Sed fugit interea fugit irreparabile tempus, escreveu Virgílio. Só a memória combate o tempo, só a memória confirma a existência de milhentas experiências adolescentes. O cheiro da primeira coisa ilícita, as fugas em bando, a defesa de uma qualquer honra suburbana. A bola e os beijos e o bê-á-bá escolar. Tudo com banda-sonora. Que, há vinte anos, era composta, não só, mas particularmente por Valete: nos versos de “Educação Visual” detetava-se a presença de um irmão mais velho, culto, o género de irmão que nos mostrava livros, discos e filmes, que narrava histórias com o seu quê de escabroso e humorístico ('Serial Killer' é disso exemplo), que nos ensinava que havia mais além daquilo que os olhos viam, seja nas ruas, seja na televisão.
“Educação Visual” e, quatro anos depois, “Serviço Público” beatificaram Valete como provavelmente o maior liricista da sua geração. Partindo da Damaia, o seu nome pulou de cidade em cidade, de subúrbio em subúrbio, de Monção a Portimão. Culpa de um flow onde uma visão muito própria e informada caminhava de braço dado com a vontade de fazer mais mundo, um mundo mais humanista, mais consciente, menos entregue aos constrangimentos do capital. Mais que nunca o esconder, o rapper fez do seu posicionamento político uma bandeira, mandando props a figuras como Hugo Chávez, Fidel Castro ou Che Guevara, colocando sobre a cabeça a boina de guerrilheiro e declarando: Eu sou anti-herói, que nunca se renderá.
Depois de 2006, porém, a centelha da revolução brilhou menos intensamente. Um anunciado terceiro disco foi sendo sucessivamente adiado, Valete procurou colocar o pão na mesa de outras formas. Não que o rapper tenha desaparecido por completo: lançou a mixtape “Contra-Cultura”, que mais tarde descreveu como “lixo”, e escreveu uma espécie de autobiografia n''A Melhor Rima de Sempre', onde uma das canções mais bonitas da música feita em Portugal ('M.I.R.I.A.M.', dos Orelha Negra) é a base para um momento de introspecção como pouco se vê no hip-hop, sobretudo no português.
Ao longo desses tempos, desenvolveu ainda uma espécie de estatuto enquanto decano do hip-hop nacional, lamentando a falta de preocupação «com a cultura hip-hop [e] com os valores da cultura hip-hop», o que lhe valeu elogios e críticas ao mesmo tempo (as gerações mais jovens não suportam, nem nunca suportarão, atitudes professorais, estejam elas certas ou erradas). E voltou a fazer correr tinta em 2019, com 'BFF', canção que lhe valeu acusações de misoginia.
2023 parece ser no entanto o ano em que Valete volta para terminar o que começou. O supracitado terceiro álbum, que dantes tinha como título “Homo Líbero”, foi posteriormente apelidado de “Em Movimento”. “Aperitivo”, EP lançado no passado mês de janeiro e que é o seu disco em 16 anos, foi descrito pelo rapper como «apenas o começo», fazendo jus ao seu nome. Pelo que se antecipava que estes concertos nos Coliseus (subirá ao palco do Coliseu do Porto neste sábado, 4 de fevereiro) não constituíssem apenas uma celebração ou uma lembrança dos vinte anos que passaram já, e sim um vislumbre daquilo que está por vir.
Uma cultura que conseguiu mudar o mundo, erguida no alto por um rapper que o tentou
Tivemos um pouco de futuro – e de presente – logo que Valete arrancou com 'A Lenda', tema presente em “Aperitivo”, que deu o mote já depois de um trompetista e um guitarrista terem dado as boas-vindas ao rapper. Boina na cabeça, rosto carregado de uma felicidade que não esmoreceu ao longo do espetáculo. Antes, o público que encheu q.b. o Coliseu dos Recreios foi brindado com uma espécie de aula sobre o hip-hop: de uma sessão inicial de Djing, passou-se para uma battle entre Edi Ventura e FLAJO (da parte que nos toca, venceu o segundo, como venceria qualquer pessoa que atirasse dou-te pulseira vermelha, não é para a zona VIP, é para as urgências de Vila Franca).
Era em Valete que se centravam as atenções, mas este foi um concerto que serviu mais como celebração, não dos seus vinte anos de carreira, mas de toda a cultura hip-hop – que, ressalve-se, celebra em agosto o seu 50º aniversário. Pelo palco passaram elementos relacionados com três dos quatro pilares do hip-hop, do DJ aos rappers aos b-boys, só faltando mesmo alguém a graffitar uma das paredes do Coliseu. 'Os Melhores Anos', tema de 2012 onde versa sobre a sua adolescência, terminou precisamente com essa saudação: «a cultura hip-hop sempre presente». Uma cultura que conseguiu mudar o mundo, erguida no alto por um rapper que o tentou. Mas, mesmo que não tenha mudado individualmente o mundo, mudou certamente a vida dos seus fãs. O que já é meio caminho andado.
Alguns deles terão conhecido Valete através do «número mágico», 115, nome do Canal que formou com Adamastor e Bónus. Com esse grito na guelra, procurou levar o Coliseu dos Recreios a bater o seu próprio recorde de ruído, referindo depois um outro número: 6 mil euros, o valor que figuras como Bomberjack lhe emprestaram para gravar o seu primeiro álbum.
Serve a narrativa para nos lembrarmos de que Valete não chegou a um Coliseu por acaso. Antes disso, houve muito sangue, suor e lágrimas derramados, mas também uma panóplia de amizades fortes. Ninguém nasce 'Anti-Herói' (e, quando esta canção surge, houve quem na plateia soubesse as rimas todas); luta-se para o ser.
«Depois de uma era de pragmáticos vem uma era de sonhadores»
'Subúrbios', que fez as delícias de quem habita há vinte anos ou mais nessas micronações afastadas de todos os centros (culturais, financeiros), antecipou a mensagem que acabaria repetida algumas vezes, transmitida em falso direto no ecrã dos Recreios: «o medo é uma camisa de forças». Valete não quer que fiquemos embasbacados a olhar para ele. Quer que nos movamos, rumo a um ideal, que não tem necessariamente de ser igual para todos. A sua mensagem é uma espécie de auto-ajuda, não para que nos tornemos apenas melhores, mas para que nos tornemos seres humanos melhores. Para que, como no rap que faz, sejamos conscientes. «Depois de uma era de pragmáticos vem uma era de sonhadores», diria mais tarde. «Não se preocupem: tudo é cíclico».
'Intemporal', com Lila (a quem reservou uma série de elogios, referindo que os melhores talentos em Portugal são anónimos), apresentou-se como um dos momentos mais românticos do concerto, antes de uma homenagem a 'Samuel Mira'. Que é como quem diz, Sam The Kid, indiscutivelmente a figura que mais fez pelo hip-hop em Portugal. Não foi o único a ser homenageado por Valete; pelos ecrãs passaram ainda alguns dos pioneiros da cena tuga, como General D ou os Nigga Poison. Para provar – como se fosse necessário – que Valete não faz hip-hop, respira-o.
'Rap Consciente', com o respetivo videoclip a acompanhá-la, revelou-se extremamente pungente, com o encore a ser feito de 'Bola de Ouro' (onde deixa bem explícita uma das suas outras paixões, o futebol), 'Fim da Ditadura' e a inescapável 'Roleta Russa', que contou no seu final com uma interpolação de Tupac. «O medo é o maior inimigo do homem», diria antes de sair de palco. Enquanto houver Valete, não há rei que nos amedronte.
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