A dor é um sentido proibido. Recusamos passar por ela. Abnegamos todo e qualquer momento em que as suas garras ferozes nos tomam conta da alma. Fugimos da sua inevitabilidade. Rejeitamos tecer uma consideração que seja sobre a sua presença. A própria palavra, “dor”, não entraria em nenhum dicionário se a nossa vontade fosse feita. Mas, existindo o significado, tem de existir a palavra. Existindo a dor, tem de existir também a sua superação. E, dessa forma, da dor passamos à catarse. Do medo passamos à coragem. Do isolamento passamos ao abraço, à empatia, à entrega.

Nick Cave é um homem que conhece bem a dor. Há mais de quarenta anos que assim é, desde os tempos dos The Boys Next Door, passando pelos Birthday Party até chegar aos Bad Seeds, banda que desde sempre foi apenas sua e dos seus versos, do seu blues e das suas facas, do seu sagrado e do seu macabro. Perdeu família, amigos, colegas. Perdeu-se a ele próprio, quando o vício em heroína falou demasiado alto. Perdeu um grande amor, PJ Harvey. E soube, sempre, utilizar todas essas dores na construção de objetos musicais e poéticos, extravasá-las em discos e canções que, sendo por nós escutadas, se transformam também nas nossas dores. A pop e o rock são isso mesmo, argumentar-se-á.

Mas depois houve “Skeleton Tree”. Este não é um álbum pop/rock que possamos tomar como nosso. Aliás, teremos sérias dificuldades em sequer descrevê-lo como um “álbum”, tradicionalmente falando. Porque a dor aqui contida é diferente; é a maior delas, segundo a sabedoria popular. É a dor de um pai que perde o seu filho e vê o sentido da sua existência desabar numa questão de segundos, tudo por culpa de um ácido e de um penhasco. Arthur, o filho, tinha 15 anos quando faleceu. Nick, o pai, cantou-o. Não para mitigar a tragédia, mas para lhe dar motivos para o fazer.

Esse motivo foi, em primeiro lugar, “One More Time With Feeling”, documentário que mostra como decorreu o processo de composição de “Skeleton Tree”, e cuja crueza nos assombra ainda. Foi, em segundo, a digressão em torno das anti-canções que o compõem, e onde o músico se tem entregado de corpo e coração aos seus fãs, abandonando o palco e quebrando a parede que existe entre quem atua e quem assiste. Não foi diferente, no Porto e no NOS Primavera Sound. Aos primeiros segundos, já Cave se situava junto a quem se havia aglomerado nas grades que o separavam de uma audiência cada vez mais sua, meia hora ou mais antes.

Este texto que se lê não é nem poderia ser o registo crítico de um concerto, mas sim o de um luto. Nick Cave continua, à sua maneira, a chorar o seu filho. Cabe-nos a nós entendê-lo e dar-lhe uma plataforma para que o faça. Cabe-nos amá-lo – e alguém o gritou – e cabe-lhe a ele acenar, sorrir talvez, admitir “também vos amo” enquanto os Bad Seeds alimentam o éter com marcha fúnebre atrás de marcha fúnebre.

Começou assim: “Jesus Alone”, “Magneto”, “Do You Love Me?”, o pós-punk brilhante e tenebroso (e, aqui, escandalosamente feérico) de “From Her To Eternity”, uma faca espetada no romance. Passou por “Red Right Hand”, o Diabo à espreita numa esquina. Passou pela beleza e pelo beijo em rosto amado de “Into My Arms”. Passou pelo desejo: o de que caísse mais chuva. Deus, a existir (e, se a música existe, também Deus deverá existir), acedeu a este pedido de Cave e de imediato lançou um toró sobre o Parque da Cidade.

(Deus não tem como negar um pedido a quem tirou um filho.)

