PARIS

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Em fevereiro de 74 desloquei-me a Paris com a anacrónica intenção de me converter num escritor dos anos vinte, estilo «geração perdida». Fui com esse – digamos – singular objetivo e, embora fosse muito jovem, isso não constituiu obstáculo para que, mal comecei a passear pela cidade, reparasse que Paris estava ensimesmada nas suas últimas revoluções, apoderando-se então de mim uma preguiça imensa, monumental, uma moleza enorme, só de pensar que tinha de me converter ali em escritor e, além disso, caçador de leões à Hemingway.

Ao diabo com tudo, especialmente com as minhas aspirações, disse para comigo um entardecer ao caminhar pela Pont Neuf. Tenho de fazer qualquer coisa para escapar deste destino, pensava de dois em dois minutos nesse dia, sem me dar trégua. E, no fim, acabei por entrar numa rua mal iluminada e encetar uma vida de delinquente que me devolveu de certo modo a um estado de espírito adolescente que julgava ultrapassado: o clássico estado exasperado do jovem que encontra na «intempérie da sua alma» e na palavra solidão os dois eixos em redor dos quais teriam de girar os grandes poemas que, demasiado ocupado com o tráfico de drogas, nunca escreverá.

Em Paris, em todo o caso, não fui tão idiota que me deixasse enganar pelo vazio absoluto, que era uma coisa que já me tinha dado cabo em Barcelona da primeira juventude, e limitei-me a permitir que me absorvesse um despropósito controlado, a raiar o fingido, dedicando-me quase exclusivamente a percorrer a fundo, de alto a baixo, a Paris mais canalha, a Paris brutal, a genial Paris que Luc Sante descreve em The Other Paris (bairros repletos de flâneurs, apaches, estrelas da chanson, clochards, valentes revolucionárias e artistas de rua), a Paris dos marginalizados, a Paris dos exilados antifranquistas, a Paris dos destroçados, a Paris da grande vertigem social.

Uma Paris que, muitos anos mais tarde, seria a paisagem de fundo da minha crónica sobre aquele período em que me dediquei ao tráfico de haxixe, marijuana e cocaína e não me foi possível dedicar um minuto sequer à escrita, ao que haveria que acrescentar o meu repentino desinteresse pela própria cultura em geral; um desinteresse que, a longo prazo, paguei caro e se refletiria inclusivamente no desastrado título escolhido para a minha crónica desses destemperados dias: Uma Garagem Própria.

"É Desta Que Leio Isto"

"É Desta Que Leio Isto" é um grupo de leitura promovido pela MadreMedia. Lançado em maio de 2020, foi criado com o propósito de incentivar a leitura e a discussão à volta dos livros.

Já folheámos as páginas de livros de autores como Luís Sepúlveda, George Orwell, José Saramago, Dulce Maria Cardoso, Harper Lee, Valter Hugo Mãe, Gabriel García Marquez, Vladimir Nabokov, Afonso Reis Cabral, Philip Roth, Chimamanda Ngozi Adichie, Jonathan Franzen, Isabel Lucas, Milan Kundera, Joan Didion, Eça de Queiroz e Patricia Highsmith, sempre com a presença de convidados especiais que nos ajudam à discussão, interpretação, troca de ideias e, sobretudo, proporcionam boas conversas.

Ao longo da história do nosso clube, já tivemos o privilégio de contar nomes como Teolinda Gersão, Afonso Cruz, Tânia Ganho, Filipe Melo e Juan Cavia, Kalaf Epalanga, Maria do Rosário Pedreira, Inês Maria Meneses, José Luís Peixoto, João Tordo e Álvaro Laborinho Lúcio, que falaram sobre as suas ou outras obras.

Para além dos encontros mensais para discussão de obras literárias, o clube conta com um grupo no Facebook, com mais de 2500 membros, que visa fomentar a troca de ideias à volta dos livros, dos seus autores e da escrita e histórias que nos apaixonam.

