Francisco da Costa Alcoforado, vestido a rigor, levou Mariana ao Convento da Conceição. Luís seguiu-os carregando as malas. Havia festa no convento e a porta que dava para a praça estava aberta de par em par. Via-se gente da cidade por todo o lado. Uma mulher com uma fina toalha branca na cabeça levava um tabuleiro de doces de ovos e amêndoas e ofereceu alguns a Mariana e ao pai. Disse-lhes que a madre superiora os aguardava. Algumas noviças de véu branco corriam umas atrás das outras. Contudo, ao repararem nos olhares de Francisco, desapareceram.
A madre superiora, Maria de Mendonça, saudou Francisco com uma vénia. Acariciou o rosto de Mariana e disse-lhe:
– És muito bonita. Serei uma mãe para ti.
– Não é nada a minha mãe – disse Mariana.
– Mariana! – repreendeu-a o pai.
– Mas hei de ser, se me deixares – prosseguiu a madre.
– Preparei o teu quarto e acho que vais gostar.
– Tenho a certeza que não.
A madre ajoelhou-se e fitou Mariana.
– Gosto dos corações cândidos e por isso tenho a impressão de que vou gostar muito de ti.
– Onde está a escrivã? – perguntou D. Francisco.
Nesse preciso instante, entrou no locutório a irmã Maria Madalena, como se os desejos de Francisco exigissem uma materialização imediata. Vinha acompanhada pela escrivã Brites de Brito, uma jovem freira que trazia nas mãos um livro enorme de capa manchada e páginas em pergaminho. A escrivã pousou o livro numa mesa com uma toalha de damasco antigo. Com um gesto, Francisco expulsou um visitante bêbado de uma poltrona de couro russo, de espaldar alto e com incrustações adamascadas. Sentou-se enquanto a escrivã abria o livro no ano de 1651 para registar o nome de Mariana.
Francisco tirou um documento do gibão e leu-o em voz alta. Pagaria ao convento um estipêndio de trezentos mil réis pela pensão de Mariana. Doaria ainda uma parcela de um campo de trigo, com a condição de ser usado para alimentar o convento e constituísse um complemento do estipêndio para cobrir as despesas de Mariana e se tornasse propriedade do convento após a morte da filha. Haveria outras dádivas quando Mariana tomasse votos. Mariana Alcoforado renunciava a todos os direitos de herança da parte da mãe ou do pai, exceto o que desejasse doar aos santos evangelistas.
A madre superiora mostrou-se chocada por ele ter assentado tudo por escrito e ainda mais perturbada por Francisco o ler na presença da filha. A doação era generosa, mas o facto de a proclamar daquela maneira denotava falta de sensibilidade.
– Quero um recibo, madre.
– Um recibo? – exclamou ela, perplexa.
Nunca ouvira tal exigência. As irmãs Maria Madalena e Brites de Brito coraram. Toda a gente sabia que uma freira não podia herdar nada diretamente dos pais. A madre pousou as mãos nos ombros de Mariana. Era estranho que aquela menina não se mostrasse assustada nem perturbada, sempre impenetrável. Perguntou-se se Mariana compreenderia o que se passava. Ela mesma, também de estirpe nobre, levara anos para entender que os pais a tinham posto no convento a fim de manter intacta a herança do morgadio. E os Alcoforado tinham tantas filhas que eram obrigados a proceder da mesma maneira.
Francisco da Costa garantiu à filha que nenhum soldado entraria ali e que ela era demasiado esperta para que a deixasse ser mulher de qualquer um.
A madre superiora concordou. Viver no meio de mulheres tinha as suas vantagens e Mariana aperceber-se-ia disso com o tempo.
– Adeus, minha querida filha – despediu -se o pai, inclinando-se para lhe dar um beijo.
Mariana sentiu o odor a laranjas e cinzas do seu cabelo e disse:
– Não podes deixar-me aqui, pai – agarrou-se a ele e recusou-se a chorar. Foi preciso que a madre, uma das irmãs e o próprio pai a afastassem. Ela voltou a abraçá-lo e tiveram de desprender-lhe novamente os dedos um a um. Um calafrio percorreu o pai perante o impressionante vigor da filha.
