sistémico»

São seis, todos americanos, e são mundiais, fora do alcance do fisco e dos reguladores. A sua riqueza pessoal está para lá do entendimento: 50, 100, 150 mil milhões, conforme os humores da bolsa. Dizem querer salvar o mundo, mas a pandemia da covid mais não fez do que os enriquecer. Mesmo quando as suas ações perdem valor, continuam a ter mais peso do que a maioria dos Estados. Os seus nomes? Elon Musk (SpaceX, Tesla, X), Jeff Bezos (Amazon), Mark Zuckerberg (Facebook-Meta), Bill Gates (Microsoft), Sergey Brin e Larry Page (Google). Estes seis detêm um poder sistémico.

Não são as fortunas que lhes conferem poder, mas sim o poder que lhes dá as fortunas. No fundo, os seus recursos financeiros importam pouco. O que conta são essas capacidades que os Estados não têm, já não têm ou nunca tiveram. Em certos domínios, substituem os Estados ou opõem-se a estes. Um dia, poderão suplantá-los. Sem terem recebido o aval do povo. Isto é inédito na história das democracias.

Estes seis multimilionários ocidentais prosperam sem entraves porque aqueles que poderiam travá-los não o querem fazer e os que querem travá-los não podem. Representam uma ameaça existencial para as democracias que os alimentam no seu seio, ainda que aleguem velar pelas nossas vidas como o Vaticano vela pelas nossas almas.

Existem 2668 multimilionários em dólares no nosso planeta, segundo a classificação da Forbes 2023; Musk, Zuckerberg, Page, Brin, Bezos e Gates não são os seis primeiros da lista. Bernard Arnault, o patrão da LVMH, geralmente à cabeça quando os ventos da bolsa lhe são favoráveis, Warren Buffett, o nonagenário rei dos investimentos, ou Françoise Bettencourt Meyers, a herdeira da L’Oréal, acumularam riquezas sem, porém, terem um poder de vida ou de morte sobre as nossas sociedades. Possuem mais dinheiro do que aquele que alguma vez poderão gastar, mas não são transumanistas, não querem modificar a espécie humana, não têm sonhos messiânicos, não utilizam os seus meios colossais para acabar com a morte ou colonizar Marte... e não exercem sobre o psiquismo das jovens gerações a mesma influência nefasta.

São seis homens que estão aqui em causa, e não, em bloco, as «GAFAM» (Google, Amazon, Facebook, Apple, Microsoft), ainda que o poder inicial destes tycoons venha das empresas que criaram. Mas as suas próprias atividades não se confundem com aquelas. Além disso, as empresas de Elon Musk não fazem parte das GAFAM, apesar de ser um desses multimilionários com um poder desmesurado. A Apple, que é uma GAFAM, não está numa situação de monopólio e, por isso, não detém um poder exclusivo: enfrenta uma forte concorrência, coreana ou chinesa. Se Steve Jobs, o seu icónico fundador, ainda fosse vivo, não faria assim parte desse punhado de multimilionários «sistémicos».

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia. Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar a leitura e a discussão à volta dos livros.

Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Os Estados Unidos e a Europa deixaram crescer os gigantes da tecnologia até se tornarem intocáveis. A China, por seu lado, conteve-os para favorecer os seus próprios agentes, como a Alibaba ou a Tencent; no entanto, quando estas empresas se tornaram superpoderosas, quando passaram a representar um perigo para o Estado, Xi Jinping cortou-lhes as asas. Controlou-as a fim de utilizar o seu poder em proveito próprio. Dificilmente este controlo seria concebível no Ocidente, mas a China é tudo menos um Estado de direito.

Bezos escapa aos impostos de 2007 a 2011

Será que os Estados ocidentais se tornaram demasiado fracos ou foram estes multimilionários que se tornaram demasiado fortes? Se as suas fortunas batem todos os recordes, não é apenas porque as respetivas atividades florescem: é também porque reconfiguraram os fluxos financeiros mundiais a seu favor, com a ajuda dos paraísos fiscais, em detrimento dos países onde exercem as suas atividades. A título pessoal, alguns deles conseguiram até escapar ao imposto federal sobre os rendimentos, declarando perdas sobre os seus investimentos superiores aos seus rendimentos anuais: foi o caso de Elon Musk, em 2008, e de Jeff Bezos, entre 2007 e 2011... pouco antes de se tornar, durante algum tempo, o homem mais rico do mundo.

Não se importariam de viver num mundo sem Estados e manifestam uma desconfiança instintiva em relação às administrações que lhes impõem limites ou que lhes extraem impostos. Elon Musk apoia Trump e os seus cortes de impostos para os mais ricos; durante algum tempo, os fundadores da Google pensaram em instalar a empresa offshore, numa plataforma ao largo das costas americanas.