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Para mim, Paris, naquela primeira estadia de dois anos, foi apenas um lugar onde exerci exclusivamente o ofício de vendedor de droga e, durante um breve período de três meses que passou a voar, fui consumidor habitual de ácido lisérgico, ou LSD, o que me fez compreender que aquilo a que chamamos «realidade» não é uma ciência exata, mas antes um pacto entre muita gente, entre muitos conjurados que um dia na cidade natal de cada um, por exemplo, decidem que a Avenida Diagonal é um passeio com árvores, quando na realidade, se toma o seu ácido, pode ver que é um jardim zoológico atestado de feras e de periquitos com vida própria, todos soltos, alguns empoleirados nas copas das árvores.

O meu mundo em Paris reduziu-se a um modesto espaço no qual reinavam traficantes de pouca monta e a algumas festas de vez em quando com decadentes exilados espanhóis, festas baratas, mas com bastante vinho tinto, e das quais recordo unicamente que adquiri o costume de me despedir dizendo aos pseudoamigos ou conhecidos, a todos, sem exceção:

– Já sabem que deixei de escrever?

E quase sempre alguém saltava imediatamente para me dizer:

– Mas se tu não escreves!

E assim era, com efeito, não escrevia, ou, melhor dizendo, não voltara a fazê-lo desde o tempo em que tinha publicado o meu primeiro e último livro, o exercício de estilo que levara a cabo numas instalações militares da cidade africana de Melilla e que intitulei Nepal e que tratava soterradamente da destruição da família burguesa e de como eu me propunha – santa inocência, ainda não tinha posto os pés em Paris, na rua mal iluminada – permanecer de um modo absolutamente idêntico a mim mesmo toda a vida, quer dizer, apaixonado pelas sãs tendências hippies que tanto me tinham seduzido, até que uns desapiedados contraculturais, libertários e pacifistas me levaram para trabalhar numa colheita de beterraba e tudo mudou de chofre.

Ninguém sabia em Paris, e evidentemente ninguém tinha de o saber, que eu escrevera e publicara um livro ao regressar de África, um romancezito que fingia ter sido escrito em Katmandu e no qual tratava a prosa de um modo tão experimental que a crítica à família burguesa passava despercebida. Desses dias que eu passara em Melilla brincando a sentir-me Gary Cooper em Marrocos, de Von Sternberg (embora me faltasse tudo para o ser, para começar Marlene Dietrich), ninguém tinha a menor notícia, o que me oferecia, entre outras coisas, a oportunidade de experimentar ser outro, de inventar uma nova identidade, se bem que acabasse sempre por descobrir que, embora desejasse ser muitas pessoas e ter nascido em muitos lugares diferentes, não havia dia em que não acabasse por verificar que somos demasiado parecidos connosco mesmos, e o risco reside precisamente em que acabemos por nos parecer connosco mesmos.

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Em Paris era muito estranho não escrever, isso tem de ficar aqui muito claro. Cioran descreveu este fenómeno ao transcrever o que um dia lhe tinha dito a porteira do seu imóvel: «Os franceses já não querem trabalhar, querem todos escrever.»

«Mas se tu não escreves!», retificavam-me sempre nas festas das quais saía com cargas explosivas de vinho e haxixe. Contudo, voltava a despedir-me da mesma maneira dias depois; gostava tanto de proclamar que tinha deixado de escrever para poder ouvir aquele fantástico «Mas se tu não escreves!», que me fui habituando a fingir que não ouvia, consciente de que isso me facilitaria noutros momentos poder continuar a repetir a minha frase de despedida.

Hoje julgo compreender que, já muito antes de escrever – ou tendo escrito Nepal, que para o caso vinha a ser o mesmo, porque já não era escrita, nem chegava a exercício de estilo –, desejava de uma maneira quase irresistível deixar para trás a escrita, um assunto que fiz bem em nunca perder de vista. De facto, essa poética de querer abandonar a obra antes de que houvesse obra foi o que a longo prazo me converteu num especialista em andar aos tombos de um lado para o outro pelo círculo das cinco tendências narrativas, que penso sempre, intuo sempre, que são seis, sem que consiga encontrar a sexta.

