Depois de um ensaio para a imprensa, o encenador explicou aos jornalistas que escolheu agora trazer o clássico ao palco por causa da “questão da dissimulação, da hipocrisia, da crise de confiança”.

Habituado a encenar textos seus, Carlos J. Pessoa foi buscar Molière para, a convite do diretor artístico do Teatro Nacional São João (TNSJ), Nuno Cardoso, integrar um ciclo sobre ‘fake news’.

“Achámos que faria sentido este ‘Tartufo’ ser incluído como uma meditação na tartufice, tartufice essa que acaba por fazer parte de uma condição humana, e com a qual é importante ter esse contacto, através deste texto”, concretizou.

Como na peça “D. João”, do mesmo dramaturgo, ao encenador interessou trazer também para “Tartufo” “esse mito, essa pujança do mito”.

Um exemplo atual é “o [antigo presidente dos Estados Unidos] Trump, que aqui suscita repulsa, mas na América há 70 milhões que seguem aquele homem cegamente”.

“Como é que é possível haver tanta gente que acredita? É um bocadinho o que acontece aqui – como é que é possível acreditar no óbvio, que é estar a mentir”.

Para o cofundador e diretor artístico do Teatro da Garagem, há na peça “essa pregnância do mito, essa resistência e porosidade, que permite que todas as ilusões confluam nele, que ele as absorve e transforma”.

É “como um pacote de manteiga mole – rapidamente consegue recuperar a forma”.

“Do ponto de vista metafísico, interessa-me muito, e tem um pouco a ver com o nosso tempo, esta plasticidade”, adiantou.

No texto, não escreveu “uma linha”, usando uma tradução da poeta Regina Guimarães, a que cortou “algumas cenas, que criam entropia”.

Apesar de o texto se manter fiel ao original, as opções cénicas trazem a peça para a atualidade, com elementos de “poesia e ironia”, que, defende, “têm de estar de mãos dadas no discurso cénico”.

Surge, por exemplo, a abrir a peça “uma escova de dentes elétrica, como se fosse uma eólica”, mas também, no 2.º ato, um sinal da Tesla.

“É quase uma infantilidade, mas temos de nos divertir com isso”, confessa.

Depois de ter tido os espetáculos inicialmente previstos para fevereiro suspensos, devido à pandemia de covid-19, Carlos J. Pessoa diz que não lhe interessa com esta encenação “a pretensão de resgatar o teatro”, mas antes “os atores, o teatro, este faz de conta muito pueril, nada tecnológico”.

A intenção é “'desalgoritmizar' a relação de comunicação, o espelho”.

“Tudo isto ocorre aqui – isto é um espetáculo, os atores recebem as pessoas, despedem-se. Isto é um mosteiro, mas é uma casa aberta, pública, e as coisas passam-se aqui. Aqui, o teatro tem essa circunstância, pueril, jovial, e em que a centralidade está no ator, tanto que mostramos as costuras do trabalho do ator, a mudança de figurino, a preparação para a cena”, afirmou.

Isso é possível também devido à suspensão, já que a encenação inicial estava prevista para o palco do TNSJ e “era uma coisa mais estilizada, mais fechada”.

“Tartufo” chega assim ao Mosteiro de São Bento da Vitória, no Porto, onde estará em cena até 10 de outubro e pode ser visto de quarta-feira a sábado, às 19:00, e ao domingo às 16:00.

Fazem parte do elenco Ana Palma, Joana Raio, Miguel Damião, Paula Só, Sérgio Silva e Susana Blazer.

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