Estes novos super-ricos confiscam aos Estados algumas prerrogativas soberanas, ou seja, funções que deviam decorrer exclusivamente da autoridade soberana. Introduziram-se no sector espacial, na saúde, na defesa, na diplomacia, na educação — ou melhor, no saber e na influência sobre os espíritos... —, até obterem, em certos domínios, um controlo quase total. São mais ricos, mais influentes e mais ágeis do que a maioria dos Estados-nações. E não prestam contas a ninguém — sobretudo não aos eleitores. Será normal que decidam, no lugar dos cidadãos, o que é bom para eles?

Quando Thomas Pesquet voou para a estação espacial internacional, não foi num foguetão francês. Tão-pouco foi num foguetão da NASA, a outrora todo-poderosa agência dos Estados Unidos. O Estado americano já não sabe fabricar este tipo de máquina. Já não ousa correr riscos desde a explosão do Challenger, que traumatizou a nação em 1986. O astronauta francês também não usou um foguetão europeu: a Europa, dantes proeminente no sector espacial com o Ariane, está atrasada. Thomas Pesquet viajou para a EEI num Falcon 9, um foguetão de Elon Musk. Jeff Bezos gostaria que tivesse sido no seu, o Blue Origin. O fundador da Amazon pensa assim na sua vingança. No entanto, seja um ou outro, são os novos multimilionários que enviam os nossos astronautas para o cosmos.

Elon Musk assumiu os riscos no lugar do Estado americano, que lhe pagou muito bem. Este empreendedor sul-africano, simultaneamente canadiano e americano, com uma fortuna de 246 mil milhões de dólares, tornou-se, no período de uma década, um gigante do sector espacial. Para si, as pequenas viagens de ida e volta à Estação Internacional são apenas aperitivos: o que lhe interessa são os enormes foguetões que, no futuro, levarão os homens à Lua e, depois, a Marte. Isto porque decidiu fazer do planeta vermelho o nosso «planeta sobresselente». Uma terra virgem, um novo Far West, onde os mais audazes reinarão como senhores e ditarão a sua lei... pois não haverá Estados. A NASA (ou seja, o cidadão americano), ao financiar o desenvolvimento das suas Starship lunares, contribui para os seus sonhos marcianos.

Elon não gosta das regulações nem da ordem estabelecida. Acredita apenas no talento, na rapidez, na vontade. E não só para os automóveis e os foguetões. Um terço dos satélites de telecomunicações que estão em órbita à volta da Terra pertence-lhe! Lançou-os sem pedir autorização. Com um princípio, o primeiro a chegar é o primeiro a ser servido! Tanto pior para a Europa se não é capaz de lançar os seus. Elon conhece apenas a lei do mais forte. E a Europa não está à altura.

Starlink, árbitro da guerra na Ucrânia

É graças a Elon que a Ucrânia pode enfrentar o exército russo. No entanto, não fabrica canhões Caesar nem carros de combate Leopard 3... mas os seus satélites são vitais nesta guerra do século XXI. Ele permitiu que as forças ucranianas utilizassem os seus sistemas digitais de combate, explorassem informações e coordenassem ataques de artilharia, e que as unidades operacionais comunicassem com os seus estados-maiores. Quando os drones, as câmaras, os vídeos e as informações contam tanto quanto o número de divisões blindadas, a disponibilidade da Internet é vital. Se Elon Musk não tivesse posto ao serviço dos Ucranianos a sua constelação Starlink — centenas de satélites, demasiados para serem abatidos — e as estações a eles associadas, os Russos teriam esmagado os seus «irmãozinhos» ucranianos logo na primeira ofensiva. Foi graças à sua rede que Kiev pôde travar a sua guerra. Contudo, o multimilionário terá cortado o acesso, talvez a pedido de Vladimir Putin, com quem se mantém em contacto, em certas zonas do Sul, muito disputadas: privados de Internet, os Ucranianos viram-se em pleno caos no momento de passar ao ataque. Hoje, os oficiais no Pentágono tremem perante a ideia de Musk poder abandonar a Ucrânia.

Para impedir que a Rússia se apoderasse do país, o exército de Volodymyr Zelensky também contou com os meios tecnológicos da Google, da Microsoft, da Amazon ou da Meta, que nenhum Estado lhe poderia oferecer. O mito da neutralidade política dos gigantes da Internet foi rapidamente destruído! O governo ucraniano foi informado dos primeiros ciberataques graças ao alerta dado pela Microsoft à Casa Branca. As nuvens da Microsoft e da Amazon alo- jam hoje os registos da população ucraniana e as suas informações fiscais. A Google desempenha um papel essencial em matéria de geolocalização, enquanto o YouTube ou o Facebook lutam contra a desinformação. As empresas dos seis multimilionários estão agora no centro dos sistemas informáticos civis e militares da Ucrânia.