Ao sair, deixando Mariana aos cuidados das religiosas, a filha voltou a chamá-lo:
– Pai! – Uma última lança que lhe acertou em cheio no coração.
– Vem ver o teu lindo quarto – suplicou a madre.
Um bilhete de boas-vindas da parte da irmã Leonor Henriques, irmã de Rui, aguardava Mariana nos seus aposentos. Uma almofada bordada a rosas ocupava a cabeceira da larga cama de madeira de teca, e ela passou os dedos por cima das iniciais «JMJ» – Jesus, Maria e José – gravadas no interior de um coração talhado na madeira.
A madre apontou para o ramo de flores em cima de uma arca lacada.
– É um presente meu. Gostas?
– Não – respondeu Mariana. – Cheiram mal.
– Tens um ótimo olfato. Estas flores não têm odor... Ah! Parece-me que sorriste.
– Não sorri nada. Se essas flores não cheiram a nada, então para que servem?
– Havemos de ter muitas discussões filosóficas dessas. Vou ser tua professora.
Mariana virou-se para ela.
– Peço então que me perdoe. Adoro professores – disse, com os lábios a tremer.
– Adorar? Não – disse a madre, pegando-lhe nas mãos. – Suspeito bem de que és tu quem me vai ensinar muita coisa. Agora vou deixar-te, para ficares à vontade.
– Não me deixe! – rogou Mariana.
– Será a nossa primeira lição: aprender a sentir a presença daqueles que amamos mesmo quando não se encontram ao nosso lado.
– Sim – disse Mariana, dando-se conta de que a madre a tinha levado a prometer amor à sua superiora. Sorriu pela primeira vez naquele dia.
– Gosto de ser posta à prova. Hei de passar todas as provas.
– Muito bem. Até breve.
Mariana tentou sentir a presença da sua família – e da madre superiora – nos quadros das paredes e junto do crucifixo. Tentou senti-la no tapete que decorava o soalho ou na pia de água benta. Explorou os seus novos aposentos. Um armário encostado à parede e, em cima da mesinha de cabeceira, um breviário e uma lamparina. A escrivaninha de nogueira tinha muitas gavetas. Duas cadeirinhas de palha e duas maiores de castanheiro ocupavam os cantos da sala. A mãe dissera-lhe que as filhas dos nobres tinham quartos como aquele, a que chamavam «casinhas» por serem tão grandes, enquanto as outras freiras eram alojadas em celas, como eram os refugiados sem abrigo e algumas mulheres cujos maridos estavam frequentemente fora por causa da guerra. Duzentas e onze mulheres e crianças viviam no Convento da Conceição, mais cinquenta do que era costume. No breve espaço de tempo que estivera com o pai no andar de baixo, tinha visto homens – trabalhadores, pais, maridos – entrando e saindo do locutório com notícias de casa, das ruas e dos campos de batalha, ou uma joia ou um cesto com comida. Aparentemente, a porteira deixava entrar toda a gente, exceto soldados espanhóis.
Mariana deixou-se cair na cama, exausta por tentar sentir a presença de gente que não estava ali. Por que razão tinha de fazer isso? Por que razão o sofrimento tinha de ser um jogo? Queria algo de real, uma companhia verdadeira. Continuava à espera de que o pai corrigisse o erro de a levar para o convento. A madre superiora não voltou e a irmã Leonor Henriques não a veio visitar. Despiu-se e examinou o hábito branco que deveria vestir.
Lembrou-se da promessa que fizera: Suportarei tudo isto. Se for a bem de glória futura, desfrutarei de uma situação ainda pior.
As suas primeiras visitas antes do jantar foram a mãe, Ana Maria com Miguel ao colo, e Baltazar de mão dada com Catarina. A mãe deu-lhe uma caixa cheia de botões.
– Despreguei-os das mangas das minhas blusas. Já que não te posso ter nos braços, prefiro senti-los vazios.
– Hei de visitar-te, nem que enlouqueça, estás a ouvir, Mariana? – disse-lhe Ana Maria.
Baltazar disse:
– Odeio conventos – e a mãe repreendeu-o por blasfemar.
À noite, Mariana sacudiu a caixa e imaginou que os braços da mãe a embalavam ao som dos botões. Levou a caixa consigo quando tentou fugir do convento, mas um soldado apanhou-a e mandou-a para o quarto.