Pelo círculo das cinco tendências narrativas viajei numa época como louco, embora nunca tenha visitado o quarto compartimento, reservado para Deus e para o tio de Kafka, mais conhecido pelo «tio de Madrid», par impressionante, mas do qual nunca se sabe onde para.

Viagens agitadas por quatro dos cinco compartimentos. Porque comecei por ser em Barcelona, quando era jovem, mais um de «os que não têm nada para contar» (primeira tendência) e, portanto, só sabem calcorrear pedras pelas ruas do seu próprio e infinito aborrecimento. Depois dei o salto para a segunda tendência e fui-me convertendo num especialista em calar determinados aspetos das histórias que contava e retirar um alto rendimento dessa estratégia, até ao ponto de me converter num virtuoso das narrações nas quais deliberadamente não se narra nada. Esse período aplanou-me o caminho para a terceira tendência, que é aquela por onde se move mais gente, ocupada pelos que deixam alguma ponta solta na história que contam e esperam que um dia a complete Deus ou, em seu lugar, o tio de Kafka, os únicos amos e senhores da quarta tendência, entes lendários – mais o primeiro que o segundo – dos quais sempre se comentou que, dispostos a dizer alguma coisa sensata, acabavam por nunca dizer nada, como se fossem inimigos de qualquer tipo de eloquência. Quanto aos ativos hackers do futuro (que em parte já estão entre nós, como os marcianos, e às vezes tomam o nome genérico de «as redes»), é de esperar que com o tempo só saibam trabalhar como se pertencessem ao sistema de espionagem norte-americano; sistema que, por sua vez, e por estranho que pareça, tem pontos em comum com a «máquina solteira» que o genial Raymond Roussel utilizou para escrever a sua obra.

Livro: "Montevideu"

Autor:Enrique Vila-Matas

Editora: D. Quixote

Data de Lançamento: 27 de junho

Preço: € 16,60

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Aquela invenção do autor de Impressões de África – génio adiantado em relação ao seu tempo e precursor da era digital – cuspia linguagem de um modo inesgotável numa deslumbrante criação de interminável escrita expulsa, provida de um sem-fim de ecos internos que velavam por que a «máquina textual» nunca encalhasse.

Enfim, fui de um lado a outro, conhecendo melhor umas tendências do que outras, mas a longo prazo tendo alguma experiência em cada uma delas, exceto na dos inimigos da eloquência, compartimento em que, se não me engano – porque em Montevideu tive a suspeita de ter dado uns passos a mais na escuridão –, nunca pus os pés.

Enumero as cinco tendências:

1) A dos que não têm nada que contar.

2) A dos que deliberadamente não narram nada.

3) A dos que não contam tudo.

4) A dos que esperam que Deus um dia conte tudo, incluindo porque é tão imperfeito.

5) A dos que se renderam ao poder da tecnologia que parece estar a transcrever tudo e, portanto, a converter em prescindível o ofício de escritor.

O primeiro compartimento – o único que percorri naquela Paris dos anos setenta – acabava sempre por me remeter a uma paisagem cinzenta do pós-guerra em Barcelona com uma figura solitária no centro do palco, no meio do Paseo de San Juan, um magro e pavoroso colegial aborrecido, eu mesmo, para não ir mais longe. Uma figura solitária que associo hoje em dia a um comentário de Ricardo Piglia sobre a sua juventude e sobre os primeiros anos dos seus diários («Porque ali luto com o vazio total: não acontece nada, nunca acontece nada na realidade. E o que poderia acontecer?»), e também ao diário de Paco Monteras, o único colega de liceu que sabia fingir que se divertia, mas que, décadas depois, me deu a ler a suas páginas, não sem antes me advertir de que eram ferozmente aborrecidas e «tão ocres», disse, sublinhando o adjetivo ocres (que eu nunca tinha ouvido), que os pormenores ali recolhidos só serviam para conhecer a parte meteorológica dos dias pacientemente baralhados.