Até que chegou “Girl In Amber”, o mais profundo dos temas de “Skeleton Tree”, onde a metáfora é quebrada pela palavra direta e há um blue-eyed boy a encher o mundo com a sua ausência. Pelo Parque da Cidade, o silêncio era quase palpável. Um silêncio de respeito e de assombro, oração perdida no infinito. Um silêncio de dúvida: como separar a arte do seu artista, sabendo nós de onde nasceu, neste caso em concreto, a arte? Como esquecer que esta canção não existiria se, há três anos, Arthur Cave não tivesse morrido? Como, até, aplaudir a morte, arranjar coragem de aplaudir a morte? Ninguém o soube responder – e daí o silêncio.

Aplaudiríamos mais tarde, com “Tupelo” ou “Jubilee Street”, que terminou com Nick Cave a pontapear tudo o que viu à frente, em palco, num dos momentos mais rock n' roll de todo o espetáculo-desgosto. Aplaudiríamos com a mais que bem recebida presença de “The Weeping Song” no alinhamento. Aplaudiríamos quando Cave desaparece por entre o público e ressurge, poucos segundos depois, dentro de um mini-palco montado especialmente para o efeito – e a partir de onde começou a controlar o público como um maestro controla a sua orquestra.

Aplaudiríamos tanto que não aplaudimos mais: limitámo-nos a erguer os braços no ar. Foi com “Push The Sky Away” que Nick Cave e os Bad Seeds se despediram do Porto, levando consigo não a chuva, mas as lágrimas – e foram muitas – de quem se juntou a ele neste seu período terrível. E levaram, também, um abraço, vários até, de quem foi convidado para subir ao palco (trinta ou quarenta pessoas, impossível precisar). E levaram a ideia de que um performer não pode descer do seu pedestal. Já nós, os que a ele assistimos e enchemos o Parque da Cidade do Porto, levámos uma lição de humanidade que certamente tentaremos ensinar aos nossos filhos e netos. Não sem antes de lhes dizer a mais bonita das expressões:

“Amo-te”.

Quem amou, e chorou também, foi Kelela. A artista norte-americana fez esquecer momentaneamente a chuva através do seu R&B lânguido e sossegado, emocionando-se (e a nós) quando o público desata a cantar cada uma das palavras presentes nos seus versos. Disse Kelela, vestida de um branco imaculado, que não estava à espera de uma reação assim. Acreditamos – até porque a vimos dois anos antes, no festival Super Bock Super Rock, a atuar perante uma plateia sobretudo despida. Aqui, nem a água travou alguma dança e um espanto muito pelas suas capacidades vocais – sobretudo em “Take Me Apart”, canção que dá nome ao seu álbum de estreia. Tão fenomenal foi a sua atuação que até teve direito a prolongá-la, o que não é habitual num festival com a dimensão do NOS Primavera Sound. Agradeceu ela, e agradeceram os fãs.

Antes do início do festival, temia-se que a supracitada chuva estragasse os planos de quase todos os festivaleiros, o que efetivamente se veio a confirmar; com tanta água, nem a cerveja pareceu cair bem, o ânimo esfriou, a vontade desapareceu e deu lugar à apatia. Ainda assim, não são poucos os que assistem ao concerto de Luís Severo, que pela tarde abriu o palco Seat acompanhado pela sua banda – Manuel Palha, Bernardo Álvares e Diogo Rodrigues – e por duas mãos cheias de magníficas canções. “Escola”, “Amor E Verdade” e “Ainda É Cedo” foram algumas delas. Se é verdade que Severo, um dos melhores escritores de canções portugueses deste milénio, soa muito melhor quando se apresenta a solo e apenas ao piano, aquilo a que aqui se assistiu não mereceu menos do que uma vénia. A mesma feita aos brasileiros Metá Metá e à sua música inclassificável, onde o jazz, o rock, o noise ou o samba convivem alegremente, alicerçados pela poderosa voz de Juçara Marçal e por uma série de histórias escabrosas, num verdadeiro tributo a Xangô, Deus do trovão. Já os Mogwai, que tiveram a tarefa inglória de se apresentarem a seguir a Nick Cave, mostraram um set coeso e determinaram, com o seu pós-rock alimentado a distorção, que nem sempre é preciso cantar para dizer alguma coisa.