Livro: "Mais Poderosos do que os Estados"

Autor: Christine Kerdellant

Editora: Edições 70

Data de Lançamento: 16 de janeiro de 2025

Preço: € 20,90

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A contrapartida? Todos os dados dos cidadãos podem ser livremente acedidos pelas Big Tech. Para fazerem face à emergência, os Ucranianos renunciam à sua soberania...

Os gigantes informáticos adquiriram, no conflito ucraniano, uma importância que suscita questões políticas. Trabalham de forma transparente com as autoridades americanas. Segundo o general Bonnemaison, chefe do comando francês da cibersegurança (ComCyber), que foi auditado pela Assembleia Nacional em dezembro de 2022, os meios de que estes multimilionários dispõem — engenheiros, material, investimentos ou capacidade de investigação — não têm comparação com os que podem ser disponibilizados por um governo aliado. É verdade que a terra, o mar ou o ar são controlados pelas forças armadas nacionais, mas o ciberespaço, tal como o espaço, é operado em grande parte por empresas. O sector privado, portanto, desempenha um papel vital na defesa de um país — e fixa, queiramos ou não, certas regras do jogo.

Musk decide sozinho sobre o «bem» e o «mal»

Foi o mesmo Elon Musk, magnata do sector espacial e automóvel, que adquiriu o Twitter, rebatizado X, por 44 mil milhões de dólares. Obteve o controlo sobre uma gigantesca rede de influência de 350 milhões de utilizadores. Deste novo território, suprimiu a censura de que eram «vítimas» Donald Trump e Kanye West, que, porém, a tinham merecido. O ex-presidente americano publicara aí inverdades e pusera em perigo a democracia incitando os seus seguidores a atacar o Capitólio. Quanto ao rapper, multiplicava as provocações e fazia afirmações antissemitas.

Trump, que possui a sua própria rede social, só regressou ao X em 24 de agosto de 2021, com a sua «mug shot», uma fotografia de identificação para os órgãos judiciais. Entretanto, Kanye West regressou à mesma rede social, e Musk teve de voltar a censurá-lo: o rapper não se coibiu de fazer a apologia dos nazis e de confessar a sua admiração por Hitler! Estas censuras e autorizações, porém, suscitam uma questão: é verdade que Kanye West é indefensável, mas será normal que seja apenas Musk a fazer a triagem? Pouco tempo depois de ter adquirido a rede, encerrou as contas de uma dezena de jornalistas, do New York Times ao Washington Post, culpados de terem revelado a localização do seu jato pessoal e, portanto, de violação da sua vida privada. Elon Musk poderá assim decretar, para todo o planeta, o que é «bem» ou «mal»? Tal como Mark Zuckerberg, que, sozinho, decidiu encerrar a conta de Facebook de Donald Trump? No entanto, quem pode decidir do bem e do mal, senão Deus, para os que Nele acreditam? Ou uma assembleia de juízes, enquanto emanação dos cidadãos?

Não é a primeira vez que a Casa Branca tem de enfrentar homens de negócios que dominam sectores-chave da economia; houve os caminhos de ferro, o petróleo, as telecomunicações... No entanto, a diferença entre os nossos multimilionários e os «barões-ladrões» do século XIX é que tanto Musk como Zuckerberg têm em mãos uma tecnologia e uma plataforma que permitem que qualquer um — na condição de que o autorizem — se torne a sua própria rede ou a sua própria cadeia e difunda aí instantaneamente as suas ideias políticas.

Será que Musk se toma pelo Criador, quando coloca implantes no cérebro de macacos ou de porcos — e, em breve, de seres humanos voluntários —, preconizando a hibridização do homem e da máquina, para que a humanidade possa «estar à altura» da inteligência artificial?

Este patrão excêntrico e extravagante não é o único fenómeno do seu género. Com o seu foguetão Blue Origin, o fundador da Amazon, Jeff Bezos, também procura os contratos da NASA desde que os Estados Unidos foram obrigados a confiar o destino dos seus astronautas a estes multimilionários que consideram a Terra demasiado pequena. Também ele tenta explorar o turismo espacial graças aos contratos públicos. Está muito feliz por os Estados Unidos terem baixado os braços perante a complexidade tecnológica e acabado por ter de recorrer aos russos da Soyouz. A NASA confia até ao privado os fatos espaciais dos próximos astronautas que caminharão na Lua; custarão, diz-se, mais de mil milhões de dólares cada: portanto, Washington não vai concebê-los... mas alugá-los!