Não conseguiu adormecer. Perto da madrugada, uma rapariga veio ter com ela apresentando-se como Brites de Freire, uma noviça de treze anos.
– O meu nome é Mariana Alcoforado.
– Da família dos Alcoforado?
Mariana encolheu os ombros.
Brites saltou para cima da cama e encostou-se à parede.
– Reparaste no que a marquesa D. Fernandes trazia esta manhã na missa? Diamantes! Espanta-me que os espanhóis não a tenham roubado. Bem gostaria que isso tivesse acontecido.
– Eu estava nas filas de trás.
Brites de Freire soltou uma gargalhada.
– É verdade que a igreja fica apinhada de gente. Os ricos da cidade ocupam os melhores lugares. Oh! Desculpa... não queria ofender.
– Quero ir para casa – disse Mariana.
– Não te preocupes, isto não é assim tão mau – disse Brites, pegando -lhe na mão.
E, como Mariana parecia interessada, continuou:
– Sabes o que há de bom nos véus e nos hábitos? Realçam-nos o rosto. Já reparaste como os rostos das freiras ficam puros e belos? Parecem flutuar... Tens olhos castanhos expressivos e eu não me importava de ter um nariz pequeno como o teu. A tua pele é macia e tens um interessante ar triste. Aposto que um dos teus pais é moreno e o outro claro. Tens ossos de animal, mas não muito grandes, o que é bom... A maior parte das mulheres tem ossos de pássaro. Como eu.
– Não tens, não – disse Mariana. – Mas era melhor que os tivesses, porque assim podias voar daqui para fora e levar-me contigo. – O meu pai diz que lá fora não é lugar para meninas.
– Porquê? Porque podes apaixonar-te por um espanhol?
Riram-se. Mariana apercebeu-se de repente de que não podia viver sem cumplicidades.
– Vamos explorar o convento – convidou Brites.
A madre superiora nunca contava as pensionárias à hora de dormir ou de recitar as horas na capela, nem fechava a porta dos dormitórios à chave. Mesmo que fosse jovem e cheia de energia, o número de residentes no convento era demasiado.
Desceram até à cozinha. As cozinheiras trabalhavam de noite para que as guloseimas que vendiam à gente da cidade aparecessem como por magia logo de manhãzinha. Dado que as claras dos ovos eram usadas como goma nos hábitos e nas toucas, para não desperdiçar as gemas tinham de produzir uma data de doces. O facto de prepararem tanta coisa a partir da mesma substância espicaçava-lhes a imaginação, e assim davam nomes humorísticos às suas invenções culinárias: «barrigas de freira», «papos de anjo» ou «orelhas de abade». Mariana e Brites ficaram encantadas com esta atividade frenética que vinha de tempos imemoriais, com estas mulheres que acordavam antes do amanhecer para trabalhar, inventar e divertir-se.
O labor das doceiras era tão lento como a oração que recitavam: «Deus, Deus, onde estás? Deixa-me vislumbrar-Te.»
«Sou um fogo tão ardente que não pode ser visto. Morrerias se me visses», prevenia Deus.
«Torna o êxtase mais suave, meu Deus, para que possamos olhar para Ti e sobreviver», respondiam as almas laboriosas.
As cozinheiras trabalhavam envoltas em nuvens de farinha. E dado que era o momento do Grande Silêncio, continuavam o refrão em mutismo: «Deus! Deus!», até que, para as apaziguar, Ele deixava cair aparas de estrelas nos seus olhos. Quem suportaria mais do que pequeninos reflexos do Seu esplendor?
Os olhos das mulheres brilhavam de dor e de angústia por não ousarem pedir algo mais ardente.
A imagem de Mariana e Brites ali juntas lembrava aquela em que Mariana e Ana Maria admiravam as estrelas que pairavam sobre a casa paterna. O espírito de Mariana acompanhava o coro interior das freiras a trabalhar: «Deus! Deus! Deus! O que é a vida senão esperar por Ti?»
Numa das mesas da cozinha estava uma tigela com gemas de ovo, sóis que chocavam uns contra os outros. Tinham a cor que Mariana escolhera como tom de um fogo todo-poderoso. Junto a esta tigela havia outra maior, cheia de claras, uma massa gelatinosa que parecia sair dos olhos de Deus.
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